OS NIBELUNGOS: A MORTE DE SIEGFRIED &
A VINGANÇA DE KRIEMHILD

Fritz Lang, Siegfrieds Tod & Kriemhilds Rache, Alemanha, 1924

O diabo, provavelmente

Com sua cidade magnificamente projetada, a engenhosidade deste filme de Lang está numa ironia que vem pela caricaturização das grandes estruturas erguidas a partir da ascensão do capitalismo, sejam as próprias lógicas de funcionamento perpetradas por ele, sejam as leituras de oposição esquerdista, que culminam na emergência de um outro sistema: o socialismo. Na simplificação do que seria a "macro-estrutura" deste sistema econômico, Fritz Lang desenha em traços simples a elite e os trabalhadores, organizando-os espacialmente na cidade cuja própria constituição reflete sua lógica propulsora, e chama princípios religiosos para interceder nos possíveis confrontos entre estes. E embora a espinha dorsal de Metropolis como ele é lembrado seja estes "confrontos entre classes", é a cidade sua estrela maior. Não é à toa que sua imagem é o grande legado do filme a uma imaginação futurista que floresceria no cinema e fora dele. Projetada pelo cérebro de uns e executada pelas mãos de outros, é dos abismos entre estas partes que ela sofre, correndo o risco de quem sabe um dia sucumbir neste vasto espaço que separa os Jardins dos Prazeres dos senhores da cidade dos trabalhadores.

Vivendo nas profundezas, os trabalhadores sofrem o inferno do trabalho desumano e esperam pela chegada do tal "mediador", aquele que, segundo Maria, líder "espiritual" dos trabalhadores, faria a tão sonhada união entre o "cérebro" e as "mãos". Há uma qualquer conotação bíblica nas metáforas empreendidas pelo filme, ilustradas pela figura santificada da personagem de Maria, que anuncia a chegada de um mediador, pela imagem do "paraíso", aquele "Jardim do Éden" para a diversão dos senhores, e pela presença da catedral, com seus esqueletos representando os sete pecados mortais, na qual há uma anunciação do apocalipse. Mas é na exaltação do Amor, aquele capaz de promover a compreensão e apoios mútuos entre as partes, aquele capaz de redimir todas os sofrimentos e conflitos (ou aquele capaz de fazer o coração de Freder apaixonar-se pelos encantos de Maria, ou de fazer Rotwang despender todas as suas energias para criar um robô humanóide que pudesse substituir sua amada falecida), que o principal sentido "religioso" do filme é entoado.

E a compreensão se dá, após uma série de intrigas e tramas que se desenrolam. Freder promove o aperto de mão entre seu pai, senhor de Metrópolis, e os trabalhadores. Este final reconciliatório, que desagradava até o próprio Lang (ver entrevista aos Cahiers du Cinéma nš 99, setembro/1959), pode ser considerado não apenas utópico, como conservador. No entanto, é possível ver nele também a silhueta de uma grande compreensão em linhas gerais do funcionamento do capitalismo. Uma parte não vive sem a outra. E por mais que tal colocação possa engendrar a resignação, ela pode também originar um entendimento que provoque uma reformulação do status quo. Não esqueçamos que Rotwang a princípio projeta robôs com o intuito de substituir os trabalhadores. Muito mais por uma razão de eficiência e resolução de problemas do que por humanidade, é certo, embora, apesar de toda a desconfiança em relação aos poderes da ciência, haja aí o desenho de um futuro possível para uma cidade-máquina. Este futuro, no entanto, reside na capacidade dos homens de estabelecerem laços, de exercerem sua humanidade (ou a "torre de babel" perecerá). Rotwang talvez não viesse a ter tão vis intentos com seu robô se não tivesse perdido sua amada. Não teria se feito tão amargo, não teria o feito tão humanizado. O grande apocalipse que o filme anuncia, na sua projeção do futuro para muito além de 1927, é, portanto, a perda dos sentimentos, é uma determinada obscuridade e demonização da alma que a supervalorização das máquinas, do poder, do lucro, e o esquecimento do que faz de um homem um homem, pode gerar.

Na parte final do filme, Joh, o senhor da cidade, desesperado, pergunta onde está seu filho e diz que "amanhã todos perguntarão onde estão seus filhos". E esta é a sombra que, a um limite, toda ficção científica anuncia, mas que Lang torna muito mais espessa com suas problemáticas de amor e ética. O perigo das invenções do homem ultrapassarem o homem e este perder sua humanidade. E a diferença de Metropolis e o fascínio que ele provoca, está a meu ver na preocupação concedida mais aos personagens e aos conflitos entre eles do que à ciência e seus conflitos com os homens. E na admiração da fantástica cidade muito mais como organismo vivo do que como grande indicador do avanço tecnológico absurdo e do conseqüente declínio que estaria por vir. O filme acaba no aperto de mãos. Não interessa muito a Lang saber o que se dará depois disso, mas sim que se dará pautado numa compreensão e numa união. Por mais "falsa" que seja a conclusão quando se pensa no real desenrolar dos fatos no mundo, ela funciona como o arremate de uma alegoria, de um aviso aos homens. O filme todo está mais preocupado com o que anuncia do que com o que narra. Sua história não é tão importante quanto suas inferências, que podem ser refletidas no mundo. E é por isso talvez que o filme sobreviva com tanto impacto, que ele não corre o risco de se desatualizar e continue encantando quem se esbarra com ele. Estruturado sobre um fascínio visual e emotivo, Metropolis é uma obra pra ser fruída com encantamento e nada mais...


Tatiana Monassa

(DVD Magnus Opus e Continental; VHS Continental)

OBS: Texto estruturado sobre o que se acredita hoje ser Metropolis em termos de material imagético e sonoro, agrupando-se todas as informações atualmente disponíveis, pois que o filme, no sentido autoral, está perdido e o que sobrevivem são diversas versões, picotadas ou "restauradas". No Brasil, ele está disponível em DVD e VHS na sua versão mais pobre, que, apesar de ter 139 min (a versão original, segundo Lang, chegava perto de 3 horas de duração) corre em velocidade mais lenta que o normal. A versão restaurada mais completa hoje (a da Kino Films, por Enno Patalas e Martin Koerber, de 2000) tem 118 min, correndo na velocidade original de 20 quadros/segundo.