O diabo, provavelmente
Com sua cidade magnificamente projetada, a engenhosidade
deste filme de Lang está numa ironia que vem
pela caricaturização das grandes estruturas
erguidas a partir da ascensão do capitalismo,
sejam as próprias lógicas de funcionamento
perpetradas por ele, sejam as leituras de oposição
esquerdista, que culminam na emergência de um
outro sistema: o socialismo. Na simplificação
do que seria a "macro-estrutura" deste sistema econômico,
Fritz Lang desenha em traços simples a elite
e os trabalhadores, organizando-os espacialmente na
cidade cuja própria constituição
reflete sua lógica propulsora, e chama princípios
religiosos para interceder nos possíveis confrontos
entre estes. E embora a espinha dorsal de Metropolis
como ele é lembrado seja estes "confrontos entre
classes", é a cidade sua estrela maior. Não
é à toa que sua imagem é o grande
legado do filme a uma imaginação futurista
que floresceria no cinema e fora dele. Projetada pelo
cérebro de uns e executada pelas mãos
de outros, é dos abismos entre estas partes que
ela sofre, correndo o risco de quem sabe um dia sucumbir
neste vasto espaço que separa os Jardins dos
Prazeres dos senhores da cidade dos trabalhadores.
Vivendo nas profundezas, os trabalhadores sofrem o inferno
do trabalho desumano e esperam pela chegada do tal "mediador",
aquele que, segundo Maria, líder "espiritual"
dos trabalhadores, faria a tão sonhada união
entre o "cérebro" e as "mãos". Há
uma qualquer conotação bíblica
nas metáforas empreendidas pelo filme, ilustradas
pela figura santificada da personagem de Maria, que
anuncia a chegada de um mediador, pela imagem do "paraíso",
aquele "Jardim do Éden" para a diversão
dos senhores, e pela presença da catedral, com
seus esqueletos representando os sete pecados mortais,
na qual há uma anunciação do apocalipse.
Mas é na exaltação do Amor, aquele
capaz de promover a compreensão e apoios mútuos
entre as partes, aquele capaz de redimir todas os sofrimentos
e conflitos (ou aquele capaz de fazer o coração
de Freder apaixonar-se pelos encantos de Maria, ou de
fazer Rotwang despender todas as suas energias para
criar um robô humanóide que pudesse substituir
sua amada falecida), que o principal sentido "religioso"
do filme é entoado.
E a compreensão se dá, após uma
série de intrigas e tramas que se desenrolam.
Freder promove o aperto de mão entre seu pai,
senhor de Metrópolis, e os trabalhadores. Este
final reconciliatório, que desagradava até
o próprio Lang (ver entrevista aos Cahiers du
Cinéma nš 99, setembro/1959), pode ser considerado
não apenas utópico, como conservador.
No entanto, é possível ver nele também
a silhueta de uma grande compreensão em linhas
gerais do funcionamento do capitalismo. Uma parte não
vive sem a outra. E por mais que tal colocação
possa engendrar a resignação, ela pode
também originar um entendimento que provoque
uma reformulação do status quo.
Não esqueçamos que Rotwang a princípio
projeta robôs com o intuito de substituir os trabalhadores.
Muito mais por uma razão de eficiência
e resolução de problemas do que por humanidade,
é certo, embora, apesar de toda a desconfiança
em relação aos poderes da ciência,
haja aí o desenho de um futuro possível
para uma cidade-máquina. Este futuro, no entanto,
reside na capacidade dos homens de estabelecerem laços,
de exercerem sua humanidade (ou a "torre de babel" perecerá).
Rotwang talvez não viesse a ter tão vis
intentos com seu robô se não tivesse perdido
sua amada. Não teria se feito tão amargo,
não teria o feito tão humanizado. O grande
apocalipse que o filme anuncia, na sua projeção
do futuro para muito além de 1927, é,
portanto, a perda dos sentimentos, é uma determinada
obscuridade e demonização da alma que
a supervalorização das máquinas,
do poder, do lucro, e o esquecimento do que faz de um
homem um homem, pode gerar.
Na parte final do filme, Joh, o senhor da cidade, desesperado,
pergunta onde está seu filho e diz que "amanhã
todos perguntarão onde estão seus filhos".
E esta é a sombra que, a um limite, toda ficção
científica anuncia, mas que Lang torna muito
mais espessa com suas problemáticas de amor e
ética. O perigo das invenções do
homem ultrapassarem o homem e este perder sua humanidade.
E a diferença de Metropolis e o fascínio
que ele provoca, está a meu ver na preocupação
concedida mais aos personagens e aos conflitos entre
eles do que à ciência e seus conflitos
com os homens. E na admiração da fantástica
cidade muito mais como organismo vivo do que como grande
indicador do avanço tecnológico absurdo
e do conseqüente declínio que estaria por
vir. O filme acaba no aperto de mãos. Não
interessa muito a Lang saber o que se dará depois
disso, mas sim que se dará pautado numa compreensão
e numa união. Por mais "falsa" que seja a conclusão
quando se pensa no real desenrolar dos fatos no mundo,
ela funciona como o arremate de uma alegoria, de um
aviso aos homens. O filme todo está mais preocupado
com o que anuncia do que com o que narra. Sua história
não é tão importante quanto suas
inferências, que podem ser refletidas no mundo.
E é por isso talvez que o filme sobreviva com
tanto impacto, que ele não corre o risco de se
desatualizar e continue encantando quem se esbarra com
ele. Estruturado sobre um fascínio visual e emotivo,
Metropolis é uma obra pra ser fruída
com encantamento e nada mais...
Tatiana Monassa
(DVD Magnus Opus e Continental;
VHS Continental)
OBS: Texto estruturado sobre o que se acredita hoje
ser Metropolis em termos de material imagético
e sonoro, agrupando-se todas as informações
atualmente disponíveis, pois que o filme, no
sentido autoral, está perdido e o que sobrevivem
são diversas versões, picotadas ou "restauradas".
No Brasil, ele está disponível em DVD
e VHS na sua versão mais pobre, que, apesar de
ter 139 min (a versão original, segundo Lang,
chegava perto de 3 horas de duração) corre
em velocidade mais lenta que o normal. A versão
restaurada mais completa hoje (a da Kino Films, por
Enno Patalas e Martin Koerber, de 2000) tem 118 min,
correndo na velocidade original de 20 quadros/segundo.
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