Entre a Virgem de Guadalupe
e a Malinche
Maria Candelaria é um dos projetos de
maior êxito da carreira de Emilio "Indio" Fernandez,
que já na alcunha assumida em seu nome registra
a que instância de discurso se filia. Trabalhando
com uma equipe que contava com o roteiro de Mauricio
Magdaleno, montagem de Gloria Schoemann, fotografia
do mestre Gabriel Figueroa, e com o casal de estrelas
mais emblemático do cinema mexicano, Dolores
del Río e Pedro Armendáriz, "El Indio"
construiu uma Nação em seus filmes. Esta
equipe projetou uma imagem do México que, seguramente,
fixou-se no imaginário latino-americano, e internacional,
por muitas décadas, e cujos vestígios
sobrevivem até hoje.
A figura do indígena foi tomada, então,
como a imagem que representava um México digno,
puro, capaz de ser mostrado ao mundo inteiro com altivez
e orgulho. Muito se empenhava o cinema mexicano em combater
a imagem tão divulgada pelo cinema americano
das primeiras décadas do século passado
de um mexicano preguiçoso, bêbado, sanguinário,
bandido, violentamente passional e sem caráter.
O indígena seria o argumento que projetaria o
novo México que nascia com a Revolução
de 1910. E lá estava ele, heróico, romântico,
nobre, resgatado do fundo da história pré-hispânica,
e completamente distante da realidade contemporânea
em que viviam as comunidades indígenas mexicanas
daquela época. Dava nomes a revistas, salas de
cinema, estúdios e distribuidoras cinematográficas,
eleito muso de um vasto repertório da música
popular e protagonista de inúmeros textos de
teatro das décadas de vinte e trinta.
No cinema, o indígena foi representado em clássicos
como Tepeyac (José Manuel Ramos, 1918),
Cuauthémoc (Manuel de la Bandera, 1919),
Janitzio (Carlos Navarro, 1934), Maria Candelaria
(Emilio "Indio" Fernández, 1943) , Maclovia
(Emilio "Indio" Fernández, 1948) ou Tizoc
(Ismael Rodriguez, 1957), dentre outros.
Logo no primeiro plano de Maria Candelaria, os
créditos são apresentados sobre um rio
por onde corre um barco ao som da música épica
de Francisco Domínguez, o mesmo de Janitzio,
filme ao qual Maria Candelaria muito se filia
(aliás, o protagonista de Janitzio, o
índio Zirahuén, foi interpretado pelo
próprio Emilio Fernández, em 1934).
A primeira seqüência mostra um artista plástico
(Alberto Galán) sendo entrevistado por uma equipe
de jornalistas interessados em sua arte indigenista.
Em uma das respostas, o pintor anuncia o filme, que
será contado em flash-back. Ao falar do quadro
de Maria Candelaria, o pintor diz que não pinta
temas, mas a vida, o que vê, México, referindo-se
à estonteante e "exótica" beleza da personagem
de Dolores del Río, "esencia de la raza mexicana,
delicada, emotiva y maravillosa". Assim vinculamos a
proposta de arte do pintor ao do próprio Fernández,
disposto a apresentar através do seu rígido
padrão de composição do quadro
cinematográfico, auxiliado pela magnificência
da fotografia de Figueroa, um México que se plasmaria
no imaginário mundial após o êxito
internacional do filme.
Esta seqüência inicia-se com planos em que
são mostradas estatuetas e máscaras pré-colombianas,
que serão fundidas ao rosto de uma modelo indígena
que está sendo pintada pelo artista. Logo se
percebe de que indígena o diretor está
tratando: esta figura histórica, patrimônio
de uma civilização, uma imagem "de pedra".
Esta idéia está muito articulada ao tipo
de proposta artística desenvolvida pelos muralistas
mexicanos, principalmente Diego Rivera, que tinha na
escolha de modelos indígenas, seu padrão
de beleza do "povo mexicano", associado à idéia
de uma "raça pura". A propósito, a atriz
de traços indígenas que aparece desnuda
em um plano desta seqüência do filme foi,
na realidade, modelo do pintor Rivera.
O casal protagonista do filme, Maria Candelaria e Lorenzo
Rafael, são magistralmente interpretados pelos
astros Dolores del Rio e Pedro Armendáriz, rostos
emblemáticos deste star-system estabelecido
com a indústria de cinema mexicano a partir do
final da década de 30, início de um período
que ficou conhecido como "época de ouro" do cinema
mexicano. Aliás, a projeção da
plástica perfeita, sob os parâmetros de
beleza ditados por Hollywood, do rosto de Dolores del
Rio na tela, já inscreve o discurso indigenista
de Emilio Fernandez num viés de glamourização
colocado pelo modelo de cinema industrial dos grandes
estúdios desta época. A figura do indígena
mexicano está, então, definitivamente
domesticada sob a beleza hollywoodiana de uma das divas
do cinema mexicano.
É muito interessante observar como o filme trabalha
dois mitos importantíssimos da cultura mexicana,
que constituem fortes arquétipos femininos desta
"mexicanidade": a Virgem de Guadalupe e a Malinche.
A santa mexicana, mestiça, considerada la
reina de Latinoamérica, la madrecita de
los mexicanos, constrói a ponte entre as
duas culturas, a indígena colonizada e a branca
colonizadora, propondo, de uma certa maneira, uma política
conciliatória entre elas. Maria Candelaria é
uma indígena que vive isolada no lago de Xochimilco,
rechaçada pelo seu povo pelo fato de ser filha
de uma indígena que se havia prostituído.
Já no início do filme, vemos sua casa
ser apedrejada por uma índia, Lupe, que se opõe
ao seu namoro com Lorenzo Rafael. Uma das pedras destrói
a imagem da Virgem de Guadalupe que Maria Candelaria
tinha em um altar. Esse apedrejamento já antecipa
e reforça a associação entre a
santa e a indígena, que ao final do filme, vai
ser morta a pedradas pelo seu povo.
A beleza da índia seduz o pintor, que encontra
seu ideal de perfeição no rosto de Maria
Candelaria. Suas ofertas para que possa pintá-la
são sempre recusadas pela indígena e pelo
seu namorado. Mais tarde, quando ela necessitar da intervenção
do pintor para tirar Lorenzo Rafael da prisão,
para onde foi conduzido por ter roubado um vestido e
medicamentos para curá-la, a indígena
vai aceitar ser retratada num quadro do pintor. Aqui
se constrói mais um sinal da associação
entre a personagem e a santa: a Virgem de Guadalupe
teve sua imagem milagrosamente impressa num manto do
indígena catequizado Juan Diego ainda no século
XVI, enquanto a indígena Maria Candelária
foi pintada no quadro do artista. A impressão
da imagem das duas, além de vincular as personagens,
instaura um sentido da idéia de "aparição"
que tais imagens articulam dentro da tradição
religiosa católica e da cultura cinematográfica
sintonizada com o star-system: da mesma forma
que a santa "aparece" como visão para o indígena1,
o rosto de Dolores del Rio "aparece" na tela, estabelecendo
uma relação entre artista e público
na ordem do mito da estrela.
A Malinche foi uma princesa azteca que, conta a história,
havia se entregado como noiva a Hernan Cortéz.
Por conta disso, foi considerada traidora e até
hoje os mexicanos mais nacionalistas atribuem o termo
malinchistas àqueles que são fervorosos
admiradores da cultura norte-americana.
No filme, Maria Candelaria, ao ter consentido em ter
seu rosto retratado pelo pintor espanhol, retoma o arquétipo
da Malinche. O quadro da indígena foi descoberto
pelo povo, que pensou ter sido também Maria Candelaria
quem serviu de modelo para o desnudo representado na
tela.
O padre local sempre intervém como mediador de
conflitos entre Maria Candelaria e os outros indígenas,
projetando a idéia de uma Igreja conciliatória.
É interessante pensarmos que a Revolução
Mexicana, embora tenha laicizado o Estado, nunca foi
um movimento que tenha constituído uma sociedade
anti-católica, pelo contrário, as relações
entre Estado e Igreja sempre foram, de uma certa maneira,
preservadas. Não podemos deixar de mencionar
o fato de que o país estava sob o governo de
Ávila Camacho (1940-1946), moderado, conciliador,
primeiro presidente pós-revolucionário
a declarar-se publicamente católico.
É também importante a participação
do padre na cena de "conciliação" entre
Maria Candelaria e a própria santa, a quem a
indígena acusa de havê-la abandonado, num
momento de desespero. O choro da imagem da santa se
une às lágrimas da personagem e provoca
a catarse necessária: sob o pranto, de dor, culpa
e arrependimento, a indígena re-afirma sua crença
na bondade e no poder da santa, reafirmando sua fé
também na Igreja Católica. Mais uma vez,
além da já colocada associação
entre as duas, as imagens reiteram a própria
história da Conquista e Colonização
da América, sob o jugo ideológico de uma
igreja conservadora e uníssona.
Se colocarmos lado a lado a representação
das duas índias do filme, Maria Candelaria e
Lupe, sua antagonista, podemos fazer algumas análises
interessantes. Partindo do próprio figurino,
vemos a protagonista usar o rebozo2
de uma forma bastante diferente de Lupe. Enquanto Maria
Candelaria envolve sua cabeça e ombros com a
peça, designando recato e pureza, como uma virgem,
sua antagonista o usa atravessado no peito, como se
remetesse à idéia das cananas3
dos revolucionários, ajudando-lhe a forjar uma
personalidade mais agressiva. Podemos notar em algumas
cenas também que Maria Candelaria, diferentemente
de Lupe, não usa sapatos, o que, segundo a tradição
de algumas tribos indígenas mexicanas, alimenta
a mulher de fertilidade, esboçada na energia
que vem da terra, símbolo da suprema fertilidade.
Desta forma, vemos trabalhada em Maria Candelária,
uma vez mais, a associação ao mito da
mãe, vinculado à imagem da Virgem de Guadalupe.
Não podemos deixar de lembrar que Maria Candelaria
é filha de uma indígena considerada impura
por seu povo, e, por isso, já traz em si essa
mácula. A idéia de que poderia haver-se
entregado ao pintor espanhol reafirma o mito da prostituta
na indígena. Temos aí, então, convergidos,
os dois arquétipos femininos fundamentais trabalhados
pelo cinema de melodrama mexicano: a mãe (na
associação da personagem à Virgem
de Guadalupe) e a prostituta (a entrega, malinchista,
ao pintor espanhol/Conquistador). Dessa forma, esses
dois arquétipos compõem duas faces da
mesma personagem: a mãe e a prostituta são,
na verdade, a mesma mulher representada, em sua leitura
reducionista, pelo ponto de vista patriarcal, machista
e misógino trabalhado pelo cinema dessa época.
Maria Candelária, além de ser um
filme espetacular, ganhador de diversos prêmios
internacionais, que, naquele momento, confirmavam a
grandiosidade do projeto cinematográfico mexicano,
é um excelente exemplo de como o repertório
de signos desta mexicanidade, que vinha se construindo
desde os anos 20, dá-se no interior de um produto
cultural, consumido por milhões de mexicanos
e latino-americanos continente afora.
Mauricio de Bragança
1. Ainda hoje
inúmeras imagens da Virgem de Guadalupe "aparecem"
por todo o território mexicano, desde em manchas
de infiltração no chão de estações
de metrô até troncos de árvores.
2. Espécie de xale mexicano de
importância fundamental na composição
do gênero feminino no país. Extremamente
popular, é uma peça do vestuário
feminino que carrega toda uma simbologia que remete
às diversas fases de vida da mulher dentro da
cultura mexicana: a jovem, a mãe, a velha. São
muito significativas a utilização do rebozo
em alguns filmes mexicanos. Cito do próprio Emilio
Fernández, em Enamorada (1946), a cena
em que Maria Felix, ao desistir do casamento com o noivo
gringo, no momento de assinar o documento, rompe o colar
de pérolas, símbolo da aristocracia em
que vivia, e ao correr em busca de seu amado revolucionário,
Pedro Armendáriz, passa pela porta de casa e
toma o rebozo da empregada, como se assumisse
sua opção pelo popular. Em La Mujer
del Puerto, de Arcady Boytler (1933), é o
rebozo jogado na pedra, na cena final, que vai
informar o público do suicídio da personagem,
que se atira ao mar. E finalmente, o clássico
filme de Roberto Gavaldón, El rebozo de Soledad.
3. A canana é uma espécie
de cinturão de balas que os revolucionários
levavam cruzado ao peito.
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