Um
desconhecido de capa escura se instala num pequeno vilarejo.
Compra o terreno ao lado do cemitério, explicando
que deseja fazer ali seu jardim e descansar da imensa
fadiga de seu trabalho. Ergue um imenso muro, sem nenhuma
passagem visível por onde se possa entrar ou
sair. Uma jovem descobre quem ultrapassa aquelas paredes:
os espíritos daqueles que acabam de morrer, entre
eles o seu amado. O misterioso forasteiro é o
próprio anjo da morte e nos seus domínios
se vêem centenas de velas que representam as vidas
humanas. Com ele a moça faz um trato: se conseguir
salvar uma das três velas escolhidas entre tantas,
terá seu amado de volta. A história de
cada uma das velas abre caminho para episódios
folhetinescos que se passam em lugares exóticos.
Numa cidade árabe, em Veneza durante o carnaval
e na China imperial, um amor proibido entre dois jovens
será perseguido pelas forças do poder
(o califa, o aristocrata, o imperador), que conspiram
para assassinar o herói. Cabe à jovem
evitar que a morte leve a termo seu serviço.
Movida pelo amor e não pela fé, a heroína
torna possível um diálogo com a morte
ainda que essa não seja em absoluto uma conversa
entre iguais. As poderosas personagens femininas do
cinema de Fritz Lang aparecem desde os filmes silenciosos
e a heroína de A Morte Cansada é
provavelmente a primeira da numerosa linhagem, que se
firma a partir da colaboração com a roteirista
Thea von Harbou, esposa do diretor, mas que se desdobra
e se enriquece nas décadas seguintes, depois
da separação do casal. Com seus três
episódios de aventura, A Morte Cansada
compartilha com os seriados dos anos 10 a presença
de mulheres que tomam a iniciativa da ação,
protagonizando peripécias e lances sensacionais,
no estilo Pearl White em Os perigos de Pauline
e também Musidora em Les Vampyres, essa
última até inspiração direta
no figurino adotado pela aristocrata do episódio
italiano, apropriadamente vestida de malha preta e colante
para um duelo de esgrima. O gosto de Lang pelas narrativas
de aventura já vinha se aprimorando desde os
roteiros escritos para Joe May nos anos 10 e nas duas
partes de As Aranhas (1919-20), um de seus primeiros
trabalhos de direção, previsto inicialmente
como um seriado em quatro episódios. Dois anos
depois de estrear como diretor, Lang realiza A Morte
Cansada, em que, sem descuidar do atrativo de um
cinema de gênero, radicaliza o que nele pode haver
de mais grave, transcendente e inescapável, o
encontro entre vida e morte.
Nesse filme com roteiro de Thea von Harbou, objetos
e formas fálicas reforçam o poder das
personagens femininas, como a varinha de condão
usada pela assistente do mágico no episódio
chinês, que curiosamente vai diminuindo cada vez
que é utilizada, e o portal de entrada na imensa
muralha, só transposto pela protagonista (os
espíritos "atravessam" o muro em efeitos de superposição),
cuja forma muito se assemelha ao foguete de Mulher
na Lua, também roteiro de Harbou. O recurso
a símbolos fálicos para marcar a diferença
entre as personagens femininas de qualidades heróicas
e as mocinhas arfantes e indefesas parece agradar as
roteiristas da época. Em Joan the Woman
(1916), superprodução de Cecil B. DeMille
escrita por Jeanie Macpherson, a espada de Joana
D’Arc ganha evidente carga simbólica ao longo
da narrativa, numa recorrência que não
deixa espaço para dúvidas quanto à
intencionalidade metafórica.
No livro A tela demoníaca, Lotte Eisner
credita as partes mais sentimentais dos primeiros filmes
de Lang a Thea von Harbou e "seu gosto duvidoso pelo
melodrama empolado". Essa leitura, além de expressar
evidente desagrado com a roteirista, futura colaboradora
do nazismo, tenta eximir o diretor do "mau passo" folhetinesco,
tratando-o como deslize de juventude. O trabalho com
o "melodrama sensacionalista" (para usar o termo de
Ben Singer a propósito da produção
cinematográfica mais popular dos anos 10) apura
a relação particular que Lang estabelece
com o cinema de gênero, desde os primeiros roteiros
e filmes e ao longo de toda sua carreira, além
de nos dar o imenso prazer de cenas com adagas envenenadas,
perseguições com elefantes e cavalos mágicos,
fuga pelo fosso do palácio, transformações
de humanos em bichos e estátuas, tapete voador,
cenários e figurinos exóticos.
Desde o título e ao longo de todo o filme, A
Morte Cansada superpõe divino e humano, desdenhando
também das fronteiras entre ação
e metafísica, cinema de gênero e filme
de arte. Realizado em 1921, na transição
entre duas décadas, retoma procedimentos dos
anos 10 (desde os seriados americanos e europeus às
ambiciosas alegorias históricas de Griffith),
reconfigurando-os para a década seguinte numa
fábula atemporal ("Em algum tempo e em algum
lugar", diz o letreiro no início) conduzida por
um olhar moderno que privilegia as contaminações
às fronteiras definidas.
A morte que se ressente do cansaço tão
humano, amaldiçoada na terra por cumprir os designos
divinos, se afigura como uma das personagens mais solitárias
da história do cinema. A destemida heroína,
movida pela frase "O amor é mais forte que a
morte", terá seus momentos vilanescos ao deixar
a compaixão de lado e propor a um mendigo ou
a velhos moradores que troquem sua vida pela do jovem
apaixonado. A mais bela história de amor do filme
é sem dúvida a desse encontro improvável
entre a morte e a moça, capaz de revelar um caminho
de acesso entre os dois mundos, separados pela imensa
muralha do desconhecido.
As formas arrebatadoras criadas por Fritz Lang podem
ter se tornado um clichê da crítica, mas
nunca deixam de surpreender nos próprios filmes.
Em A Morte Cansada, a imagem do muro sem entradas,
que toma todo o quadro e diante do qual as figuras humanas
se revelam minúsculas e vulneráveis, expressa
os sentimentos mais primitivos de medo do desconhecido,
do outro absoluto, ao mesmo tempo inexpugnável
e inevitável. E a morte com sua capa preta, na
melhor tradição de heróis mascarados
e bandidos vingadores, que inclui desde Zorro a Antonio
das Mortes, adquire forma humana e entre humanos transita
– mas sob a materialidade do figurino e da maquiagem
não parece existir corpo possível, é
puro símbolo.
Neste DVD sem extras, alguns trechos apresentam efeito
de tingimento (como na seqüência final durante
um incêndio, dominada pela cor vermelha), procedimento
habitual no período silencioso.
Luciana Corrêa de Araújo
(DVD Magnus Opus, VHS Continental)
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