Através do Espelho
Tudo neste último filme de Fritz Lang é
uma questão de performance e visão, tanto
da parte dos personagens quanto do próprio cineasta.
Realizado a contra gosto, num momento em que a carreira
americana de Lang nos EUA havia sido interrompida –
por conta das transformações da indústria
que tornaram praticamente impossível de se realizar
dentro dos grandes estúdios o tipo de filme em
que Lang vinha se especializando –, trata-se paradoxalmente
do verdadeiro filme de exílio de Lang, um amargo
retorno à antiga pátria que ele vê
com maus olhos. Não surpreende que Lang isole
a maior parte da ação num único
espaço (o Hotel Luxor), como também construa
ele sobre uma clara base histórica (um plano
nazista de espionagem e chantagem), dando continuidade
ao projeto, já esboçado nos dois filmes
indianos, de historicizar a primeira fase de sua carreira.
Como o cineasta "performa"? Se expondo como em nenhum
outro filme. Não é apenas as personagens
que podemos ver através do espelho, mas o próprio
cineasta. O desgosto de Lang com a sociedade alemã
está exposto a cada fotograma de Os Mil Olhos
do Dr. Mabuse, mas as coisas não se encerram
por aí. Lang força a cada instante a comparação
com os filmes anteriores da série, a começar
por fazer do Inspetor Klaus um novo Inspetor Lohman
(o policial de O Testamento do Dr. Mabuse e M).
A idéia de imitação transcorre
em todo este último Mabuse langiano, a cada seqüência
do filme aparece uma afirmação de Lang
de que é possível reproduzir sua obra
alemã. No DVD de O Testamento do Dr. Mabuse
lançado nos EUA pela Criterion, temos acesso
a um material que nos confirma muitas das suspeitas
sobre o método Fritz Lang: a versão francesa
do filme, realizada por Lang ao mesmo tempo da alemã,
mas com um elenco diferente. Ver atores franceses repetindo
precisamente os mesmos movimentos dos colegas alemães
comprova qualquer duvida que se possa ter sobre a especificidade
com que Lang aborda o trabalho do ator. Em Os Mil
Olhos do Dr. Mabuse este processo chega ao limite:
cada gesto do ator existe de certa forma para construir
um elemento plástico da mise en scène,
mas também para servir a função
de reproduzir algo do corpo da obra langiana (ou seja,
um retorno a arquétipos do cineasta que já
eram antes de mais nada versões pessoais de arquétipos
pulp).
Não surpreende, portanto, que cada personagem
seja ele próprio um ator a desempenhar uma função
bem específica na trama, a começar pelo
vilão que se multiplica em diversos papéis
e que sonha em poder desempenhar o papel do famoso Mabuse
(nota-se a evolução de Mabuse de um corpo
para uma idéia, para um mito cinematográfico).
A exceção à primeira vista é
a do milionário americano, a figura inocente,
à parte da trama, mas ele termina por se revelar
o maior ator de todos de maneira extra-diegética,
a começar pela sua germanização
(Lang, se quisesse, certamente não teria dificuldades
em arranjar um ator alemão que fosse convincente
como americano) completada pela atuação
anti-naturalista de Peter Van Eyck. Este não-ator
só competira com o vendedor de seguros picareta
na forma como se adapta confortavelmente ao papel que
desempenhara: o falso herói, o falso americano,
o falso inocente. Portanto, se ainda havia vestígios
de um classicismo em Lang (hipótese bastante
discutível que deixamos para as antologias levantar)
, Os Mil Olhos do Dr. Mabuse os implode de vez.
Se apenas Hawks rivaliza com Lang durante seu período
ativo na forma como cada filme escancara a consciência
de ser parte de uma obra em progresso, Os Mil Olhos
do Dr. Mabuse seria o Hatari! langiano. O
filme onde a autoconsciência é jogada em
primeiro plano, em que cada elemento da obra é
desnudado como nunca, o cineasta-performer encara
o próprio mito e faz o seu funeral (Os Mil
Olhos do Dr. Mabuse é talvez o mais negativo
dos filmes-testamento). Próximo passo: Lang passará
para frente das câmeras e se tornara mito puro
(se não fúnebre) em O Desprezo,
de Godard.
1960 foi também o ano em que Michael Powell lançou
A Tortura do Medo. Diz muito sobre aquele momento
do cinema que dois mestres como Lang e Powell possam
ter realizado tais filmes quase ao mesmo tempo. São
ambos indiciamentos de todo aparato cinematográfico
e por conseqüência de todo o processo-cinema.
Se a obra toda de Lang pode ser vista como um longo
arquivo sobre o mal, em Os Mil Olhos do Dr. Mabuse
o mal é o meio. Mabuse agora é um mito
cinematográfico, ele não é propriamente
o vilão do filme mas o ideal (de imagem) que
o guia. Pode-se dizer que o vilão corteja a imagem
de Mabuse. Para se apossar dela, precisa dominar todas
as imagens do Hotel Luxor. O cenário central
do último Lang será uma espécie
de casa de espelhos onde nenhuma ação
passa sem ser observada. Há um profundo pessimismo
aqui, não se trata apenas de o vilão lançar
mão de equipamento cinematográfico, mas
de como Lang (assim como Powell em seu filme) equipara
o seu trabalho ao do falso Mabuse. A imagem dominante
do filme não é tanto das câmeras
escondidas quanto do espelho que permite ao milionário
americano observar o quarto da amante. Se há
algo de torpe no mecanismo como o próprio personagem
sugere, é algo que se estende ao próprio
filme. Há algo de desagradável aqui, de
filme doente apesar de não chegarmos ao radicalismo
que o filme de Powell atinge, em parte porque Lang ainda
trabalha dentro do registro de gênero, mesmo que
aja de forma a sabotá-lo com freqüência.
Se para muitos este é o momento em que o cinema
aproxima-se do seu apogeu, para Lang é quando
diagnostica-se um mal-estar na imagem. Algo que o futuro
viria comprovar, basta pensarmos no destino da obra
final de Fritz Lang: a série Mabuse se degenerará
na série de James Bond (que o futuro eterno Goldfinger
Gert Frobe interprete aqui o Inspetor Kraus deixa a
conexão ainda mais clara), enquanto O Tigre
de Bengala será pasteurizado na série
Indiana Jones. Mas estes são apenas os efeitos
mais óbvios, as conseqüências no cinema
do que Lang diagnostica, mas nem de longe as mais apocalípticas.
De certa forma é a televisão – que antes
já dera as caras como uma espécie de fantasma
em No Silêncio de uma Cidade – que está
no centro aqui. O desejo pela visão é
o que domina cada personagem aqui (o vilão chega
a se fingir de cego para poder enxergar mais), toda
a mise en scène do filme trabalha de forma
a ampliar a visão. Mas aqueles que mais querem
ver são os que menos vêem (o milionário,
o policial, mesmo o falso Mabuse); o único que
tem completo sucesso na sua busca pela visão
é o mais modesto: o cínico vendedor de
seguros. É como se cada personagem-ator estivesse
tão preso a seu próprio papel que sua
visão fosse bloqueada. É a um certo ideário
da televisão que Lang retorna aqui, aquele que
Serge Daney diz dominado pelo visual no lugar da imagem
(visual sendo aquilo que se decodifica imediatamente,
que dispensa o trabalho de ver), logo algo que não
pede pela visão (Mabuse para melhor ver se finge
de cego porque este visual pede por uma certa cegueira).
A única ação diante do espelho
se dá quando o espectador vê uma mentira,
mas ainda há uma ação possível,
assim como ainda temos nosso espião picareta
que percebe as nuances que seus colegas de atuação
muito preocupados consigo mesmos deixam escapar, mas
o mal-estar da imagem já está lá
como anúncio de que em breve as coisas não
serão tão simples. Este testamento de
Lang passou batido na época e permanece bastante
obscuro até hoje. O único que parece ter
prestado a atenção foi Jean-Luc Godard,
que mais de vinte anos mais tarde realizou o subestimado
Detetive , em que Jean-Pierre Léaud tenta
tudo enxergar num hotel bastante similar ao Luxor, mas
nada vê.
Filipe Furtado
(DVD Magnus Opus)
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