Talvez uma das maneiras mais
produtivas de se compreender o melodrama seja como gênero
de "ação", de superfície
e de obviedade. Como o que se articula numa linguagem
pautada no excesso, o que talvez seja um denominador
comum entre os estudiosos do melodrama. Conceito tão
paradoxal, ele é ao mesmo tempo fácil
de entender, de um lado, pois está amparado em
experiências múltiplas e palpáveis;
difícil de definir, por outro, como uma unidade
impossível.
Quando falo em termos de superfície e obviedade
gostaria muito, na verdade, que essas palavras fossem
deslocadas de seu sentido pejorativo, desqualificante.
Sonho meu, talvez, pois o próprio melodrama vem
carregado de um caráter de desqualificação
desde pelo menos a segunda metade do século XIX;
exatamente pelas suas alianças com uma matriz
popular de espetáculos de feiras, de narrativas
sentimentalistas de folhetins, carregadas, de personagens
unidimensionais. Inter-relação que justamente
deixa de herança o excesso e a grandiloqüência
como elementos fundamentais da construção
da narrativa.
Gostaria de abordar pelo menos duas maneiras que o modo
de excesso se processa no melodrama, duas que não
são as que comumente associamos ao melodrama.
Então, não vou exatamente tratar nem do
elemento musical, que tão excessivamente pontua
um melodrama canônico; nem do próprio enredo
dessas narrativas, que lidam com um repertório
de dicotomias da luta, sofrida, do bem contra o mal;
da virtude versus o pecado; dos temas do doméstico
e cotidiano, do sacrifício e da abnegação.
Prefiro me centrar em dois elementos derivativos importantes
para a articulação de um modo de excesso:
a simbolização exacerbada, sobretudo através
de metáforas pautadas por uma obviedade, e o
elemento da antecipação. São duas
vertentes mais formais que fundam a estratégia
melodramática por excelência.
A simbolização pelo que ela possibilita
como efeito metafórico de ‘presentificação’
dos elementos chaves da narrativa, quase que numa estrutura
de substituição dos conflitos e valores
em símbolos apresentados no filme com uma obviedade
estratégica e produtiva. Muitos são os
exemplos, um jarro que simboliza o amor e que se quebra
no momento em que o par começa a se distanciar
(Tudo Que o Céu Permite/All That Heaven Allows,
Douglas Sirk, 1956); uma flor roubada de um cemitério
que comprada das mãos de uma feirante anuncia
um presságio de morte (Santa entre demônios/Salón
México, Emilio Fernández, 1948), um
vidro do oratório da virgem que se quebra por
uma pedra atirada, resumindo, simbolicamente, os infortúnios
da personagem (Maria Candelária, Emilio
Fernández, 1943).
A antecipação, em alguma medida, decorre
das metáforas exacerbadas e óbvias. Seus
mecanismos são importantes pelo que estabelecem
de vínculo com as lágrimas (ou, mais especificamente
com a convocação à comoção),
seguindo aqui um raciocínio presente no artigo
"Melodrama and Tears", de Steve Neale publicado
na revista Screen1. A antecipação
também é mecanismo importante no sentido
de mobilizar uma certa permanência do gênero,
que é um pouco a linha da reflexão de
Sílvia Oroz2, quando desenvolve
a idéia de que o melodrama coloca em cena arquétipos
universais.
Abordo esses dois elementos convida pelos filmes de
Emilio Fernández, porque talvez eles sejam os
que melhor mobilizam seu uso, no contexto latinoamericano.
Os filmes de Fernández melhor que qualquer outro
trabalham com uma configuração de símbolos,
e o que deles se antecipa como emoção,
absurdamente afinada com um projeto de constituição
de uma iconografia nacional-popular. E seria no mínimo
estupidez histórica não considerar esse
movimento, uma vez que ele está no cerne do projeto
de industria cinematográfica mexicana que possibilitou
as produções de Fernández.
Os filmes de Fernández talvez sejam perfeitos
para pensar um modo de "ser melodramático",
que suscita dos espectadores uma reação
sentimental, afetiva; afetada, melhor dizendo.
A afetação indica que somos atravessados
por essas narrativas, elas nos colocam no raso das emoções,
à flor da pele. E assim o fazem pois nos mobilizam,
através dos excessos, a uma resposta sensorial,
sentimental, "física".
Excesso, simbolização e mecanismos
de antecipação
O excesso está intimamente vinculado às
matrizes históricas, populares, que colocam o
melodrama como narrativa que dá conta de uma
nova expressividade que começa a se acentuar
no contexto do século XVIII. Esse universo, mobilizado
a partir de então, "consolida o gênero
dramático das massas por excelência: o
melodrama. Esse tem sido, por meio do teatro (século
XIX), do cinema (século XX) e da TV (desde 1950)
a manifestação mais contundente de uma
busca de expressividade (psicológica e moral)
em que tudo se quer ver estampado na superfície
do mundo; na ênfase do gesto, no trejeito do rosto,
na eloqüência da voz. Apanágio do
exagero e do excesso, o melodrama é o gênero
afim às grandes revelações, às
encenações do acesso a uma verdade que
se desvenda após um sem-número de mistérios,
equívocos, pistas falsas, vilanias (...) envolvendo
toda uma pedagogia em que nosso olhar é convidado
a apreender formas mais imediatas de reconhecimento
da virtude e do pecado"3 (Xavier,
2003:39).
O que se processa é a necessidade de trazer ao
mundo as balizes de uma pedagogia do bem e do mal, num
contexto pautado pela dessacralização,
quando o que organizava a vida social e cotidiana (o
preceito religioso ou o preceito absolutista monárquico)
não mais está autorizado como tal. Nesse
contexto, o melodrama se caracteriza como uma imaginação,
uma percepção de mundo, produtiva para
canalizar e encenar as necessidades de moralização,
sob signos tanto de contestação quanto
de domesticação, vinda de uma realidade
que se organiza como pautada numa ingerência da
vida privada e cotidiana. Ou ao menos essa é
a tese de Peter Brooks4 e de Thomas
Elsaesser5 com relação
ao melodrama.
O argumento de ambos autores, sintetizados em artigos
publicados no começo dos anos 70, liga a consolidação
do melodrama, como gênero teatral e popular, com
o contexto de um mundo instável, dessacralizado,
constituindo-se, na ocidentalidade, com a Revolução
Francesa e seus desdobramentos. "Ele vem à
tona num mundo onde o imperativo tradicional da verdade
e da ética são violentamente colocados
em questão, no entanto, onde a promulgação
da verdade e da ética, sua instauração
como modo de vida, é de imediata, diária,
preocupação política."6.
Brooks, fazendo eco à tese de outros pesquisadores,
pensa o melodrama como uma das instâncias narrativas
de educação dessa "verdade"
e "ética" no mundo pós-sagrado,
que será vinculada ao universo da moralidade
e das emoções. E a imaginação
melodramática, pelo que alia de uma raiz do drama
burguês sério (a temática cotidiana
e da vida privada, tal como proposta no projeto estético
de Denis Diderot) e de uma matriz sensacionalista e
popular (pautada por um modo de excesso por excelência),
será o modo de narrativa chave para se encenar
(e construir) a consciência moderna: "Melodrama
representa tanto a urgência de ‘ressacralização’
quanto a impossibilidade de conceber uma ‘sacralidade’
que não seja em termos pessoais."7.
E é desses termos pessoais que vem a relação
com o universo das emoções, da ingerência
na vida privada, de uma articulação de
elementos narrativos que precisam ser exemplares para
alcançarem o efeito moralizante.
Mais importante ainda – tanto para Brooks quanto para
autores como Elsaesser – é que a forma de "pedagogia"
melodramática é eficiente exatamente porque
se difere de uma assepsia racionalista, consolidada
sobretudo ao longo do século XIX. Este racionalismo
asséptico segrega valorativamente o que há
de excessivo, sentimental, superficial e de uma obviedade
estratégica nas matrizes populares do melodrama.
O melodrama está vinculado com o estabelecimento
de uma relação emocional (sentimental
e sensorial) ativada pelo excesso através da
exacerbação da retórica, da gestualidade,
do ilusionismo, da música, de uma mise en
scène articulados em uma prerrogativa de
mostrar e falar tudo, reiterando sempre os valores de
virtude e bondade através de ações
que se desenrolam expressivamente. O modo de excesso
está diretamente ligado a uma exacerbação
da "cena", onde a materialidade da voz e das
palavras dos atores, cada objeto do cenário e
do figurino, da luz e dos cortes e movimentos (no palco
e na câmera) são pautados por uma grandiloqüência
e por um sentido metafórico da caracterização
do personagem. Precisamos "de pronto" enxergar
o bem e o mal, localizar na superfície da cena
e das ações as polaridades moralizantes
que se encenam no repertório estético
e temático do melodrama. Assim, mesmo que a personagem
seja uma figura marginalizada, como a personagem da
prostituta, tão recorrente nos melodramas de
Fernández e em outros filmes de ‘cabareteras’
do cinema mexicano, ela será carregada de virtudes,
será formalmente distinta do ambiente por um
jogo de elementos visuais organizados de maneira simbolicamente
óbvia. Será imediatamente vista como uma
"santa entre demônios", vestida e adornada
de maneira diferenciada.
É claramente o que entra em jogo em Salón
México, quando a personagem de Mercedes é
caracterizada no ambiente marginalizado do "salón"
(espécie de prostíbulo) com um penteado
diferente das outras prostitutas, um penteado que remete
a uma figura folclórica tradicional mexicana,
de tranças e fitas, a "china poblana".
Pelo menos duas seqüências inscrevem essa
distinção da personagem, acentuando a
diferença de Mercedes em relação
a outras prostitutas. A mais marcante delas é
um plano em que vemos uma fila de mulheres sentadas,
dispostas em diagonal no quadro, com cabelos encaracolados,
mascando chicletes, todas iguais visualmente. Mercedes
aparece na cena seguinte, com seus cabelos em trança.
A simbolização é algo presente
em quase todos os gêneros, sobretudo numa narrativa
mais clássica. Contudo, no melodrama, e é
o que atenta Elsaesser, essa investida no símbolo
é mais intensa – exacerbada – e se utiliza de
certa obviedade de metáforas, obviedade que é
profundamente estratégica. Para Elsaesser, a
ironia e a crítica muitas vezes estão
contidas nesses símbolos exagerados e eloqüentes
(essa é a análise que ele faz das obras
de Douglas Sirk e de Vincent Minnelli, por exemplo,
sobretudo em Palavras ao Vento/Written on the Wind,
Douglas Sirk, 1956).
A obviedade traz para essas metáforas uma estrutura
quase que de substituição, através
de situações paralelas e conexões
metafóricas que recuperam o que está por
acontecer. O símbolo presentifica o que ainda
está por vir na narrativa, como a pedra que quebra
o oratório da virgem em Maria Candelária,
símbolo que anuncia os infortúnios da
personagem (que afinal, morrerá exatamente apedrejada).
Ou a flor dos mortos, que Mercedes ganha e carrega em
Salón Mexico e que é o presságio
de sua própria morte. Interessante perceber que
essas cenas são exatamente o ponto de inflexão
das narrativas, o momento de mutação das
trajetórias das personagens.
Um traço marcante de utilização
do simbolismo nos filmes de Fernández é
aquele que se investe nos cabelos das personagens femininas.
Há toda uma trajetória de distinção
que se processa através dos penteados, que evocam
valores de virtude da personagem através da recuperação
de um repertório de identidade nacional popular.
Em Salón Mexico, além da já
mencionada distinção de Mercedes pela
referência aos cabelos folclóricos da "china
poblana", a personagem se diferencia quando vai visitar
a irmã caçula no internato, entrando num
"outro" México, da história
oficial, institucional, dos bem-nascidos, e deve faze-lo
com cabelos amarrados num coque e presos num chapéu.
Todo esse movimento é claramente – superficialmente
e obviamente – ressaltado pela narrativa, através
do plano de detalhe no chapéu. A cena acontece
logo depois que ela pega dinheiro no quarto de Paco,
dinheiro este que será o ‘detonador’ dos infortúnios
da heroína-prostituta.
Da mesma maneira, em As Abandonadas/Las abandonadas,
os penteados de Margot acompanham a trajetória
da personagem. De brejeira a diva (com adornos que remetem
aos raios das imagens de santas), ao coque desalinhado
da prisão, a "cabaretera" clássica
(com cabelos presos no alto e cachos soltos – exatamente
como as prostitutas comuns de Salón Mexico) e
o cabelo desgrenhado de quando senhora, já
na curva final do filme. Todos os penteados são
símbolos claros do momento da personagem e estão
densamente acentuados por closes lindamente iluminados
de seu rosto.
Além dos elementos de distinção
– e efeito metafórico de caracterização
dos valores da narrativa, através do reconhecimento
imediato do herói e das matrizes de suas virtudes
– esses símbolos, exagerados e óbvios,
funcionam como mecanismo de antecipação.
A antecipação traz um vínculo com
o suspense (a suspensão), e por isso mesmo, com
uma descarga emocional que pode vir, mais comumente
através das lágrimas, mas que será
mobilizada como um elemento de ativação
da comoção (o que no campo teórico
do melodrama se agrupa na noção de pathos/empatia
mais que na noção de identificação
ou projeção). Mas é um tipo de
suspense diferente de outras narrativas de gêneros
tradicionais, como o western, o noir,
o filme de terror. Neles, o suspense está ligado
ao que de incerto e misterioso há na narrativa,
com o que vai ser desvendado. No melodrama, o suspense
está também ligado (e talvez mais fortemente
e eficientemente) ao que já sabemos que vai acontecer
e por isso nos colocamos a espera desse acontecer. É
o suspense da ‘suspensão’, da expectativa derivada
da antecipação. O melhor exemplo nos filmes
de Fernández talvez seja em Flor Silvestre
(1943), e diz respeito a um uso muito comum no melodrama
do efeito do flashback.
Como o filme é contado em flashback, de
início então sabemos que o casal central
(personificados nos personagens interpretados por Dolores
del Rio e Pedro Armendariz) e não vai vingar,
que ele morrerá. A cena inicial é uma
Dolores del Rio mais velha com o filho adulto diante
de uma vastidão de terras, onde se põe
a contar, ao filho, a história de seu pai e de
seu amor pela terra (que o filho não chegou a
conhecer, pois quando o pai morreu, ele ainda era um
bebê).
O filme se desenrola e é marcante que reiteradas
vezes a narrativa se esmera em exaltar o amor do casal
– amor esse que justamente sabemos de início,
terá um final infeliz. Então, a cada vez
que vemos a demonstração de um amor infinito
entre os dois – algo ressaltado ao longo do filme através
de belos closes da coreografia de trocas de olhares
do casal, magnificamente emoldurados pela luz de Gabriel
Figueroa – sentimos um aperto no coração,
porque sabemos, de antemão, que o casal não
vingará. São esses, pois, closes que nos
provocam prazer e dor, e nesse contexto, as lágrimas
talvez não possam ser contidas.
Mariana Baltar
1. Steve Neale,
"Melodrama and tears", in Screen, v. 27, n.
6, novembro-dezembro, 1986.
2. Silvia Oroz, Melodrama – o cinema
de lágrimas da América Latina. Rio
Fundo Editora, 1992.
3. Ismail Xavier, O olhar e a cena.
Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues.
Cosac e Naify, p. 39.
4. Peter Brooks, The Melodramatic
Imagination. Yale University Press, 1995.
5. Thomas Elsaesser, "Tales
of sound and fury. Observations on the family melodrama",
in Gledhill (org), Home is where the heart is. Studies
in melodrama and the woman’s film. British Film
Institute, 1987. (Edição original do artigo:
1972).
6. Brooks, op. cit., p. 15.
7. Idem, p. 16
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