OS MIL OLHOS DO DR. MABUSE
Fritz Lang, Die Tausend Augen des Dr. Mabuse, Alemanha, 1960

Através do Espelho

Tudo neste último filme de Fritz Lang é uma questão de performance e visão, tanto da parte dos personagens quanto do próprio cineasta. Realizado a contra gosto, num momento em que a carreira americana de Lang nos EUA havia sido interrompida – por conta das transformações da indústria que tornaram praticamente impossível de se realizar dentro dos grandes estúdios o tipo de filme em que Lang vinha se especializando –, trata-se paradoxalmente do verdadeiro filme de exílio de Lang, um amargo retorno à antiga pátria que ele vê com maus olhos. Não surpreende que Lang isole a maior parte da ação num único espaço (o Hotel Luxor), como também construa ele sobre uma clara base histórica (um plano nazista de espionagem e chantagem), dando continuidade ao projeto, já esboçado nos dois filmes indianos, de historicizar a primeira fase de sua carreira.

Como o cineasta "performa"? Se expondo como em nenhum outro filme. Não é apenas as personagens que podemos ver através do espelho, mas o próprio cineasta. O desgosto de Lang com a sociedade alemã está exposto a cada fotograma de Os Mil Olhos do Dr. Mabuse, mas as coisas não se encerram por aí. Lang força a cada instante a comparação com os filmes anteriores da série, a começar por fazer do Inspetor Klaus um novo Inspetor Lohman (o policial de O Testamento do Dr. Mabuse e M). A idéia de imitação transcorre em todo este último Mabuse langiano, a cada seqüência do filme aparece uma afirmação de Lang de que é possível reproduzir sua obra alemã. No DVD de O Testamento do Dr. Mabuse lançado nos EUA pela Criterion, temos acesso a um material que nos confirma muitas das suspeitas sobre o método Fritz Lang: a versão francesa do filme, realizada por Lang ao mesmo tempo da alemã, mas com um elenco diferente. Ver atores franceses repetindo precisamente os mesmos movimentos dos colegas alemães comprova qualquer duvida que se possa ter sobre a especificidade com que Lang aborda o trabalho do ator. Em Os Mil Olhos do Dr. Mabuse este processo chega ao limite: cada gesto do ator existe de certa forma para construir um elemento plástico da mise en scène, mas também para servir a função de reproduzir algo do corpo da obra langiana (ou seja, um retorno a arquétipos do cineasta que já eram antes de mais nada versões pessoais de arquétipos pulp).

Não surpreende, portanto, que cada personagem seja ele próprio um ator a desempenhar uma função bem específica na trama, a começar pelo vilão que se multiplica em diversos papéis e que sonha em poder desempenhar o papel do famoso Mabuse (nota-se a evolução de Mabuse de um corpo para uma idéia, para um mito cinematográfico). A exceção à primeira vista é a do milionário americano, a figura inocente, à parte da trama, mas ele termina por se revelar o maior ator de todos de maneira extra-diegética, a começar pela sua germanização (Lang, se quisesse, certamente não teria dificuldades em arranjar um ator alemão que fosse convincente como americano) completada pela atuação anti-naturalista de Peter Van Eyck. Este não-ator só competira com o vendedor de seguros picareta na forma como se adapta confortavelmente ao papel que desempenhara: o falso herói, o falso americano, o falso inocente. Portanto, se ainda havia vestígios de um classicismo em Lang (hipótese bastante discutível que deixamos para as antologias levantar) , Os Mil Olhos do Dr. Mabuse os implode de vez. Se apenas Hawks rivaliza com Lang durante seu período ativo na forma como cada filme escancara a consciência de ser parte de uma obra em progresso, Os Mil Olhos do Dr. Mabuse seria o Hatari! langiano. O filme onde a autoconsciência é jogada em primeiro plano, em que cada elemento da obra é desnudado como nunca, o cineasta-performer encara o próprio mito e faz o seu funeral (Os Mil Olhos do Dr. Mabuse é talvez o mais negativo dos filmes-testamento). Próximo passo: Lang passará para frente das câmeras e se tornara mito puro (se não fúnebre) em O Desprezo, de Godard.

1960 foi também o ano em que Michael Powell lançou A Tortura do Medo. Diz muito sobre aquele momento do cinema que dois mestres como Lang e Powell possam ter realizado tais filmes quase ao mesmo tempo. São ambos indiciamentos de todo aparato cinematográfico e por conseqüência de todo o processo-cinema. Se a obra toda de Lang pode ser vista como um longo arquivo sobre o mal, em Os Mil Olhos do Dr. Mabuse o mal é o meio. Mabuse agora é um mito cinematográfico, ele não é propriamente o vilão do filme mas o ideal (de imagem) que o guia. Pode-se dizer que o vilão corteja a imagem de Mabuse. Para se apossar dela, precisa dominar todas as imagens do Hotel Luxor. O cenário central do último Lang será uma espécie de casa de espelhos onde nenhuma ação passa sem ser observada. Há um profundo pessimismo aqui, não se trata apenas de o vilão lançar mão de equipamento cinematográfico, mas de como Lang (assim como Powell em seu filme) equipara o seu trabalho ao do falso Mabuse. A imagem dominante do filme não é tanto das câmeras escondidas quanto do espelho que permite ao milionário americano observar o quarto da amante. Se há algo de torpe no mecanismo como o próprio personagem sugere, é algo que se estende ao próprio filme. Há algo de desagradável aqui, de filme doente apesar de não chegarmos ao radicalismo que o filme de Powell atinge, em parte porque Lang ainda trabalha dentro do registro de gênero, mesmo que aja de forma a sabotá-lo com freqüência. Se para muitos este é o momento em que o cinema aproxima-se do seu apogeu, para Lang é quando diagnostica-se um mal-estar na imagem. Algo que o futuro viria comprovar, basta pensarmos no destino da obra final de Fritz Lang: a série Mabuse se degenerará na série de James Bond (que o futuro eterno Goldfinger Gert Frobe interprete aqui o Inspetor Kraus deixa a conexão ainda mais clara), enquanto O Tigre de Bengala será pasteurizado na série Indiana Jones. Mas estes são apenas os efeitos mais óbvios, as conseqüências no cinema do que Lang diagnostica, mas nem de longe as mais apocalípticas.

De certa forma é a televisão – que antes já dera as caras como uma espécie de fantasma em No Silêncio de uma Cidade – que está no centro aqui. O desejo pela visão é o que domina cada personagem aqui (o vilão chega a se fingir de cego para poder enxergar mais), toda a mise en scène do filme trabalha de forma a ampliar a visão. Mas aqueles que mais querem ver são os que menos vêem (o milionário, o policial, mesmo o falso Mabuse); o único que tem completo sucesso na sua busca pela visão é o mais modesto: o cínico vendedor de seguros. É como se cada personagem-ator estivesse tão preso a seu próprio papel que sua visão fosse bloqueada. É a um certo ideário da televisão que Lang retorna aqui, aquele que Serge Daney diz dominado pelo visual no lugar da imagem (visual sendo aquilo que se decodifica imediatamente, que dispensa o trabalho de ver), logo algo que não pede pela visão (Mabuse para melhor ver se finge de cego porque este visual pede por uma certa cegueira). A única ação diante do espelho se dá quando o espectador vê uma mentira, mas ainda há uma ação possível, assim como ainda temos nosso espião picareta que percebe as nuances que seus colegas de atuação muito preocupados consigo mesmos deixam escapar, mas o mal-estar da imagem já está lá como anúncio de que em breve as coisas não serão tão simples. Este testamento de Lang passou batido na época e permanece bastante obscuro até hoje. O único que parece ter prestado a atenção foi Jean-Luc Godard, que mais de vinte anos mais tarde realizou o subestimado Detetive , em que Jean-Pierre Léaud tenta tudo enxergar num hotel bastante similar ao Luxor, mas nada vê.


Filipe Furtado

(DVD Magnus Opus)