Em O Desprezo, de Jean-Luc Godard, Fritz Lang
repete incessantemente a Michel Piccoli que a morte
nunca é uma solução, nos diálogos
em que se discute sobre a possibilidade de Ulisses,
ao retornar da Guerra de Tróia para Ítaca,
não ser mais amado por sua esposa Penélope.
As palavras ditas por Lang quase quarenta anos à
frente ecoam sobremaneira no dístico Os Nibelungos,
que compreende A Morte de Siegfried e A Vingança
de Kriemhild (que duram, respectivamente, 141 e
147 minutos, e não os 120 minutos que informam
os DVDs da Continental/Magnus Opus): através
do mito fundador do povo germânico, o cineasta
expõe a inutilidade e a loucura da morte, seja
esta justificada pela honra, pela dor ou pela paixão,
com o extermínio sistemático promovido
por Kriemhild, então rainha dos hunos, contra
seus próprios irmãos nibelungos para vingar
o assassinato de Siegfried. O sangue que atrai apenas
mais sangue, a matança desnecessária que
existe para satisfazer a si própria.
Lang dedica Os Nibelungos ao povo alemão,
pois, de fato, trata-se da lenda que dá origem
e molda a identidade nacional germânica. Na Europa,
durante a queda do Império Romano do Ocidente,
o herói Siegfried (Paul Richter), após
matar o dragão e se banhar em seu sangue, dirige-se
para a corte de Worns a fim de conquistar a princesa
Kriemhild (Margarete Schön). Ao ajudá-lo
a se casar com a valquíria Brunhild (Hanna Ralph),
Siegfried torna-se irmão de sangue do rei Gunther
(Theodor Loos), e recebe como prêmio a mão
de Kriemhild. No entanto, as intrigas de Brunhild –
que acusa o herói de tê-la violentado –
levam o monarca e o fiel soldado Hagen Tronje (Hans
Adalbert Schlettow) a assassinarem Siegfried. Tomada
pelo ódio, Kriemhild casa-se com Átila
para vingar a morte do primeiro marido: com o intuito
de conseguir a cabeça de Tronje, porém,
ela aniquila todos os nibelungos, feitos reféns
no palácio do líder dos hunos.
Além de embasar todas as sagas pós-modernas
que exploram a temática mitológica / fantástica
– O Senhor dos Anéis e Harry Potter
na dianteira –, Os Nibelungos renderam a magnífica
tetralogia operística de Richard Wagner, a saber,
O Ouro do Reno, As Valquírias,
Siegfried e Crepúsculo dos Deuses.
Ao contrário das óperas, Fritz Lang passa
rapidamente pelos episódios da descoberta do
tesouro dos nibelungos por Siegfried e da subjugação
de Brunhild pelo herói a fim de se centrar na
(falta de) moralidade que marca as ações
desencadeadas por Kriemhild em represália ao
assassinato do amado. Está em jogo, para o diretor,
a incapacidade do homem em lidar com suas próprias
emoções primárias: o amor que se
transforma em ódio, levando à decadência
individual e social, bem como à destruição
da natureza (seja ela criada por Deus ou edificada pelo
trabalho humano), tragada pelo caos, enquanto espaço
idealizado de ordem e de harmonia terrenas.
Tanto A Morte de Siegfried quanto A Vingança
de Kriemhild se estruturam sob o modelo de cantos,
ou seja, de blocos narrativos em que, por intermédio
dos enunciados temáticos que os precedem, reforçam
o colorido épico e lendário da saga dos
nibelungos. Todavia, na construção da
derrocada moral de Kriemhild e, em conseqüência,
de toda a humanidade, Fritz Lang se utiliza de relações
diferentes, senão opostas, entre os personagens
e os espaços quanto à distribuição
de ambos os elementos pelo quadro. Dessa maneira, se
em A Morte de Siegfried predomina a arquitetura
clara e harmoniosa dos ambientes, os quais se dispõem
na tela em linhas verticais, horizontais, diagonais,
e, sobretudo, circulares (inclusive através dos
fades in e out) – o círculo é considerado,
desde a Grécia Clássica, a forma perfeita
que somente o homem pode traçar, uma vez que
se encontra associada à Razão e às
Idéias de Beleza e de Verdade – contra fundos
vazios e iluminados, onde os atores principais interagem
esparsamente entre si, em A Vingança de Kriemhild
impera a confusão espacial e visual, o grafismo
caótico em que multidões se digladiam
em cenários onde não importam as linhas
constitutivas, mas antes as texturas de que são
feitos, para, ao estabelecer a fisicalidade e a sanguinolência
dos corpos no combate inútil, intensificar a
trágica barbárie de que os homens são,
ao mesmo tempo, vítimas e responsáveis.
Do idílio terrestre à violência
gratuita, Fritz Lang percorre, de A Morte de Siegfried
até A Vingança de Kriemhild,
o tortuoso caminho das pulsões básicas
do homem que, quando se aliam a estruturas de poder
e, dessa feita, encontram o veículo necessário
para serem divulgadas em massa, conduzem ao mal-estar
coletivo e ao fim da civilização, entendida
como sistema organizado de valores éticos e morais.
Paulo Ricardo de Almeida
(DVD Magnus Opus, VHS Continental)
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