A MORTE CANSADA
Fritz Lang, Der Müde Tod, Alemanha, 1921

Um desconhecido de capa escura se instala num pequeno vilarejo. Compra o terreno ao lado do cemitério, explicando que deseja fazer ali seu jardim e descansar da imensa fadiga de seu trabalho. Ergue um imenso muro, sem nenhuma passagem visível por onde se possa entrar ou sair. Uma jovem descobre quem ultrapassa aquelas paredes: os espíritos daqueles que acabam de morrer, entre eles o seu amado. O misterioso forasteiro é o próprio anjo da morte e nos seus domínios se vêem centenas de velas que representam as vidas humanas. Com ele a moça faz um trato: se conseguir salvar uma das três velas escolhidas entre tantas, terá seu amado de volta. A história de cada uma das velas abre caminho para episódios folhetinescos que se passam em lugares exóticos. Numa cidade árabe, em Veneza durante o carnaval e na China imperial, um amor proibido entre dois jovens será perseguido pelas forças do poder (o califa, o aristocrata, o imperador), que conspiram para assassinar o herói. Cabe à jovem evitar que a morte leve a termo seu serviço.

Movida pelo amor e não pela fé, a heroína torna possível um diálogo com a morte ainda que essa não seja em absoluto uma conversa entre iguais. As poderosas personagens femininas do cinema de Fritz Lang aparecem desde os filmes silenciosos e a heroína de A Morte Cansada é provavelmente a primeira da numerosa linhagem, que se firma a partir da colaboração com a roteirista Thea von Harbou, esposa do diretor, mas que se desdobra e se enriquece nas décadas seguintes, depois da separação do casal. Com seus três episódios de aventura, A Morte Cansada compartilha com os seriados dos anos 10 a presença de mulheres que tomam a iniciativa da ação, protagonizando peripécias e lances sensacionais, no estilo Pearl White em Os perigos de Pauline e também Musidora em Les Vampyres, essa última até inspiração direta no figurino adotado pela aristocrata do episódio italiano, apropriadamente vestida de malha preta e colante para um duelo de esgrima. O gosto de Lang pelas narrativas de aventura já vinha se aprimorando desde os roteiros escritos para Joe May nos anos 10 e nas duas partes de As Aranhas (1919-20), um de seus primeiros trabalhos de direção, previsto inicialmente como um seriado em quatro episódios. Dois anos depois de estrear como diretor, Lang realiza A Morte Cansada, em que, sem descuidar do atrativo de um cinema de gênero, radicaliza o que nele pode haver de mais grave, transcendente e inescapável, o encontro entre vida e morte.

Nesse filme com roteiro de Thea von Harbou, objetos e formas fálicas reforçam o poder das personagens femininas, como a varinha de condão usada pela assistente do mágico no episódio chinês, que curiosamente vai diminuindo cada vez que é utilizada, e o portal de entrada na imensa muralha, só transposto pela protagonista (os espíritos "atravessam" o muro em efeitos de superposição), cuja forma muito se assemelha ao foguete de Mulher na Lua, também roteiro de Harbou. O recurso a símbolos fálicos para marcar a diferença entre as personagens femininas de qualidades heróicas e as mocinhas arfantes e indefesas parece agradar as roteiristas da época. Em Joan the Woman (1916), superprodução de Cecil B. DeMille escrita por Jeanie Macpherson, a espada de Joana D’Arc ganha evidente carga simbólica ao longo da narrativa, numa recorrência que não deixa espaço para dúvidas quanto à intencionalidade metafórica.

No livro A tela demoníaca, Lotte Eisner credita as partes mais sentimentais dos primeiros filmes de Lang a Thea von Harbou e "seu gosto duvidoso pelo melodrama empolado". Essa leitura, além de expressar evidente desagrado com a roteirista, futura colaboradora do nazismo, tenta eximir o diretor do "mau passo" folhetinesco, tratando-o como deslize de juventude. O trabalho com o "melodrama sensacionalista" (para usar o termo de Ben Singer a propósito da produção cinematográfica mais popular dos anos 10) apura a relação particular que Lang estabelece com o cinema de gênero, desde os primeiros roteiros e filmes e ao longo de toda sua carreira, além de nos dar o imenso prazer de cenas com adagas envenenadas, perseguições com elefantes e cavalos mágicos, fuga pelo fosso do palácio, transformações de humanos em bichos e estátuas, tapete voador, cenários e figurinos exóticos.

Desde o título e ao longo de todo o filme, A Morte Cansada superpõe divino e humano, desdenhando também das fronteiras entre ação e metafísica, cinema de gênero e filme de arte. Realizado em 1921, na transição entre duas décadas, retoma procedimentos dos anos 10 (desde os seriados americanos e europeus às ambiciosas alegorias históricas de Griffith), reconfigurando-os para a década seguinte numa fábula atemporal ("Em algum tempo e em algum lugar", diz o letreiro no início) conduzida por um olhar moderno que privilegia as contaminações às fronteiras definidas.

A morte que se ressente do cansaço tão humano, amaldiçoada na terra por cumprir os designos divinos, se afigura como uma das personagens mais solitárias da história do cinema. A destemida heroína, movida pela frase "O amor é mais forte que a morte", terá seus momentos vilanescos ao deixar a compaixão de lado e propor a um mendigo ou a velhos moradores que troquem sua vida pela do jovem apaixonado. A mais bela história de amor do filme é sem dúvida a desse encontro improvável entre a morte e a moça, capaz de revelar um caminho de acesso entre os dois mundos, separados pela imensa muralha do desconhecido.

As formas arrebatadoras criadas por Fritz Lang podem ter se tornado um clichê da crítica, mas nunca deixam de surpreender nos próprios filmes. Em A Morte Cansada, a imagem do muro sem entradas, que toma todo o quadro e diante do qual as figuras humanas se revelam minúsculas e vulneráveis, expressa os sentimentos mais primitivos de medo do desconhecido, do outro absoluto, ao mesmo tempo inexpugnável e inevitável. E a morte com sua capa preta, na melhor tradição de heróis mascarados e bandidos vingadores, que inclui desde Zorro a Antonio das Mortes, adquire forma humana e entre humanos transita – mas sob a materialidade do figurino e da maquiagem não parece existir corpo possível, é puro símbolo.

Neste DVD sem extras, alguns trechos apresentam efeito de tingimento (como na seqüência final durante um incêndio, dominada pela cor vermelha), procedimento habitual no período silencioso.


Luciana Corrêa de Araújo

(DVD Magnus Opus, VHS Continental)