L, O ARQUIVISTA

O tema, como sempre em Fritz Lang, é a idéia da responsabilidade. Em seus filmes, há aqueles que sabem que são culpados (é mais forte do que isso, é patológico: de Mabuse a M passando pelo "lipstick killer" de No Silêncio de uma Cidade) e aqueles que acreditam em si mesmos como inocentes. Mas, dos seriados mudos aos filmes americanos feitos por encomenda, passando pelas superproduções da UFA, Lang sempre seguiu o mesmo ponto: não existem inocentes. Talvez tenham existido, mas não mais. Inocência é provisória, querer prová-la já é ser culpado. Ser seguro de si mesmo, sucumbir à paixão fria das idéias e ideologias, ter o ar superior e desdenhoso daqueles que esperam por tudo, que já tiveram de reagir a tudo, que estão "cansados de tudo" é um estado perigoso. Perigoso para os outros.
Serge Daney


Uma rápida descrição de Os Carrascos Também Morrem – um pequeno filme anti-nazista de 1943, que também é sério candidato ao melhor que Lang fez – muito nos revela sobre as predileções do seu autor: Brian Donlevy é um médico tcheco membro da resistência que assassina o tal carrasco do título. A Gestapo reage e abre uma grande caçada ao responsável, que inclui a partir de certo ponto a execução de cidadãos tchecos a cada hora. Estamos diante de uma estrutura cuidadosamente construída de forma a não apresentar qualquer saída. Não importa o que Donlevy faça, ele perderá: não pode se entregar por razões políticas, não pode ficar de braços cruzados por razões morais, qualquer compromisso de meio termo – como o que a resistência termina adotando – significará uma aparente derrota.

Fritz Lang é o mais perverso dos grandes cineastas, mais até do que Fassbinder (com quem tem bem mais em comum do que geralmente se menciona). Não se trata de uma perversidade gratuita, porém: é como se Fritz Lang em algum momento no final da década de 20 tivesse se decidido por construir um arquivo. Como se as dores de cabeça causadas por Metropolis – o mais dúbio dos filmes de Lang, e um que o próprio via como um fracasso – tivessem produzido no cineasta uma grande reflexão sobre o cinema e, especificamente, sobre o cinema de Fritz Lang. Não haverá mais, a partir dali, espaço para Os Nibelungos ou Metropolis na obra de Lang. Seu retorno à Alemanha, no final da década de 50, pode ser visto exatamente como uma tentativa de reperspectivar sua obra imatura da década de 20 com o olhar que desenvolveu nas ultimas três décadas. Lang partiu para catalogar o que via no seu tempo (e não há arquivo cinematográfico melhor no período 1930-1960); daí as altas doses de paranóia, intriga, assassinato, conspiração, traição e vingança que recheiam sua filmografia. Trata-se de um trabalho pesado, mas alguém precisava assumir tal responsabilidade. Para efetuá-lo, Lang precisou fugir da respeitabilidade, das superproduções, dos materiais sofisticados. Uma seqüência que diz muito sobre o trabalho de Lang se encontra em Almas Perversas: Edward G. Robinson, depois de descobrir que a amante usurpou-lhe a obra, decide pela primeira vez usá-la como modelo para um quadro e anuncia: "Vamos chamá-lo de auto-retrato". O arquivo que Lang construiu é profundamente desagradável, mas como ele poderia deixar de ser? O cinema precisa de um Lubistch, de um Renoir, mas também de um Fritz Lang a se dedicar ao lado menos simpático do mundo. Sua obra, de certa forma, encontra na de Roberto Rossellini um complemento perfeito. Enquanto na obra do italiano o imenso esforço de historização do presente é voltado para uma idéia de reconstrução que se origina nos esforços da resistência na II Guerra, na de Lang a perspectiva é mais distante, mais de um trabalho que precisa ser feito, um registro que tem de ser guardado.

Os Carrascos Também Morrem poderia se chamar Toda Boa Ação Será Castigada. O que mais esperar de um filme cuja primeira boa ação é um assassinato clinicamente planejado? Que Os Carrascos Também Morrem seja o reflexo invertido de M diz muito sobre a visão de Lang nesse momento: a polícia vira a Gestapo, os criminosos são os bons cidadãos e o assassino é o herói, mesmo assim assassino. Se a obra de Lang é um grande arquivo, nada mais natural que o momento mais rico dela (quando todos os filmes são indiscutíveis obras-primas) se localizar no período de 1941 a 1945, entre O Homem que Quis Matar Hitler e Almas Perversas, o que torna uma pena a obscuridade dos seus filmes anti-nazistas e a falta de estudo sobre eles. Há um certo consenso de que se trata de filmes de propaganda, logo obra menor. É claro que Lang está reagindo de forma direta ao que acontece na Europa no período, mas sua apresentação do problema é bem mais complicada do que as simplificações de seus críticos. Há propaganda, é claro, basta ver em Os Carrascos os discursos de Walter Brennan – excelente propaganda, vale dizer, escrita por Bertolt Brecht –, mas há também muito mais do que isso. Estes filmes, em especial O Homem que Quis Matar Hitler e Os Carrascos Também Morrem, são extensões naturais do trabalho que Lang realizou na dupla M/O Testamento do Dr. Mabuse, sendo que estes filmes já estendem questões que Lang catalogara no início da década anterior (e não falamos aqui de O Testamento do Dr. Mabuse como filme anti-nazista). Como Jean-Louis Comolli e François Geré já apontaram, as ações da resistência e dos nazistas em Os Carrascos Também Morrem impressionam pelas suas similaridades, seja de organização ou de conseqüências para a população, já que as boas ações terminam elas próprias por se revelarem destrutivas. O caos europeu radiografado neste filme é geral e trans-ideológico, algo que se espalha pelo ar.

Ao mesmo tempo é claro o olhar que Lang lança, que só pode partir de alguém que tinha uma noção bem mais próxima do que era o nazismo que a de outros cineastas que fizeram filmes do mesmo gênero na época. São filmes apocalípticos (como também é Almas Perversas, da mesma época) em que a máquina perversa de Lang está em pleno funcionamento, e o que revelam é uma paisagem humana desoladora. São ambos filmes de caçada humana (o título original de O Homem que Quis Matar Hitler é justamente Man Hunt), filmes que funcionam em dois planos, um abstrato e outro eminentemente físico onde o homem se vê a cada instante mais cercado, mais sufocado. Tratam-se de belíssimos estudos sobre o choque destes dois estados, o confronto direto destes planos sendo a forma como Lang encarava a guerra.

Na cena inicial de O Homem que Quis Matar Hitler, o caçador inglês (Walter Pidgeon) mantém Hitler na mira do seu rifle por esporte, atira com a arma descarregada e sorri satisfeito consigo mesmo. Trata-se de um momento langiano como poucos e diz muito sobre a visão dele sobre o conflito. Mais do que em qualquer outro entre os filmes do período, o caçador inglês e o oficial alemão (George Sanders) que o persegue são iguais, o caçador só assumindo alguma feição heróica de forma suicida (e inútil) na cena final, após descobrir que a prostituta (Joan Bennett) que o ajudara fora morta. Complacência é um crime grave em Lang. A responsabilidade está no centro do arquivo que o cineasta construiu: responsabilidade do homem diante do mundo, responsabilidade do cineasta diante do que filma. Haverá em Lang sempre uma preocupação com as formas como o filme pode ser usado – Mabuse faz uso do aparato cinematográfico em O Testamento do Dr. Mabuse e Os Mil Olhos do Dr. Mabuse, por exemplo – e que é precisamente de onde deriva muito do seu rigor. Sempre existirá o cuidado especial sobre o ‘como filmar’, sobre como garantir que a imagem não está cruzando a linha de responsabilidade do cineasta. A evolução da carreira de Fritz Lang é a história da evolução desta preocupação que alcança a apoteose nos filmes finais – cujo formalismo é de uma ordem completamente diferente da dos seus filmes mudos – até o momento em Os Mil Olhos do Dr. Mabuse em que o cineasta se torna o criminoso e a câmera uma arma.

É por isso que a dupla No Silêncio de uma Cidade e – de maneira ainda mais direta – Suplicio de uma Alma ocupa na obra de Lang posição similar a que O Cão Branco ocupa na de Samuel Fuller. Estes radicais exercícios finais podem não ser os melhores (apesar de passarem perto) de seus cineastas, mas são o que nos falam de maneira mais direta, tornando-os peças-chave para a compreensão de sua obra. Ambos são explorações da figura de Dana Andrews (o ator premingeriano por excelência), que em ambos interpreta um jornalista envolvido em algum tipo de campanha – a captura de um serial killer no primeiro, provar que um inocente pode ser condenado à cadeira elétrica no segundo – onde se destaca por sua desconexão perante os eventos – seja sendo julgado por assassinato, seja participando das tramóias dos colegas, Andrews mantém a mesma expressão de distanciamento. A atuação de Andrews é notável justamente pelo seu não-envolvimento, pela sua capacidade de se dissimular. Quando recebe uma promoção como recompensa em No Silêncio de uma Cidade, o ator sugere indiferença, mas a câmera de Lang está ali e registra sua satisfação. Ele acredita não estar envolvido na corrida pelo poder dos colegas, mas é o que joga mais longe: mesmo James Craig demonstra uma preocupação pelo bem estar da amante, enquanto Andrews lança a noiva ao assassino. Trata-se oficialmente do herói, mas terminamos vendo a dissecação do mais negativo dos personagens langianos.

Os filmes são de certa forma um embate entre ator e câmera. A própria mise en scène de Lang jogará armadilhas para o ator: em Suplício de uma Alma, será justamente a soberba de Andrews – este homem culpado que se quer inocente é bastante rápido em passar juízo ao outro – que revelará a sua culpa. Estes filmes desenvolvem uma dupla mise en scène, em que num plano está a trama que é ela própria a construção de uma armadilha enquanto no outro está justamente esta relação ator/autor. Não por acaso Suplício de uma Alma trata-se do mais seco dos filmes de Lang, aquele em que a matéria-prima bruta do filme é exposta sem intermediários. O julgamento, que só pode fracassar, pois nenhuma evidência aponta para nada, dá lugar à exploração do ator/personagem, mas também do espectador já que não se sai impune de um filme como este.

* * *

As antologias de cinema tendem a dividir a carreira de Fritz Lang entre dois períodos, alemão e norte-americano. Isto é muito limitador, pois tende-se a valorizar por demais as condições de produção em detrimento da evolução de Lang como cineasta, sem contar uma sensação de oposição boba entre cinema americano/cinema europeu que já deixa de levar em conta um filme realizado na França, assim como o retorno à Alemanha (um tanto a contragosto, vale dizer) no final dos anos 50. Mais interessante é observar como o próprio período alemão inclui uma ruptura radical após Metropolis, com a carreira de Lang sendo redimensionada a partir de Espiões. Se até ali Lang com freqüência parecia usar seu talento de modo um tanto decorativo, com o filme servindo ao cenário (a grande exceção nessa fase sendo os filmes com Dr. Mabuse), as coisas mudam de figura e há um tom bem mais claro de direção e propósito. No período sonoro o brilhante trabalho arquitetônico sempre existe em favor do projeto, mas jamais é o filme.

A saída da Alemanha em 33 marca uma ruptura na carreira de Lang que também é de razão estética. Basta olhar Liliom, filme que não só flerta diretamente com o realismo poético francês, mas que é ele próprio um filme dividido entre o tom mais realista que Lang irá impor nos seus filmes americanos e o tom mais fantasioso dos filmes alemães (vale dizer que sementes deste realismo já davam as caras em M e O Testamento do Dr. Mabuse). É preciso dizer que Lang não terá em Hollywood o controle sobre os filmes que tinha na Alemanha: a grande maioria deles sofreu algum tipo de interferência na montagem final e com freqüência nos anos 50 o cineasta teve que trabalhar com orçamentos bastante apertados. Mesmo em Almas Perversas, o único filme em que Lang teve controle – trata-se de um filme independente, distribuído pela Universal, realizado por uma produtora de vida curta que Lang formou com Joan Bennett –, é bem possível ver as relações no filme entre Edward G. Robinson (o artista), Joan Bennett (a modelo) e Dan Dureya (o cafetão) como um reflexo da relação entre Lang, Bennett e Walter Wanger (marido da atriz e produtor do filme, assim como contato da produtora com o estúdio), resultante da paranóia de Lang sobre a autoria final de seu próprio filme, paranóia que viria a se justificar com a pós-produção conturbada de O Segredo Atrás da Porta, o próximo – e último – filme da produtora formada entre Lang e Bennett.

Tudo isso dito, a evidência é clara sobre a superioridade na média dos filmes americanos sobre os alemães. Não se trata de uma superioridade da indústria americana sobre a alemã, mas do Lang maduro em relação ao do começo de carreira. Bem provável que se os nazistas não tivessem chegado ao poder e Lang tivesse tido condições de prosseguir a carreira no país, falaríamos hoje sobre a superioridade do Lang sonoro sobre o da era muda. Vale também destacar que Lang é, assim como Renoir e Ophüls, um dos poucos legítimos cineastas transnacionais. As Aranhas (seu filme mais antigo disponível por aqui) tinha como herói um milionário explorador americano e incluiu seqüências de faroeste supostamente passadas no Peru. Em Os Espiões o herói é inglês e partes consideráveis do filme se passam em Londres, e mais tarde no seu retorno à Alemanha para Os Mil Olhos do Dr. Mabuse, outro milionário americano aparece no centro do filme. Da mesma forma, vários dos seus filmes americanos (O Homem que Quis Matar Hitler, Quando Descem as Trevas, Os Carrascos Também Morrem, Moonfleet) se passam na Europa e ele pôde refilmar dois filmes franceses de Renoir (A Cadela como Almas Perversas e A Besta Humana como Desejo Humano) sem que a transição da ação para os EUA lhe desse qualquer dor de cabeça. Quando perguntado se por ser alemão lhe era difícil filmar faroestes, respondeu que eles eram a mitologia dos americanos, como Os Nibelungos era a dos alemães, e portanto não via problema algum, resposta que diz muito sobre as posições de Lang. Os faroestes que ele filmou nos EUA são uma boa porta de entrada para observar a inutilidade de discutir a evolução da carreira de Lang a partir dos modos de produção. Se Os Conquistadores e O Retorno de Frank James se revelam filmes menores não é porque Lang é incapaz de compreender o gênero, e sim porque o espaço aberto que tendem a dominá-lo vão contra o trabalho de construção espacial que é central na mise en scène langiana (algo que se torna claro quando em certo ponto O Retorno de Frank James se transforma subitamente num filme de tribunal). Na sua terceira tentativa com O Diabo Feito Mulher, o cineasta finalmente sucede num filme altamente estilizado, com todas as externas feitas num estúdio numa das melhores utilizações da falsidade dos sets em todo o cinema, um triunfo de Lang e filme chave para compreender o movimento final de sua carreira. Há uma profunda estilização nos últimos Lang, o formalismo esparso que rende filmes secos, duros. Em especial nos filmes mais realistas (Os Corruptos, Desejo Humano, No Silêncio de uma Cidade e Suplício de uma Alma), Lang revela um desejo pelo essencial, pela matéria-prima no seu estado bruto; não surpreende serem filmes tão essenciais para aquele filho bastardo do realismo baziniano, o MacMahonismo.

* * *

A cidade permanece peça central deste arquivo, o espaço da ação, área onde o mal desliza e se multiplica. Cidades como personagem central se espalham pela filmografia de Lang: Metropolis, M, O Testamento do Dr. Mabuse, Fúria, O Homem que Quis Matar Hitler, Os Carrascos Também Morrem. A cidade se multiplica num país em O Tigre de Bengala e O Sepulcro Indiano e depois é reduzida a um hotel em Os Mil Olhos do Dr. Mabuse. Nos filmes com Dana Andrews a maior das transformações acontece e o espaço se torna plano, com a imagem parecendo não ter mais pontos de fuga. Nestes filmes sobre figuras auto-centradas, a imagem é só aquilo que se obtém, o serial killer já não aterroriza a cidade mas somente suas vítimas. Todas estas mutações, é bom dizer, ocorrem nos cinco filmes finais. É em M e O Testamento do Dr. Mabuse que esta idéia da arquitetura da cidade como base da qual a construção do filme é erigida tem seu momento máximo na obra de Lang. São filmes muito similares, ligados diretamente por Lang pela opção de fazer uso do mesmo policial, o inspetor Lohman (Otto Wernecke), para perseguir tanto o assassino de crianças de M quanto o Dr. Mabuse em Testamento. Estes filmes nos mostram o Lang cartógrafo em plenos poderes: é o mapa do arquivo, um mapa bastante particular, onde cada situação, cada espaço se desdobra. O fora do quadro nunca foi tão importante para Lang quanto nestes filmes: a cada esquina que a imagem não mostra e por trás de cada porta podemos sentir o mesmo ar pesado com que Lang perpassa seu filme. Não é à toa que ambos sejam filmes sem protagonistas, onde as narrativas se diluem numa perseguição a uma figura turva. Nestes filmes Lang se adianta a Jacques Tourneur no exercício de contemplação do mal, não o mal representado num personagem, mas uma idéia que parece preencher todo o espaço. Anos mais tarde, John Carpenter faria um belíssimo filme langiano, O Príncipe das Sombras – uma série quase não-narrativa de seqüências claustrofóbicas –, em que colocava o mal numa jarra que ia aos poucos preenchendo o espaço.

Se O Testamento do Dr. Mabuse é uma obra-prima ainda maior que M, em parte é justamente por levar o processo mais longe. O Dr. Mabuse deixa de ser um corpo e se torna simplesmente uma idéia, uma espécie de vírus que assombra Berlim. Suas ações são irracionais, visam apenas o caos que levaria à criação do império do crime. Mabuse, o grande manipulador, já não age com agenda própria, seu império não é para si. Ele simplesmente passa de personagem para personagem, de situação para situação. Seus asseclas não o vêem; ele é apenas uma voz e uma silhueta; quem olhar para ele morrerá ou enlouquecerá, pouco importa. O grande achado de Lang é resgatar a figura do Inspetor Lohman, o policial metódico do filme anterior, que é menos o protagonista do filme que sua âncora, a figura que tenta acrescentar lógica dentro de um inquérito irracional. O filme termina com ele admitindo sua incapacidade de compreender a cadeia de eventos que se apresentou até ali. Se Mabuse domina a cidade, o trabalho arquitetônico do filme é estabelecido por Lang de forma a nos apresentar uma série de imagens em que o espaço ataca o humano, seqüência por seqüência, da armadilha que abre o filme até a porta que é batida na cara do espectador no plano final. Dentro deste cenário apocalíptico se ressalta um esforço sempre interrompido de comunicação entre as personagens. O domínio de Lang na arquitetura da cidade existe para erguer barreiras, sejam de espaço, sejam narrativas. Mesmo a conclusão do filme, quando uma mensagem telefônica realizada no começo é finalmente completada, é cortada pela loucura do novo Mabuse – ele próprio tentando em vão se comunicar.

Fritz Lang dirigiu a melhor adaptação para o cinema de Graham Greene (Quando Descem as Trevas, tirada de O Ministério do Medo) e tem muito em comum com o escritor inglês. É uma pena que pouco tenha se estudado o lado católico do cineasta (o mesmo vale de certa forma a Alfred Hitchcock, com quem Lang é freqüentemente comparado). A moral católica é um elemento forte em diversos filmes do cineasta, que compartilha com o escritor inglês uma espécie de catolicismo da danação. Talvez os filmes mais exemplares sobre isso sejam a dupla de filmes com Edward G. Robinson e Joan Bennett (Um Retrato de Mulher e Almas Perversas), espécie de poemas pornográficos construídos a partir da atriz que também se completam como grandes estudos sobre o puritanismo ("Você sabe que nunca vi uma mulher nua", Robinson chega a afirmar para a esposa em Almas Perversas). No momento que o homem deseja, já está condenado, logo não há homem inocente.

Uma comparação bem rasa entre Almas Perversas e A Cadela, de Renoir (do qual o filme de Lang é um remake), não deixa dúvidas: ao contrário de Michel Simon, Robinson jamais será visto como a vítima de uma canalhice, ele é completamente responsável pelos seus atos. Se há uma personagem mais simpática, em ambos os filmes, é Bennett, em quem os homens projetam seus desejos. Não haverá saída irônica ou inocência possível. Bennett cria um desequilíbrio na imagem que estabelece o filme como obra atormentada, reflexos de um homem que não sabe como reagir aos próprios desejos (que o próprio Lang provavelmente tinha seus interesses em Bennett, a mulher do produtor, adiciona mais uma complicação). Na lógica implacável do teorema de Lang, Robinson já é culpado mesmo antes de encontrar a mulher, ao menos desde o momento em que olha pela janela seu patrão com sua jovem amante, ao final da seqüência inicial. Tanto Um Retrato de Mulher quanto Almas Perversas oferecem Joan Bennett como a oportunidade para Robinson tornar concreta sua imaginação. Se o segundo filme é mais forte é muito por manter a repressão do personagem central em tom morno pela maior parte do filme, antes de deixá-la explodir no ato final. A última meia hora de Almas Perversas – talvez o entrecho de maior densidade sustentada de toda a obra de Lang – é um mergulho na dissolução do homem, talvez a descrição mais forte de danação em todo o cinema: primeiro na forma com que o simpático Robinson cuidadosamente manipula o Estado para que este assassine Dan Dureya, para depois pagar o preço da culpa quando a responsabilidade dos seus atos finalmente bate. Ser vítima de uma canalhice não autoriza Robinson a se tornar Deus (algo que o corte original do filme deixaria ainda mais claro, onde se via uma cena cortada em que Robinson escalava o muro do presídio para assistir à distância a execução de Dureya e invocava os raios dos céus para adiantar o momento que tanto aguarda). A Cadela é uma indiscutível obra-prima, mas seu adorável final irônico não tem a mesma força do encontro final entre Edward G. Robinson e seu famigerado auto-retrato, momento de horror em que o cinema penetra na carne, em que o homem condenado ao limbo eterno por conta do inevitável momento em que se viu como vítima (quando na verdade era o culpado) se confronta com o seu destino.

Glenn Ford em Os Corruptos é outro destes (anti-)heróis langianos, e parte do que separa o filme de outros sobre policiais vingadores é que Lang nunca nos deixa esquecer que Ford tem consciência de que fora seu ato de soberba inicial (ir à casa do gângster) que detonou a cadeia de eventos que levou à morte da sua esposa. O filme é esta purgação pessoal tanto quanto a busca por vingança do personagem, e seu clímax na verdade é a cena final com Gloria Grahame, onde Ford pode finalmente enterrar a memória da esposa que lhe atormenta. Os Corruptos é o filme que marca em definitivo a virada da carreira de Lang, basta olhar a precisão com que a cena inicial é realizada em apenas meia dúzia de planos. Nos filmes seguintes a imagem se tornará ainda mais seca e dura. Já não haverá mais espaço para jogos de luz e sombras (aquele mais superestimado dos elementos à disposição do diretor), mas vemos a afirmação final de Lang como um grande cineasta figurativo. Cada elemento presente na imagem se transforma num objeto formal riquíssimo, são verdadeiras aulas de perspectiva, onde um homem ou um tigre ou uma tocha são intercambiáveis, todos elementos a serem moldados pelo cineasta. Os filmes de fantasia deste período (Moonfleet, O Tigre de Bengala, O Sepulcro Indiano) revelam o prazer de Lang de manipular estes elementos, enquanto os mais realistas os apresentam de forma mais dura e esparsa (os dois filmes com Dana Andrews sendo o limite desta evolução em Lang). Neste momento é como se a obra de Lang fechasse um círculo e retomasse as tendências da fase alemã, mas revistas e melhoradas – não surpreende, portanto, que os últimos filmes sejam revisões diretas dos filmes alemães – porque muito melhor inseridas numa perspectiva histórica (estes últimos filmes alemães, assim sendo, completam o serviço que os primeiros filmes alemães sonoros e Os Espiões já haviam começado). Estes filmes não são apenas triunfos de arquitetura, mas filmes em que – reperspectivando o movimento, o gesto, e mesmo a luz – a posição do homem no espaço é redefinida.


Filipe Furtado