O
primeiro filme inglês de Alberto Cavalcanti, e
também seu primeiro filme produzido pelo G.P.O.
Unit de John Grierson, pouco tem do tom educativo e
analítico que dominará a produção
do primeiro pólo documentário mundial.
Pett and Pott, um pouco justamente por
essa enorme diferença, nunca ganhou muitos elogios
dos membros do movimento, e o próprio Cavalcanti
nunca chegou a ver nele um filme completamente bem-sucedido.
Questão de contingência e de má
recepção no seio de um país novo,
e da insegurança que aí decorre: Pett
and Pott é uma das pérolas escondidas
de uma filmografia que resta ainda fartamente a descobrir.
Em trinta e três minutos, vemos uma obra francamente
experimental experimental indeed, porque
procedeu à algo insana experiência de gravar
todo o som do filme para em seguida associar-lhe as
imagens: vale lembrar que em 1934 para muitos países
o cinema ainda está na aurora do cinema sonoro
que, sob o pretexto de fazer propaganda sobre
as maravilhas da companhia telefônica e sobre
as vantagens de ter um aparelho telefônico em
casa, realiza um pequeno teatrinho de comportamentos
sociais, com dimensões extraordinárias
e de tom folgadamente expressionista. A Inglaterra é
um terreno apropriado a esse jogo: o aprumo, a pose,
a identidade social e o status funcionando como distintivos
fortes de personalidade e respeitabilidade, o filme
tanto melhor pode alcançar seu intento de misturar
os opostos e fazer com eles um pequeno carnaval de códigos
e valores.
O filme mostra em paralelo os destinos de duas famílias,
as do título. O sr. e a sra. Pett rodeados de
crianças, num ambiente iluminado, decidem utilizar
o dinheirinho sobrando da economia familiar para comprar
um aparelho telefônico; em paralelo, o sr. e a
sra. Pott vivem num ambiente escurecido, sem filhos,
com um gato, num clima um pouco vamp. A sra. Pott, preguiçosa
que é, prefere contratar uma empregada com o
dinheiro que poderia ser empregado para a aquisição
do telefone. O que acaba só lhe dando mais trabalho:
ao passo que basta a sra. Pett ligar para o açougue
ou para a mercearia e fazer seu pedido que há
alguém para entregar as mercadorias em casa,
a sra. Pott deve se deslocar e subir penosamente escadas
infinitas tornadas cada vez mais angustiantes
e cansativas pelos ângulos de Cavalcanti e pelo
uso da montagem para chegar com o embrulho pesado
em casa. Até acontecer o pior: há uma
quadrilha de ladrões de residência da qual
faz parte o namoradinho da empregada da família
Pott, que utiliza o contato para assaltar a casa. Enquanto
o sr. Pott não vai de casa para o trabalho a
fim de cometer algumas leves impropriedades voyeurísticas,
a sra. Pott fica presa num aposento ciente de que o
lar está sendo ameaçado pelos bandidos.
Onde está o telefone numa hora dessas? Na casa
ao lado, naturalmente...
Não fosse pela maneira como Cavalcanti imprime
sua marca no filme, pela forma como ritma e angula sua
historieta, como se ainda estivesse fazendo um de seus
filmes de vanguarda na França, Pett and Pott
não seria mais do que um desses filmes de propaganda
destinados às famílias de-bem com fundo
regenerador à maneira de diversos filmes do período
mudo (A Drunkard's Reformation, de D.W. Griffith,
como exemplo supremo). Mas aos poucos vamos percebendo
que o tratamento caricatural dado à excentricidade
da família Pott é o mesmo utilizado para
representar a família Pett, e o que começa
como um discurso ratificador da clivagem entre bem e
mal, responsável e irresponsável, logo
adquire um modus operandi de farsa que inverte
a equação e embaralha as diferenças,
zombando graciosamente de ambos recortes de classe.
"Surrealista com tendência ao realismo",
como confessou o próprio numa entrevista a F.
Martialay, Cavalcanti instaura uma pequena revolução
anarquista em seu próprio relato, pela tresloucada
e cada vez mais rápida sucessão dos acontecimentos,
já prescrita desde o início do projeto
(afinal o som foi montado antes das imagens). Posteriormente,
Alberto Cavalcanti saberá afinar com maior presteza
e dinamismo o trabalho de direção e particularmente
o de som em seus filmes, e consegiurá encontrar
formas mais nuançadas de contar histórias
"incontáveis" de forma agradável
ao espectaqdor médio a vida dos trabalhadores
de carvão, a eficiência do correio noturno
, mas jamais a unidade da G.P.O. chegou novamente
perto da liberdade dos signos orquestrada em Pett
and Pott, na forma como um diretor utiliza uma propaganda
deslavada da companhia telefônica (e, sabemos,
quanto mais deslavada, mais patente fica a manipulação
e menos eficiente a propaganda) para fazer pular a empáfia
visual do tipically british. Como dizia Lobão,
é tudo pose.
Ruy Gardnier
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