FÚRIA & VIVE-SE UMA SÓ VEZ
Fritz Lang, Fury & You Only Live Once, EUA, 1936 e 1937 respectivamente

Fritz Lang tateando na América. Algo visto por alguns como retrocesso, por outros como um caminho para a maturidade artística. Prefiro acreditar na segunda hipótese, acrescentando que nesse caminho seja possível identificar um grande cinema. Nota-se, especialmente em Fúria, o desejo alucinante de entender como funciona o modo de vida americano, de que são feitas as motivações de sua sociedade. Claro, Lang é cáustico, visceral, às vezes sarcástico. É sua maneira peculiar de mostrar respeito ao que é humano. Natural, então, que por trás dessa tentativa de compreender, haja paralelamente uma crítica ao que vinha sendo assimilado. Confundir, no entanto, essa crítica com desdém com o povo americano seria um tanto deslocado. Existe, acima de tudo, uma vontade de descobrir como seu próprio cinema dialogará com sua situação apátrida. Como permanecer com sua identidade tendo absorvido as nuances de uma nova e diferente cultura.

Em Liliom (1934), o intervalo francês provocado por Goebbels, Lang se esforça para fazer um típico filme languiano, com um olhar agudo para o mal que há na humanidade. Na segunda metade, o filme torna-se realismo mágico à la Carné e Clair, numa virada que lhe custou leituras enviezadas e, não raro, equivocadas sobre uma suposta virada em seu cinema. Terminou, mesmo que sem querer, adaptando-se ao cinema em voga na França da época. Na verdade, há muito Lang nas duas partes de Liliom. Como há muito Lang em seu início americano. Os filmes dessa época denotam tamanho desconforto com o "estar fora de casa", com um querer se integrar, fazer parte de algo que ele mesmo não sabia o quê. Na chegada aos EUA, escreveu alguns poucos roteiros, mas passou a maior parte do tempo como Buñuel passaria poucos anos depois: sem fazer nada, apenas aprendendo, pesquisando, até que alguma porta lhe fosse aberta.

Fúria e Vive-se Uma Só Vez são seus primeiros filmes nos EUA, e são mal-entendidos por muitos críticos justamente por essa ansiedade em compreender os americanos, como ele mesmo assumiu em entrevistas. São filmes afobados, levianos, esquemáticos, mas deliciosos, pois fazem transparecer, talvez como em nenhum outro filme entre O Testamento do Dr. Mabuse e O Segredo da Porta Fechada (excluindo esses, claro), a personalidade inquieta do diretor. Trabalhos autorais, apesar de todos os percalços de produção (tanto Spencer Tracy, em Fúria, quanto Henry Fonda, em Vive-se Uma Só Vez, se desentenderam com Lang durante as filmagens).

Nota-se, também, uma incrível semelhança estrutural entre esses primeiros filmes fora da Alemanha. Como já havia acontecido em Liliom, em Fúria vemos um relógio de parede em disparada. A vida segue rápido na América. Mas, também como em Liliom, exatamente na metade do filme, temos uma virada de perspectiva. Caricatural, mas interessante como Lang carrega nas tintas e despe o personagem vivido por Spencer Tracy de qualquer sutileza. O filme muda de tom também, ficando mais corrosivo, mais agressivo, o mal é revelado também no protagonista. Interessa muito mais ao diretor mostrar o lado sombrio da mente humana do que a precipitação de um senso de justiça que, por si só, é impossível de ser justo. Que o linchamento é condenável, é óbvio para Lang. Que, ao se descobrir vivo e inocentado, o personagem ainda carrega o ódio e a sede de vingança é que o interessa. O que move esse personagem? Por que ele se apega mais à vida dos outros do que à sua própria?

A confusão generalizada encontrada em Fúria, onde passamos por várias das caricaturas que se podia fazer sobre a sociedade americana da época (apesar da história se passar dez anos antes, há um esforço muito grande em tentar entender o presente), desde a mania alcoviteira do cidadão comum até o domínio dos advogados no dia-a-dia; passando pelos interesses escusos dos políticos, que hesitam em mandar ajuda para proteger a delegacia da multidão. Lang lamentou a inclusão dos gansos, para sublinhar o ato fofoqueiro das senhoras. Mas que isso é divertido, e soa deliciosamente anódino dentro do filme, é difícil negar. Ao mesmo tempo em que ele desejava adaptar-se ao público americano, não conseguiu abandonar sua maneira de filmar na Alemanha, com o uso de elementos simbólicos raramente apreciados pelo público dos EUA.

Em Vive-se Uma Só Vez também vemos pessoas estranhas à trama comentando o que aconteceu ao protagonista. Mas o diretor já se mostrava mais consciente do que podia ou não fazer para conquistar a platéia. Belo exemplo disso é quando Silvia Sidney está prestes a tomar veneno, quando é interrompida pelo telefonema que conta a fuga de Fonda. E é interessante e paradoxal que, mesmo Lang tentando absorver, junto dos costumes, o cinema americano, o filme evita o julgamento de maneira brilhante. Temos três manchetes preparadas, e a câmera permanece na redação do jornal, aguardando o telefonema que confirmará o veredicto. Uma espécie de resistência à mania por filmes de tribunal, que se tornaria ainda mais forte nas décadas seguintes, e que acometeria o próprio Lang, em O Retorno de Frank James.

Já em Fúria, grande parte do julgamento dos linchadores é mostrado. Principalmente porque uma elipse, nesse caso, poderia mudar consideravelmente a essência do filme. Ao invés de um homem comum tornado lunático, teríamos apenas um homem comum tornado vingador, pois não teríamos a oportunidade de, ao menos, testemunhar o desespero dos acusados. Lang não gostava do beijo final de Fúria. Achava-o desnecessário. Mas a caricatura, ou homenagem (se a palavra caricatura for esvaziada de seu sentido lisonjeador) ao cinema americano não estaria completa. Sacrifica-se, então, o bom gosto cinematográfico (palavrinha suspeita), pela curiosa conveniência (ainda que involuntária) às regras hollywoodianas. Ou uma outra maneira de dizer que, apesar de um final insatisfatório, o filme permanece essencial.

O relógio de parede mostrado, duas vezes, em Vive-se Uma Só Vez funciona normalmente. A ansiedade da "americanização" já não é tão grande, mas ainda está presente. Temos mais um homem comum, tornado assaltante graças à Depressão. Ele tenta se adaptar à sociedade, assim como Lang tenta adaptar-se a um herói que não seja heróico. Seu chefe é um crápula preconceituoso (e Lang não faz a menor questão de justificar o comportamento dele). O homem comum fica novamente sem emprego. Mas nem tem tempo de tentar alguma outra coisa, logo é confundido com um assaltante. O assalto, envolto em gases, é muito bem filmado, com cortes simétricos, num ritmo alucinante e perturbador. Ele é julgado, e sentenciado à morte. Um telegrama mostrando, com fundo negro, um pedido de cancelamento da execução chega à cadeia. Algo lúgubre envolve esse momento, fazendo com que já pressentíssemos um desfecho infeliz. Ele tenta fugir, mas, não acreditando na descoberta de sua inocência por parte da polícia, acaba matando, meio sem querer e atabalhoado, o padre que tentava lhe mostrar o telegrama. Um momento alto do filme: o padre ordena que os portões sejam abertos, revelando, apenas depois, que o tiro havia sido fatal.

A presença de Silvia Sidney nos dois filmes provoca certas semelhanças. São heroínas românticas, mas em Vive-se Uma Só Vez, ao contrário de em Fúria (onde ela faz o herói enxergar o absurdo em que ele tinha se tornado), ela segue cegamente seu homem, parte para uma aventura conscientemente auto-destrutiva. A força do amor, diante das injustiças da vida. Ingênuo, sim, mas não por isso desprezível. Lang faz um Capra às avessas, onde o sonho americano fracassa na ponta de seu sistema judiciário. O homem comum, desacreditando em tudo e todos, agarra-se ao desespero como única forma de seguir em frente. Mas, ao contrário das fábulas de Capra, encontra a liberdade na morte, não na aceitação milagrosa de outras pessoas. Não se trata de diminuir o cinema do diretor de Loucura Americana (filme bem interessante, por sinal), mas de delinear as diferenças de conclusão a que os dois diretores chegam. Capra acreditava na América, Lang não. Capra era solar, apesar da constante ambientação noturna e cheia de neve de seus filmes. Lang era sombrio, mesmo quando maniqueísta, mesmo quando seus personagens eram definidos com imensa ingenuidade. Havia sempre o mal por trás de qualquer coisa. Era sua maneira de compreender a América, e de se tornar americano.


Sérgio Alpendre

(Fúria: VHS Cult & Classic
Vive-se uma Só Vez: Edições Altaya)