Deus, o diabo e os corpos
Ao
comentar um texto de Dante em sua prova final, Andrea
diz que “a contingência é o curso dos fatos contingentes
próprios do meio material e terrestre” e que Dante discursa
ali sobre o livre arbítrio. Talvez possamos ver então
nesta fala o percurso da maioria dos personagens de
Bellocchio. Imersos em contingências históricas e pessoais
que se fazem ver de forma muito presente em sua realidade
palpável, eles procuram o caminho possível que os desvencilhará
do que os oprime, do que se interpõe entre eles e sua
vontade. É como se eles estivessem o tempo todo estranhando
este mundo em que estão inseridos, tentando se adaptar
a todos estes regulamentos que existem quase que autonomamente,
perguntando-se se podem quiçá ser mudados. Há vida neles.
E esta vida esbarra o tempo todo em instâncias como
a família, a religião e a política, que a impedem de
seguir seus desígnios, de suprir seus desejos.
Assim como Giulia quer
ver o noivo libertado, ela não suporta ou não compreende
muito bem a situação em que ambos se encontram, quer
estar com alguém, quer se apaixonar e amar loucamente.
Já Andrea não consegue ser satisfeito pela escola e
seus ensinamentos de filosofia acadêmica. Precisa olhar
pela janela. Porque ele não tem tempo. Porque há algo
mais urgente que demanda sua atenção. Um afeto algo
avassalador, muito diferente daquele que possivelmente
Pulcini, noivo de Giulia, poderia cultivar. Pulcini
faz o elogio da mediocridade. Diz ter descoberto o orgulho
de ser medíocre. De alimentar uma vida sem saturação,
sem altos tons, sem paixões e sem lutas. Uma vida entregue
refém de tudo que a deseja governar.
Já Giulia não se contém
dentro de si. Ela não tem muitas medidas, parece não
reconhecer os padrões à sua volta. Tem medo de enlouquecer,
de perder tão seriamente os parâmetros a ponto de não
mais poder viver em sociedade. Tem medo de ficar sozinha
e vê na organização das coisas uma imensa propensão
à solidão. A frieza de um tribunal ou de um divã para
ela não são suportáveis. Ela precisa do calor de um
corpo ao lado do seu. E é seu corpo incandescente que
a faz endiabrada, violenta, perigosa. Sua paixão por
Andrea a mobiliza a tal ponto que ela se vê prestes
a enlouquecer novamente. Sente necessidade de voltar
para Pulcini. Para buscar aquela morna mediocridade.
Não pode viver até o fim se quiser manter a sanidade.
Mas sabe também que talvez não possa viver de outro
jeito. As palavras do psiquiatra já lhe são inúteis.
Espera quem sabe conseguir encontrar paz no amor de
Andrea, o rapaz apaixonado que parece ele sim saber
de medidas. Por isso chora ao ouvi-lo responder às questões
de seu exame final, falando do livre arbítrio e do embate
entre a crença nas leis terrenas e a crença nos desígnios
de Deus. Se somos nós os regentes de nossas próprias
vidas, se, para além das contingências que nos assolam,
somos capazes de ditar nossas existências e nossa vida
social, então decerto há uma felicidade possível! Colocação
em suspenso, por sobre as lágrimas de Giulia.
E por sobre as de Chiara,
personagem de Bom Dia, Noite. Fosse ela capaz
de suplantar o mundo por seus devaneios e sua sensibilidade,
talvez se tranqüilizasse. Talvez fosse mais amena e
conseguisse dormir à noite, se visualizasse um mundo
onde os homens pudessem decidir o que fazer de acordo
com seu bom senso e com o seu coração. Onde a morte
– tanto aquela promovida aos poucos pelas bem-assentadas
instituições, tanto aquela executada em golpes certeiros
por assassinos – não fosse palavra de ordem e os homens
soubessem falar apaixonadamente dos que os aflige. Onde
todos fossem sensíveis o suficiente para perceberem
o quanto a vida em seu entorno é oprimida.
E se em grande parte
para Bellocchio trata-se de falar de entorno, especialmente
sócio-político, é de ambientes que fala sua câmera.
Afeita a uma cuidadosa descrição dos espaços habitados
pelos personagens, ela nos faz testemunhar de sua condição
de vivência, experimentar sua ambientação, para então
situá-los no mundo. Conhecemos bem os apartamentos de
Diabo no Corpo, A Hora da Religião e Bom
Dia, Noite, por exemplo. Somos capazes de nos guiar
dentro deles, de reconhecer as luzes, de saber abrir
portas e janelas. E por isso somos capazes de estabelecer
com os personagens uma relação de intimidade, a ponto
de compreendermos os dilemas que estes atravessam. Dilemas
pontuados por notas altas e dissonantes. Notas musicais
que muitas vezes marcam um “sair do mundo”, um sonho
de olhos abertos ou fechados, que insiste em fazer do
que está diante de si uma versão própria, em afirmar
o livre arbítrio de cada homem como potencializador
de um outro mundo, mesmo que não para além de si mesmo...
Marcante, aliás, o
trabalho entre som e imagem estabelecido por Bellocchio.
Elaborados de forma quase autônoma, eles estabelecem
cada um sua própria rede de significações, estejam em
sincronia ou não. Cortes diferenciados para cada um
deles originam, dentro da mesma cena, superposições
de sons e imagens não-sincrônicos, criando outras percepções
tanto das imagens quanto dos sons. Como ocorre em na
fala do padre para a louca no início de Diabo no
Corpo, na fala do juiz no tribunal por sobre trocas
de olhares entre Giulia e Pulcini e entre Giulia e Andrea,
e na cena final
em que Andrea prossegue seu exame final em off,
sobre a imagem de Giulia chorando. Os discursos sobre
o mundo ganham seu verdadeiro status de discurso,
como construções por sobre a materialidade da vida.
Que é como é, a despeito do que se diga ou se projete.
Porque as palavras podem ter efeito nas pessoas, mas
as pessoas têm muito mais efeito nas palavras.
Tatiana Monassa
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