LILIOM
Fritz Lang, Liliom, França, 1934

Não injustamente, costuma-se pensar a obra de Fritz Lang em seu período expressionista como impregnada de uma visão negativa, sombria e pessimista, prenúncio de um totalitarismo crescente na Alemanha: Metropolis e M aí estão para não me deixar mentir. O exílio forçado ao qual Lang se lança poderia tornar ainda mais intensa essa desilusão. Daí que as leituras mais freqüentes sobre seu primeiro trabalho no exterior, Liliom, o único realizado na França, tendem a caracterizá-lo como um filme " abissal", para usar as palavras de Lotte Eisner, autora do livro A Tela Demoníaca.

Só que, assim como seu autor estaria vivenciando um momento de transição ou deslocamento geográfico (Alemanha – França – EUA), existe em Liliom uma forte exploração do tema de uma duplicidade ou ambigüidade inerente à essência da vida humana. Como no próprio temperamento da personagem título – vivida por Charles Boyer em uma de suas atuações mais marcantes – no qual convivem brutalidade e doçura, alegria e tristeza, esperança e desilusão. Essa eterna dualidade é o que existe de mais marcante nessa visão pessoal de Lang sobre uma peça clássica de Ferenc Molnar que já havia sido filmada anteriormente em Hollywood por Frank Borzage (1930) e daria origem ao musical Carrossel, cuja versão para cinema foi conduzida por Henry King (1956).

Se o filme inicia com imagens quase idílicas de um parque de diversões, essa aparente felicidade é logo quebrada por latentes conflitos que acabam se consumando entre Liliom – inicialmente apresentado como um simpático recepcionista de carrossel – e o outro barraqueiro, e entre Julie, com quem Liliom insiste em flertar, e a enciumada dona do parque. Dá-se então a primeira das recorrentes alternâncias entre ordem e desordem que irão suceder-se ao longo do filme. Da mesma forma, toda possível manifestação de felicidade é entremeada de algum revés, como se vivencia quando, durante seu primeiro momento romântico, Liliom e Julie são abordados por policiais.

O que vemos a seguir é a apresentação de uma outra faceta de Liliom, contradizente à simpatia inicial, temos um malandro que foge ao trabalho e bate na mulher que busca mimá-lo. Tudo que o filme de Lang faz dali para frente é uma constante reconstrução da personagem, à qual vão se interpondo sucessivas facetas, mas todas coerentes com as pluralidades inerentes à natureza humana. Como o Liliom que passa do malandro no sentido clássico ao criminoso em potencial, mostrando-se acima de tudo como numa

figura que preza a liberdade e que tira a própria vida quando na iminência dela ser privado. Até a redenção final no céu, em um momento em que Lang brilhantemente explora as possibilidades de recriação da arte cinematográfica quando a Liliom são apresentadas, através de um filme, diferentes visões do momento em que este bate em Julie; explicação racional para atitudes dele vistas até então como irracionais.

Outro tema que Lang se preocupa em tratar, não somente em Liliom, mais que o persegue ao longo da carreira é o da aplicação da justiça, que viria ainda mais forte no trabalho seguinte, Fúria (1936), já nos Estados Unidos. Ao que vemos em Liliom, da mesma forma que anteriormente em M, a justiça estabelecida se mostra cada vez mais falha. A justiça só se concretizaria através de formas alternativas, a do submundo, em M, a divina, em Liliom, chegando à sua ausência ou negação completa em Fúria. Se nos outros filmes citados a abordagem é soturna e desesperançada, em Liliom temos um otimismo banhado de crítica e ironia. O que a princípio pode parecer uma seqüência de puro alívio cômico – a visita de Liliom a uma delegacia na qual ele se vê sujeito às mais diversas incoerências da burocracia, como a inabilidade do funcionário em lidar com um carimbo – acaba por se mostrar como chave para o conjunto, ao ser refeita quando o protagonista, após sua morte, é levado ao céu e passa por situações idênticas. Mesmo assim, para ele, de algum modo finalmente se fez justiça.

Apesar de uma certa desconfiança da parte do cineasta quanto a essa justiça divina, haja visto a já citada ironia presente em toda a caracterização do mundo não terreno, ao final o filme conclui com apresentação de um equilíbrio entre as facetas dúplices da humanidade –não sem razão essa conclusão se dá através de imagens de uma balança – e de alguma forma, mesmo que tardia, do estabelecimento de compreensão ou justiça para Liliom. Assim, esse filme acaba se mostrando uma peça única na carreira de Fritz Lang, um momento bastante peculiar em sua vivência de artista, no qual este parece acreditar ainda haver alguma forma de esperança, e não somente uma obra menor de transição como poderia a princípio parecer.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Magnus Opus)