O
tema, como sempre em Fritz Lang, é a idéia
da responsabilidade. Em seus filmes, há aqueles
que sabem que são culpados (é mais forte
do que isso, é patológico: de Mabuse a
M passando pelo "lipstick killer" de No Silêncio
de uma Cidade) e aqueles que acreditam em si mesmos
como inocentes. Mas, dos seriados mudos aos filmes americanos
feitos por encomenda, passando pelas superproduções
da UFA, Lang sempre seguiu o mesmo ponto: não
existem inocentes. Talvez tenham existido, mas não
mais. Inocência é provisória, querer
prová-la já é ser culpado. Ser
seguro de si mesmo, sucumbir à paixão
fria das idéias e ideologias, ter o ar superior
e desdenhoso daqueles que esperam por tudo, que já
tiveram de reagir a tudo, que estão "cansados
de tudo" é um estado perigoso. Perigoso para
os outros.
Serge Daney
Uma rápida descrição de Os Carrascos
Também Morrem um pequeno filme anti-nazista
de 1943, que também é sério candidato
ao melhor que Lang fez muito nos revela sobre as predileções
do seu autor: Brian Donlevy é um médico
tcheco membro da resistência que assassina o tal
carrasco do título. A Gestapo reage e abre uma
grande caçada ao responsável, que inclui
a partir de certo ponto a execução de
cidadãos tchecos a cada hora. Estamos diante
de uma estrutura cuidadosamente construída de
forma a não apresentar qualquer saída.
Não importa o que Donlevy faça, ele perderá:
não pode se entregar por razões políticas,
não pode ficar de braços cruzados por
razões morais, qualquer compromisso de meio termo
como o que a resistência termina adotando
significará uma aparente derrota.
Fritz Lang é o mais perverso dos grandes cineastas,
mais até do que Fassbinder (com quem tem bem
mais em comum do que geralmente se menciona). Não
se trata de uma perversidade gratuita, porém:
é como se Fritz Lang em algum momento no final
da década de 20 tivesse se decidido por construir
um arquivo. Como se as dores de cabeça causadas
por Metropolis o mais dúbio dos filmes
de Lang, e um que o próprio via como um fracasso
tivessem produzido no cineasta uma grande reflexão
sobre o cinema e, especificamente, sobre o cinema de
Fritz Lang. Não haverá mais, a partir
dali, espaço para Os Nibelungos ou Metropolis
na obra de Lang. Seu retorno à Alemanha, no final
da década de 50, pode ser visto exatamente como
uma tentativa de reperspectivar sua obra imatura da
década de 20 com o olhar que desenvolveu nas
ultimas três décadas. Lang partiu para
catalogar o que via no seu tempo (e não há
arquivo cinematográfico melhor no período
1930-1960); daí as altas doses de paranóia,
intriga, assassinato, conspiração, traição
e vingança que recheiam sua filmografia. Trata-se
de um trabalho pesado, mas alguém precisava assumir
tal responsabilidade. Para efetuá-lo, Lang precisou
fugir da respeitabilidade, das superproduções,
dos materiais sofisticados. Uma seqüência
que diz muito sobre o trabalho de Lang se encontra em
Almas Perversas: Edward G. Robinson, depois de
descobrir que a amante usurpou-lhe a obra, decide pela
primeira vez usá-la como modelo para um quadro
e anuncia: "Vamos chamá-lo de auto-retrato".
O arquivo que Lang construiu é profundamente
desagradável, mas como ele poderia deixar de
ser? O cinema precisa de um Lubistch, de um Renoir,
mas também de um Fritz Lang a se dedicar ao lado
menos simpático do mundo. Sua obra, de certa
forma, encontra na de Roberto Rossellini um complemento
perfeito. Enquanto na obra do italiano o imenso esforço
de historização do presente é voltado
para uma idéia de reconstrução
que se origina nos esforços da resistência
na II Guerra, na de Lang a perspectiva é mais
distante, mais de um trabalho que precisa ser feito,
um registro que tem de ser guardado.
Os Carrascos Também Morrem poderia se
chamar Toda Boa Ação Será Castigada.
O que mais esperar de um filme cuja primeira boa ação
é um assassinato clinicamente planejado? Que
Os Carrascos Também Morrem seja o reflexo
invertido de M diz muito sobre a visão
de Lang nesse momento: a polícia vira a Gestapo,
os criminosos são os bons cidadãos e o
assassino é o herói, mesmo assim assassino.
Se a obra de Lang é um grande arquivo, nada mais
natural que o momento mais rico dela (quando todos os
filmes são indiscutíveis obras-primas)
se localizar no período de 1941 a 1945, entre
O Homem que Quis Matar Hitler e Almas Perversas,
o que torna uma pena a obscuridade dos seus filmes anti-nazistas
e a falta de estudo sobre eles. Há um certo consenso
de que se trata de filmes de propaganda, logo obra menor.
É claro que Lang está reagindo de forma
direta ao que acontece na Europa no período,
mas sua apresentação do problema é
bem mais complicada do que as simplificações
de seus críticos. Há propaganda, é
claro, basta ver em Os Carrascos os discursos
de Walter Brennan excelente propaganda, vale dizer,
escrita por Bertolt Brecht , mas há também
muito mais do que isso. Estes filmes, em especial O
Homem que Quis Matar Hitler e Os Carrascos Também
Morrem, são extensões naturais do
trabalho que Lang realizou na dupla M/O Testamento
do Dr. Mabuse, sendo que estes filmes já
estendem questões que Lang catalogara no início
da década anterior (e não falamos aqui
de O Testamento do Dr. Mabuse como filme anti-nazista).
Como Jean-Louis Comolli e François Geré
já apontaram, as ações da resistência
e dos nazistas em Os Carrascos Também Morrem
impressionam pelas suas similaridades, seja de organização
ou de conseqüências para a população,
já que as boas ações terminam elas
próprias por se revelarem destrutivas. O caos
europeu radiografado neste filme é geral e trans-ideológico,
algo que se espalha pelo ar.
Ao mesmo tempo é claro o olhar que Lang lança,
que só pode partir de alguém que tinha
uma noção bem mais próxima do que
era o nazismo que a de outros cineastas que fizeram
filmes do mesmo gênero na época. São
filmes apocalípticos (como também é
Almas Perversas, da mesma época) em que
a máquina perversa de Lang está em pleno
funcionamento, e o que revelam é uma paisagem
humana desoladora. São ambos filmes de caçada
humana (o título original de O Homem que Quis
Matar Hitler é justamente Man Hunt),
filmes que funcionam em dois planos, um abstrato e outro
eminentemente físico onde o homem se vê
a cada instante mais cercado, mais sufocado. Tratam-se
de belíssimos estudos sobre o choque destes dois
estados, o confronto direto destes planos sendo a forma
como Lang encarava a guerra.
Na cena inicial de O Homem que Quis Matar Hitler,
o caçador inglês (Walter Pidgeon) mantém
Hitler na mira do seu rifle por esporte, atira com a
arma descarregada e sorri satisfeito consigo mesmo.
Trata-se de um momento langiano como poucos e diz muito
sobre a visão dele sobre o conflito. Mais do
que em qualquer outro entre os filmes do período,
o caçador inglês e o oficial alemão
(George Sanders) que o persegue são iguais, o
caçador só assumindo alguma feição
heróica de forma suicida (e inútil) na
cena final, após descobrir que a prostituta (Joan
Bennett) que o ajudara fora morta. Complacência
é um crime grave em Lang. A responsabilidade
está no centro do arquivo que o cineasta construiu:
responsabilidade do homem diante do mundo, responsabilidade
do cineasta diante do que filma. Haverá em Lang
sempre uma preocupação com as formas como
o filme pode ser usado Mabuse faz uso do aparato cinematográfico
em O Testamento do Dr. Mabuse e Os Mil Olhos
do Dr. Mabuse, por exemplo e que é precisamente
de onde deriva muito do seu rigor. Sempre existirá
o cuidado especial sobre o como filmar, sobre como
garantir que a imagem não está cruzando
a linha de responsabilidade do cineasta. A evolução
da carreira de Fritz Lang é a história
da evolução desta preocupação
que alcança a apoteose nos filmes finais cujo
formalismo é de uma ordem completamente diferente
da dos seus filmes mudos até o momento em Os
Mil Olhos do Dr. Mabuse em que o cineasta se torna
o criminoso e a câmera uma arma.
É por isso que a dupla No Silêncio de
uma Cidade e de maneira ainda mais direta Suplicio
de uma Alma ocupa na obra de Lang posição
similar a que O Cão Branco ocupa na de
Samuel Fuller. Estes radicais exercícios finais
podem não ser os melhores (apesar de passarem
perto) de seus cineastas, mas são o que nos falam
de maneira mais direta, tornando-os peças-chave
para a compreensão de sua obra. Ambos são
explorações da figura de Dana Andrews
(o ator premingeriano por excelência), que em
ambos interpreta um jornalista envolvido em algum tipo
de campanha a captura de um serial killer no
primeiro, provar que um inocente pode ser condenado
à cadeira elétrica no segundo onde se
destaca por sua desconexão perante os eventos
seja sendo julgado por assassinato, seja participando
das tramóias dos colegas, Andrews mantém
a mesma expressão de distanciamento. A atuação
de Andrews é notável justamente pelo seu
não-envolvimento, pela sua capacidade de se dissimular.
Quando recebe uma promoção como recompensa
em No Silêncio de uma Cidade, o ator sugere
indiferença, mas a câmera de Lang está
ali e registra sua satisfação. Ele acredita
não estar envolvido na corrida pelo poder dos
colegas, mas é o que joga mais longe: mesmo James
Craig demonstra uma preocupação pelo bem
estar da amante, enquanto Andrews lança a noiva
ao assassino. Trata-se oficialmente do herói,
mas terminamos vendo a dissecação do mais
negativo dos personagens langianos.
Os filmes são de certa forma um embate entre
ator e câmera. A própria mise en scène
de Lang jogará armadilhas para o ator: em Suplício
de uma Alma, será justamente a soberba de
Andrews este homem culpado que se quer inocente é
bastante rápido em passar juízo ao outro
que revelará a sua culpa. Estes filmes desenvolvem
uma dupla mise en scène, em que num plano
está a trama que é ela própria
a construção de uma armadilha enquanto
no outro está justamente esta relação
ator/autor. Não por acaso Suplício
de uma Alma trata-se do mais seco dos filmes de
Lang, aquele em que a matéria-prima bruta do
filme é exposta sem intermediários. O
julgamento, que só pode fracassar, pois nenhuma
evidência aponta para nada, dá lugar à
exploração do ator/personagem, mas também
do espectador já que não se sai impune
de um filme como este.
* * *
As antologias de cinema tendem a dividir a carreira
de Fritz Lang entre dois períodos, alemão
e norte-americano. Isto é muito limitador, pois
tende-se a valorizar por demais as condições
de produção em detrimento da evolução
de Lang como cineasta, sem contar uma sensação
de oposição boba entre cinema americano/cinema
europeu que já deixa de levar em conta um filme
realizado na França, assim como o retorno à
Alemanha (um tanto a contragosto, vale dizer) no final
dos anos 50. Mais interessante é observar como
o próprio período alemão inclui
uma ruptura radical após Metropolis, com
a carreira de Lang sendo redimensionada a partir de
Espiões. Se até ali Lang com freqüência
parecia usar seu talento de modo um tanto decorativo,
com o filme servindo ao cenário (a grande exceção
nessa fase sendo os filmes com Dr. Mabuse), as coisas
mudam de figura e há um tom bem mais claro de
direção e propósito. No período
sonoro o brilhante trabalho arquitetônico sempre
existe em favor do projeto, mas jamais é o filme.
A saída da Alemanha em 33 marca uma ruptura na
carreira de Lang que também é de razão
estética. Basta olhar Liliom, filme que
não só flerta diretamente com o realismo
poético francês, mas que é ele próprio
um filme dividido entre o tom mais realista que Lang
irá impor nos seus filmes americanos e o tom
mais fantasioso dos filmes alemães (vale dizer
que sementes deste realismo já davam as caras
em M e O Testamento do Dr. Mabuse). É
preciso dizer que Lang não terá em Hollywood
o controle sobre os filmes que tinha na Alemanha: a
grande maioria deles sofreu algum tipo de interferência
na montagem final e com freqüência nos anos
50 o cineasta teve que trabalhar com orçamentos
bastante apertados. Mesmo em Almas Perversas,
o único filme em que Lang teve controle trata-se
de um filme independente, distribuído pela Universal,
realizado por uma produtora de vida curta que Lang formou
com Joan Bennett , é bem possível ver
as relações no filme entre Edward G. Robinson
(o artista), Joan Bennett (a modelo) e Dan Dureya (o
cafetão) como um reflexo da relação
entre Lang, Bennett e Walter Wanger (marido da atriz
e produtor do filme, assim como contato da produtora
com o estúdio), resultante da paranóia
de Lang sobre a autoria final de seu próprio
filme, paranóia que viria a se justificar com
a pós-produção conturbada de O
Segredo Atrás da Porta, o próximo
e último filme da produtora formada entre
Lang e Bennett.
Tudo isso dito, a evidência é clara sobre
a superioridade na média dos filmes americanos
sobre os alemães. Não se trata de uma
superioridade da indústria americana sobre a
alemã, mas do Lang maduro em relação
ao do começo de carreira. Bem provável
que se os nazistas não tivessem chegado ao poder
e Lang tivesse tido condições de prosseguir
a carreira no país, falaríamos hoje sobre
a superioridade do Lang sonoro sobre o da era muda.
Vale também destacar que Lang é, assim
como Renoir e Ophüls, um dos poucos legítimos
cineastas transnacionais. As Aranhas (seu filme
mais antigo disponível por aqui) tinha como herói
um milionário explorador americano e incluiu
seqüências de faroeste supostamente passadas
no Peru. Em Os Espiões o herói
é inglês e partes consideráveis
do filme se passam em Londres, e mais tarde no seu retorno
à Alemanha para Os Mil Olhos do Dr. Mabuse,
outro milionário americano aparece no centro
do filme. Da mesma forma, vários dos seus filmes
americanos (O Homem que Quis Matar Hitler, Quando
Descem as Trevas, Os Carrascos Também
Morrem, Moonfleet) se passam na Europa e
ele pôde refilmar dois filmes franceses de Renoir
(A Cadela como Almas Perversas e A
Besta Humana como Desejo Humano) sem que
a transição da ação para
os EUA lhe desse qualquer dor de cabeça. Quando
perguntado se por ser alemão lhe era difícil
filmar faroestes, respondeu que eles eram a mitologia
dos americanos, como Os Nibelungos era a dos
alemães, e portanto não via problema algum,
resposta que diz muito sobre as posições
de Lang. Os faroestes que ele filmou nos EUA são
uma boa porta de entrada para observar a inutilidade
de discutir a evolução da carreira de
Lang a partir dos modos de produção. Se
Os Conquistadores e O Retorno de Frank James
se revelam filmes menores não é porque
Lang é incapaz de compreender o gênero,
e sim porque o espaço aberto que tendem a dominá-lo
vão contra o trabalho de construção
espacial que é central na mise en scène
langiana (algo que se torna claro quando em certo ponto
O Retorno de Frank James se transforma subitamente
num filme de tribunal). Na sua terceira tentativa com
O Diabo Feito Mulher, o cineasta finalmente sucede
num filme altamente estilizado, com todas as externas
feitas num estúdio numa das melhores utilizações
da falsidade dos sets em todo o cinema, um triunfo
de Lang e filme chave para compreender o movimento final
de sua carreira. Há uma profunda estilização
nos últimos Lang, o formalismo esparso que rende
filmes secos, duros. Em especial nos filmes mais realistas
(Os Corruptos, Desejo Humano, No Silêncio
de uma Cidade e Suplício de uma Alma),
Lang revela um desejo pelo essencial, pela matéria-prima
no seu estado bruto; não surpreende serem filmes
tão essenciais para aquele filho bastardo do
realismo baziniano, o MacMahonismo.
* * *
A cidade permanece peça central deste arquivo,
o espaço da ação, área onde
o mal desliza e se multiplica. Cidades como personagem
central se espalham pela filmografia de Lang: Metropolis,
M, O Testamento do Dr. Mabuse, Fúria,
O Homem que Quis Matar Hitler, Os Carrascos
Também Morrem. A cidade se multiplica num
país em O Tigre de Bengala e O Sepulcro
Indiano e depois é reduzida a um hotel em
Os Mil Olhos do Dr. Mabuse. Nos filmes com Dana
Andrews a maior das transformações acontece
e o espaço se torna plano, com a imagem parecendo
não ter mais pontos de fuga. Nestes filmes sobre
figuras auto-centradas, a imagem é só
aquilo que se obtém, o serial killer já
não aterroriza a cidade mas somente suas vítimas.
Todas estas mutações, é bom dizer,
ocorrem nos cinco filmes finais. É em M
e O Testamento do Dr. Mabuse que esta idéia
da arquitetura da cidade como base da qual a construção
do filme é erigida tem seu momento máximo
na obra de Lang. São filmes muito similares,
ligados diretamente por Lang pela opção
de fazer uso do mesmo policial, o inspetor Lohman (Otto
Wernecke), para perseguir tanto o assassino de crianças
de M quanto o Dr. Mabuse em Testamento.
Estes filmes nos mostram o Lang cartógrafo em
plenos poderes: é o mapa do arquivo, um mapa
bastante particular, onde cada situação,
cada espaço se desdobra. O fora do quadro nunca
foi tão importante para Lang quanto nestes filmes:
a cada esquina que a imagem não mostra e por
trás de cada porta podemos sentir o mesmo ar
pesado com que Lang perpassa seu filme. Não é
à toa que ambos sejam filmes sem protagonistas,
onde as narrativas se diluem numa perseguição
a uma figura turva. Nestes filmes Lang se adianta a
Jacques Tourneur no exercício de contemplação
do mal, não o mal representado num personagem,
mas uma idéia que parece preencher todo o espaço.
Anos mais tarde, John Carpenter faria um belíssimo
filme langiano, O Príncipe das Sombras
uma série quase não-narrativa de seqüências
claustrofóbicas , em que colocava o mal numa
jarra que ia aos poucos preenchendo o espaço.
Se O Testamento do Dr. Mabuse é uma obra-prima
ainda maior que M, em parte é justamente
por levar o processo mais longe. O Dr. Mabuse deixa
de ser um corpo e se torna simplesmente uma idéia,
uma espécie de vírus que assombra Berlim.
Suas ações são irracionais, visam
apenas o caos que levaria à criação
do império do crime. Mabuse, o grande manipulador,
já não age com agenda própria,
seu império não é para si. Ele
simplesmente passa de personagem para personagem, de
situação para situação.
Seus asseclas não o vêem; ele é
apenas uma voz e uma silhueta; quem olhar para ele morrerá
ou enlouquecerá, pouco importa. O grande achado
de Lang é resgatar a figura do Inspetor Lohman,
o policial metódico do filme anterior, que é
menos o protagonista do filme que sua âncora,
a figura que tenta acrescentar lógica dentro
de um inquérito irracional. O filme termina com
ele admitindo sua incapacidade de compreender a cadeia
de eventos que se apresentou até ali. Se Mabuse
domina a cidade, o trabalho arquitetônico do filme
é estabelecido por Lang de forma a nos apresentar
uma série de imagens em que o espaço ataca
o humano, seqüência por seqüência,
da armadilha que abre o filme até a porta que
é batida na cara do espectador no plano final.
Dentro deste cenário apocalíptico se ressalta
um esforço sempre interrompido de comunicação
entre as personagens. O domínio de Lang na arquitetura
da cidade existe para erguer barreiras, sejam de espaço,
sejam narrativas. Mesmo a conclusão do filme,
quando uma mensagem telefônica realizada no começo
é finalmente completada, é cortada pela
loucura do novo Mabuse ele próprio tentando
em vão se comunicar.
Fritz Lang dirigiu a melhor adaptação
para o cinema de Graham Greene (Quando Descem as
Trevas, tirada de O Ministério do Medo)
e tem muito em comum com o escritor inglês. É
uma pena que pouco tenha se estudado o lado católico
do cineasta (o mesmo vale de certa forma a Alfred Hitchcock,
com quem Lang é freqüentemente comparado).
A moral católica é um elemento forte em
diversos filmes do cineasta, que compartilha com o escritor
inglês uma espécie de catolicismo da danação.
Talvez os filmes mais exemplares sobre isso sejam a
dupla de filmes com Edward G. Robinson e Joan Bennett
(Um Retrato de Mulher e Almas Perversas),
espécie de poemas pornográficos construídos
a partir da atriz que também se completam como
grandes estudos sobre o puritanismo ("Você
sabe que nunca vi uma mulher nua", Robinson chega
a afirmar para a esposa em Almas Perversas).
No momento que o homem deseja, já está
condenado, logo não há homem inocente.
Uma comparação bem rasa entre Almas
Perversas e A Cadela, de Renoir (do qual
o filme de Lang é um remake), não
deixa dúvidas: ao contrário de Michel
Simon, Robinson jamais será visto como a vítima
de uma canalhice, ele é completamente responsável
pelos seus atos. Se há uma personagem mais simpática,
em ambos os filmes, é Bennett, em quem os homens
projetam seus desejos. Não haverá saída
irônica ou inocência possível. Bennett
cria um desequilíbrio na imagem que estabelece
o filme como obra atormentada, reflexos de um homem
que não sabe como reagir aos próprios
desejos (que o próprio Lang provavelmente tinha
seus interesses em Bennett, a mulher do produtor, adiciona
mais uma complicação). Na lógica
implacável do teorema de Lang, Robinson já
é culpado mesmo antes de encontrar a mulher,
ao menos desde o momento em que olha pela janela seu
patrão com sua jovem amante, ao final da seqüência
inicial. Tanto Um Retrato de Mulher quanto Almas
Perversas oferecem Joan Bennett como a oportunidade
para Robinson tornar concreta sua imaginação.
Se o segundo filme é mais forte é muito
por manter a repressão do personagem central
em tom morno pela maior parte do filme, antes de deixá-la
explodir no ato final. A última meia hora de
Almas Perversas talvez o entrecho de maior
densidade sustentada de toda a obra de Lang é
um mergulho na dissolução do homem, talvez
a descrição mais forte de danação
em todo o cinema: primeiro na forma com que o simpático
Robinson cuidadosamente manipula o Estado para que este
assassine Dan Dureya, para depois pagar o preço
da culpa quando a responsabilidade dos seus atos finalmente
bate. Ser vítima de uma canalhice não
autoriza Robinson a se tornar Deus (algo que o corte
original do filme deixaria ainda mais claro, onde se
via uma cena cortada em que Robinson escalava o muro
do presídio para assistir à distância
a execução de Dureya e invocava os raios
dos céus para adiantar o momento que tanto aguarda).
A Cadela é uma indiscutível obra-prima,
mas seu adorável final irônico não
tem a mesma força do encontro final entre Edward
G. Robinson e seu famigerado auto-retrato, momento
de horror em que o cinema penetra na carne, em que o
homem condenado ao limbo eterno por conta do inevitável
momento em que se viu como vítima (quando na
verdade era o culpado) se confronta com o seu destino.
Glenn Ford em Os Corruptos é outro destes
(anti-)heróis langianos, e parte do que separa
o filme de outros sobre policiais vingadores é
que Lang nunca nos deixa esquecer que Ford tem consciência
de que fora seu ato de soberba inicial (ir à
casa do gângster) que detonou a cadeia de eventos
que levou à morte da sua esposa. O filme é
esta purgação pessoal tanto quanto a busca
por vingança do personagem, e seu clímax
na verdade é a cena final com Gloria Grahame,
onde Ford pode finalmente enterrar a memória
da esposa que lhe atormenta. Os Corruptos é
o filme que marca em definitivo a virada da carreira
de Lang, basta olhar a precisão com que a cena
inicial é realizada em apenas meia dúzia
de planos. Nos filmes seguintes a imagem se tornará
ainda mais seca e dura. Já não haverá
mais espaço para jogos de luz e sombras (aquele
mais superestimado dos elementos à disposição
do diretor), mas vemos a afirmação final
de Lang como um grande cineasta figurativo. Cada elemento
presente na imagem se transforma num objeto formal riquíssimo,
são verdadeiras aulas de perspectiva, onde um
homem ou um tigre ou uma tocha são intercambiáveis,
todos elementos a serem moldados pelo cineasta. Os filmes
de fantasia deste período (Moonfleet,
O Tigre de Bengala, O Sepulcro Indiano)
revelam o prazer de Lang de manipular estes elementos,
enquanto os mais realistas os apresentam de forma mais
dura e esparsa (os dois filmes com Dana Andrews sendo
o limite desta evolução em Lang). Neste
momento é como se a obra de Lang fechasse um
círculo e retomasse as tendências da fase
alemã, mas revistas e melhoradas não
surpreende, portanto, que os últimos filmes sejam
revisões diretas dos filmes alemães
porque muito melhor inseridas numa perspectiva histórica
(estes últimos filmes alemães, assim sendo,
completam o serviço que os primeiros filmes alemães
sonoros e Os Espiões já haviam
começado). Estes filmes não são
apenas triunfos de arquitetura, mas filmes em que
reperspectivando o movimento, o gesto, e mesmo a luz
a posição do homem no espaço
é redefinida.
Filipe Furtado
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