Não
injustamente, costuma-se pensar a obra de Fritz Lang
em seu período expressionista como impregnada
de uma visão negativa, sombria e pessimista,
prenúncio de um totalitarismo crescente na Alemanha:
Metropolis e M aí estão
para não me deixar mentir. O exílio forçado
ao qual Lang se lança poderia tornar ainda mais
intensa essa desilusão. Daí que as leituras
mais freqüentes sobre seu primeiro trabalho no
exterior, Liliom, o único realizado na
França, tendem a caracterizá-lo como um
filme " abissal", para usar as palavras de
Lotte Eisner, autora do livro A Tela Demoníaca.
Só que, assim como seu autor estaria vivenciando
um momento de transição ou deslocamento
geográfico (Alemanha – França – EUA),
existe em Liliom uma forte exploração
do tema de uma duplicidade ou ambigüidade inerente
à essência da vida humana. Como no próprio
temperamento da personagem título – vivida por
Charles Boyer em uma de suas atuações
mais marcantes – no qual convivem brutalidade e doçura,
alegria e tristeza, esperança e desilusão.
Essa eterna dualidade é o que existe de mais
marcante nessa visão pessoal de Lang sobre uma
peça clássica de Ferenc Molnar que já
havia sido filmada anteriormente em Hollywood por Frank
Borzage (1930) e daria origem ao musical Carrossel,
cuja versão para cinema foi conduzida por Henry
King (1956).
Se o filme inicia com imagens quase idílicas
de um parque de diversões, essa aparente felicidade
é logo quebrada por latentes conflitos que acabam
se consumando entre Liliom – inicialmente apresentado
como um simpático recepcionista de carrossel
– e o outro barraqueiro, e entre Julie, com quem Liliom
insiste em flertar, e a enciumada dona do parque. Dá-se
então a primeira das recorrentes alternâncias
entre ordem e desordem que irão suceder-se ao
longo do filme. Da mesma forma, toda possível
manifestação de felicidade é entremeada
de algum revés, como se vivencia quando, durante
seu primeiro momento romântico, Liliom e Julie
são abordados por policiais.
O que vemos a seguir é a apresentação
de uma outra faceta de Liliom, contradizente à
simpatia inicial, temos um malandro que foge ao trabalho
e bate na mulher que busca mimá-lo. Tudo que
o filme de Lang faz dali para frente é uma constante
reconstrução da personagem, à qual
vão se interpondo sucessivas facetas, mas todas
coerentes com as pluralidades inerentes à natureza
humana. Como o Liliom que passa do malandro no sentido
clássico ao criminoso em potencial, mostrando-se
acima de tudo como numa
figura que preza a liberdade e que tira a própria
vida quando na iminência dela ser privado. Até
a redenção final no céu, em um
momento em que Lang brilhantemente explora as possibilidades
de recriação da arte cinematográfica
quando a Liliom são apresentadas, através
de um filme, diferentes visões do momento em
que este bate em Julie; explicação racional
para atitudes dele vistas até então como
irracionais.
Outro tema que Lang se preocupa em tratar, não
somente em Liliom, mais que o persegue ao longo
da carreira é o da aplicação da
justiça, que viria ainda mais forte no trabalho
seguinte, Fúria (1936), já nos
Estados Unidos. Ao que vemos em Liliom, da mesma
forma que anteriormente em M, a justiça
estabelecida se mostra cada vez mais falha. A justiça
só se concretizaria através de formas
alternativas, a do submundo, em M, a divina,
em Liliom, chegando à sua ausência
ou negação completa em Fúria.
Se nos outros filmes citados a abordagem é soturna
e desesperançada, em Liliom temos um otimismo
banhado de crítica e ironia. O que a princípio
pode parecer uma seqüência de puro alívio
cômico – a visita de Liliom a uma delegacia na
qual ele se vê sujeito às mais diversas
incoerências da burocracia, como a inabilidade
do funcionário em lidar com um carimbo – acaba
por se mostrar como chave para o conjunto, ao ser refeita
quando o protagonista, após sua morte, é
levado ao céu e passa por situações
idênticas. Mesmo assim, para ele, de algum modo
finalmente se fez justiça.
Apesar de uma certa desconfiança da parte do
cineasta quanto a essa justiça divina, haja visto
a já citada ironia presente em toda a caracterização
do mundo não terreno, ao final o filme conclui
com apresentação de um equilíbrio
entre as facetas dúplices da humanidade –não
sem razão essa conclusão se dá
através de imagens de uma balança – e
de alguma forma, mesmo que tardia, do estabelecimento
de compreensão ou justiça para Liliom.
Assim, esse filme acaba se mostrando uma peça
única na carreira de Fritz Lang, um momento bastante
peculiar em sua vivência de artista, no qual este
parece acreditar ainda haver alguma forma de esperança,
e não somente uma obra menor de transição
como poderia a princípio parecer.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Magnus Opus)
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