Fritz Lang tateando na América. Algo visto por
alguns como retrocesso, por outros como um caminho para
a maturidade artística. Prefiro acreditar na
segunda hipótese, acrescentando que nesse caminho
seja possível identificar um grande cinema. Nota-se,
especialmente em Fúria, o desejo alucinante
de entender como funciona o modo de vida americano,
de que são feitas as motivações
de sua sociedade. Claro, Lang é cáustico,
visceral, às vezes sarcástico. É
sua maneira peculiar de mostrar respeito ao que é
humano. Natural, então, que por trás dessa
tentativa de compreender, haja paralelamente uma crítica
ao que vinha sendo assimilado. Confundir, no entanto,
essa crítica com desdém com o povo americano
seria um tanto deslocado. Existe, acima de tudo, uma
vontade de descobrir como seu próprio cinema
dialogará com sua situação apátrida.
Como permanecer com sua identidade tendo absorvido as
nuances de uma nova e diferente cultura.
Em Liliom (1934), o intervalo francês provocado
por Goebbels, Lang se esforça para fazer um típico
filme languiano, com um olhar agudo para o mal que há
na humanidade. Na segunda metade, o filme torna-se realismo
mágico à la Carné e Clair, numa
virada que lhe custou leituras enviezadas e, não
raro, equivocadas sobre uma suposta virada em seu cinema.
Terminou, mesmo que sem querer, adaptando-se ao cinema
em voga na França da época. Na verdade,
há muito Lang nas duas partes de Liliom.
Como há muito Lang em seu início americano.
Os filmes dessa época denotam tamanho desconforto
com o "estar fora de casa", com um querer se integrar,
fazer parte de algo que ele mesmo não sabia o
quê. Na chegada aos EUA, escreveu alguns poucos
roteiros, mas passou a maior parte do tempo como Buñuel
passaria poucos anos depois: sem fazer nada, apenas
aprendendo, pesquisando, até que alguma porta
lhe fosse aberta.
Fúria e Vive-se Uma Só Vez
são seus primeiros filmes nos EUA, e são
mal-entendidos por muitos críticos justamente
por essa ansiedade em compreender os americanos, como
ele mesmo assumiu em entrevistas. São filmes
afobados, levianos, esquemáticos, mas deliciosos,
pois fazem transparecer, talvez como em nenhum outro
filme entre O Testamento do Dr. Mabuse e O
Segredo da Porta Fechada (excluindo esses, claro),
a personalidade inquieta do diretor. Trabalhos autorais,
apesar de todos os percalços de produção
(tanto Spencer Tracy, em Fúria, quanto
Henry Fonda, em Vive-se Uma Só Vez, se
desentenderam com Lang durante as filmagens).
Nota-se, também, uma incrível semelhança
estrutural entre esses primeiros filmes fora da Alemanha.
Como já havia acontecido em Liliom, em
Fúria vemos um relógio de parede
em disparada. A vida segue rápido na América.
Mas, também como em Liliom, exatamente
na metade do filme, temos uma virada de perspectiva.
Caricatural, mas interessante como Lang carrega nas
tintas e despe o personagem vivido por Spencer Tracy
de qualquer sutileza. O filme muda de tom também,
ficando mais corrosivo, mais agressivo, o mal é
revelado também no protagonista. Interessa muito
mais ao diretor mostrar o lado sombrio da mente humana
do que a precipitação de um senso de justiça
que, por si só, é impossível de
ser justo. Que o linchamento é condenável,
é óbvio para Lang. Que, ao se descobrir
vivo e inocentado, o personagem ainda carrega o ódio
e a sede de vingança é que o interessa.
O que move esse personagem? Por que ele se apega mais
à vida dos outros do que à sua própria?
A confusão generalizada encontrada em Fúria,
onde passamos por várias das caricaturas que
se podia fazer sobre a sociedade americana da época
(apesar da história se passar dez anos antes,
há um esforço muito grande em tentar entender
o presente), desde a mania alcoviteira do cidadão
comum até o domínio dos advogados no dia-a-dia;
passando pelos interesses escusos dos políticos,
que hesitam em mandar ajuda para proteger a delegacia
da multidão. Lang lamentou a inclusão
dos gansos, para sublinhar o ato fofoqueiro das senhoras.
Mas que isso é divertido, e soa deliciosamente
anódino dentro do filme, é difícil
negar. Ao mesmo tempo em que ele desejava adaptar-se
ao público americano, não conseguiu abandonar
sua maneira de filmar na Alemanha, com o uso de elementos
simbólicos raramente apreciados pelo público
dos EUA.
Em Vive-se Uma Só Vez também vemos
pessoas estranhas à trama comentando o que aconteceu
ao protagonista. Mas o diretor já se mostrava
mais consciente do que podia ou não fazer para
conquistar a platéia. Belo exemplo disso é
quando Silvia Sidney está prestes a tomar veneno,
quando é interrompida pelo telefonema que conta
a fuga de Fonda. E é interessante e paradoxal
que, mesmo Lang tentando absorver, junto dos costumes,
o cinema americano, o filme evita o julgamento de maneira
brilhante. Temos três manchetes preparadas, e
a câmera permanece na redação do
jornal, aguardando o telefonema que confirmará
o veredicto. Uma espécie de resistência
à mania por filmes de tribunal, que se tornaria
ainda mais forte nas décadas seguintes, e que
acometeria o próprio Lang, em O Retorno de
Frank James.
Já em Fúria, grande parte do julgamento
dos linchadores é mostrado. Principalmente porque
uma elipse, nesse caso, poderia mudar consideravelmente
a essência do filme. Ao invés de um homem
comum tornado lunático, teríamos apenas
um homem comum tornado vingador, pois não teríamos
a oportunidade de, ao menos, testemunhar o desespero
dos acusados. Lang não gostava do beijo final
de Fúria. Achava-o desnecessário.
Mas a caricatura, ou homenagem (se a palavra caricatura
for esvaziada de seu sentido lisonjeador) ao cinema
americano não estaria completa. Sacrifica-se,
então, o bom gosto cinematográfico (palavrinha
suspeita), pela curiosa conveniência (ainda que
involuntária) às regras hollywoodianas.
Ou uma outra maneira de dizer que, apesar de um final
insatisfatório, o filme permanece essencial.
O relógio de parede mostrado, duas vezes, em
Vive-se Uma Só Vez funciona normalmente.
A ansiedade da "americanização" já
não é tão grande, mas ainda está
presente. Temos mais um homem comum, tornado assaltante
graças à Depressão. Ele tenta se
adaptar à sociedade, assim como Lang tenta adaptar-se
a um herói que não seja heróico.
Seu chefe é um crápula preconceituoso
(e Lang não faz a menor questão de justificar
o comportamento dele). O homem comum fica novamente
sem emprego. Mas nem tem tempo de tentar alguma outra
coisa, logo é confundido com um assaltante. O
assalto, envolto em gases, é muito bem filmado,
com cortes simétricos, num ritmo alucinante e
perturbador. Ele é julgado, e sentenciado à
morte. Um telegrama mostrando, com fundo negro, um pedido
de cancelamento da execução chega à
cadeia. Algo lúgubre envolve esse momento, fazendo
com que já pressentíssemos um desfecho
infeliz. Ele tenta fugir, mas, não acreditando
na descoberta de sua inocência por parte da polícia,
acaba matando, meio sem querer e atabalhoado, o padre
que tentava lhe mostrar o telegrama. Um momento alto
do filme: o padre ordena que os portões sejam
abertos, revelando, apenas depois, que o tiro havia
sido fatal.
A presença de Silvia Sidney nos dois filmes provoca
certas semelhanças. São heroínas
românticas, mas em Vive-se Uma Só Vez,
ao contrário de em Fúria (onde
ela faz o herói enxergar o absurdo em que ele
tinha se tornado), ela segue cegamente seu homem, parte
para uma aventura conscientemente auto-destrutiva. A
força do amor, diante das injustiças da
vida. Ingênuo, sim, mas não por isso desprezível.
Lang faz um Capra às avessas, onde o sonho americano
fracassa na ponta de seu sistema judiciário.
O homem comum, desacreditando em tudo e todos, agarra-se
ao desespero como única forma de seguir em frente.
Mas, ao contrário das fábulas de Capra,
encontra a liberdade na morte, não na aceitação
milagrosa de outras pessoas. Não se trata de
diminuir o cinema do diretor de Loucura Americana
(filme bem interessante, por sinal), mas de delinear
as diferenças de conclusão a que os dois
diretores chegam. Capra acreditava na América,
Lang não. Capra era solar, apesar da constante
ambientação noturna e cheia de neve de
seus filmes. Lang era sombrio, mesmo quando maniqueísta,
mesmo quando seus personagens eram definidos com imensa
ingenuidade. Havia sempre o mal por trás de qualquer
coisa. Era sua maneira de compreender a América,
e de se tornar americano.
Sérgio Alpendre
(Fúria: VHS Cult &
Classic
Vive-se uma Só Vez: Edições Altaya)
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