Pocotós
O maior interesse deste primeiro western
de Lang, um de seus primeiros trabalhos nos EUA (a proposta
era fazer uma continuação para um filme
de Henry King, Jesse James, de 1939), reside
certamente em como é turva a distância
(ou a apreciação da distância) que
há entre o personagem principal, Frank James,
e aqueles contra os quais ele luta.
Há uma antítese óbvia: temos a
posição de vilões mais ou menos
bem preenchida pelos irmãos Ford - pistoleiros
arrivistas e cínicos - e até por uma empresa
que utiliza de seus serviços. Há também
um encanto na figura de Frank James, lendário
ex-ladrão, homem individualista e essencialmente
íntegro que remete a esse clássico modelo
do doce arrogante, consciente de seu charme e de sua
maestria em qualquer manobra que tenha de assumir, à
margem dos protocolos da lei inclusive. Em suma, superficialmente,
há o herói, com seus deslizes, porém
bem definido nessa função, e há
a outra entidade, aquela que será combatida,
perseguida, ou, na maior parte das vezes, perseguirá
o herói.
Talvez não seja necessário discutir se
Frank James é um homem justo. Mas, diferente:
a justiça pontua a trajetória de Frank
James?
Ou, antes, o que difere realmente os Ford de James?
Ou, o que os iguala?
Por exemplo, os Ford instalam, nos fundos de uma vila,
um circo. O principal número é um em que
se promove, popularmente, a encenação
da morte de Jesse James, irmão de Frank. Um procedimento
teatral dos mais oportunistas (cobram ingresso?) e distorcidos,
sabemos (Jesse fora assassinado em circunstâncias
bem diferentes). A grosseria e a vulgaridade da versão
são claras, impregnadas no cenário e na
ficcionalização folhetinhesca das falas:
mulher é aterrorizada por um monstruoso Jesse
James, acompanhado de seu irmão Frank, quando
os irmãos Ford, interpretando a eles mesmos,
surgem para salvá-la e deter os facínoras.
O princípio desse expediente é o circo,
o teatro e seus sistemas de fabulação,
o que não difere muito do que é usado
pelos defensores de James, aliás, com o mesmo
fim: degradar uma imagem, mitificar outra - estóica.
Trata-se de sedimentar, à base da manipulação
de uma ferramenta parecida (essa também possui
potencial como chave de fabulação extrema),
a palavra, a idéia de que Frank James é
um grande herói, com relevância histórica
regional inclusive, que luta contra vermes. Vermes são
mais ou menos todos que com James não se bicam,
não apenas os Ford.
James é amparado por um aparato midiático
primitivo, mas funcional. É protegido do homem
que gerencia e edita o jornal da cidade. Essa publicação,
envenenada por um sensacionalismo fanático e
destrutivo, e o que nela circula diariamente, é
um circo (em forma de escrita) de vocação
não menos grotesca para a manipulação
do que aquele armado pelos Ford. Só que à
favor de James. Não é por acaso que, a
partir de um olhar cáustico de Lang para mecanismos
ainda imaturos de um organismo rústico, estruturado
em células ainda primárias em sua atuação
(os EUA antes de alcançar o século XX,
sua imprensa, seus tribunais), o editor do jornal se
tornará advogado de James em seu julgamento.
E não será mal-sucedido. Tudo isso no
entanto, interessante notar, é camuflado, via
tom cômico, pelo roteiro.
Se os Ford traíram e mataram seu antigo comparsa
Jesse, impiedosamente, por dinheiro, Frank rouba uma
estação ferroviária, já
que os recursos viabilizados pelo dinheiro que lá
estava armazenado (não por acaso, o dinheiro
que seria transmitido aos Ford, a recompensa) bancariam
sua expedição de vingança. Nessa
ação, porém, indiretamente, provoca
a morte de outro homem, que aliás nada tinha
a ver com o caso.
Com tudo isso, o que Lang nos diz é que, na prática,
ao fim e ao cabo, não há muita diferença
entre James, seu "bloco", e os Ford, ou aqueles que
eles representam (uma "corporação" ferroviária
poderosa, com velhas contas a ajustar com os James,
sabotadores de suas linhas). Ou antes, que não
é fácil detectar o que realmente difere
suas trajetórias. A discussão aqui, valendo
para os dois lados, será sempre: "o que o homem
faz com o destino do outro homem, a partir daquilo que
visa para si próprio?" É coisa que o roteiro
resolve, e de forma simpática a seu protagonista
(que "retorna" para se entregar e não deixar
que seu pacato empregado negro seja equivocadamente
condenado), mas não deixará de ressoar
o desconforto da impossibilidade de se resolver, sobretudo
na esfera social, a distância entre James e seus
inimigos.
Toca-se aqui em uma certa relatividade, que envolve
instâncias, e vozes, públicas e íntimas.
Às vezes, públicas e íntimas conectadas,
num terreno de embaralhamento quase caótico,
e irreversível, dessas instâncias. Algo
que sempre esteve na criação de Lang,
cercando, quando não penetrando, seu cinema,
desde a Alemanha.
Como Lang explora de fato essa idéia, da fronteira
turva entre o papel desses agentes em EUA recém
saídos da planta? Basicamente, através
da mise en scène. Para descobrirmos por que O
Retorno de Frank James é obra mais interessante
do que parece, a partir daqui, teremos de lembrar qual
é a operação essencial que media
este filme. "Como o cinema western americano utiliza
Lang e como Lang utiliza o western?".
Há duas seqüências importantes.
Numa delas, uma perseguição à cela.
Por paisagens, já coloridas pelo cinema de 1940,
de uma geografia profunda tão exuberante quanto
perigosa. Processada pela imagem, aliás, exatamente
assim. Lang maneja essa geografia não para visualizar
e engendrar uma caçada, que seria o sentido natural
da seqüência (James, após a passagem
do "circo", sai à cata dos Ford), mas sim - de
acordo com o que nos informa o modo como o diretor abre,
desenha e modula os planos nesse ambiente - para igualar
os corpos (e, logicamente, as pessoas) no espaço.
Também para nublar nossa percepção
em relação ao posicionamento desses corpos,
misturá-los.
Mais: a concepção dessa seqüência
é de uma crueza evidente. É seca: não
há intenção ou imposição
de tom. Há apenas o barulho dos cavalos, do atrito
das ferraduras com o solo. Há as estradas cheias
de pedras, o movimento das montarias e seu ruído,
para todos. Eles se igualam nos pocotós. Difícil
é identificar o que diferencia cada um nesse
curso, pois Lang confunde, visual e sobretudo sonoramente,
os sentidos. Para onde vão? Vão para o
mesmo lugar. Uso dos mais engenhosos do som ocorre aqui.
Nas cenas de desfecho, típica encenação
de "encontro final" nesse cinema dos EUA da fundação
e da arquitetura arcaica de suas instituições,
desdobra-se coisa similar. A diferença é
que nestas Lang contempla principalmente a luz como
artifício. Cobertos pelas sombras de um celeiro,
James e um dos Ford jogam o mesmo "jogo", evidenciado
pela montagem, e são tratados, através
do artifício cênico da luz, da mesma forma
pelo olhar do diretor; compartilham da mesma atmosfera,
sendo por ela e por sua serena luminosidade absorvidos,
engolidos.
Não é nem o melhor western de Lang,
mas é, nitidamente, um filme inconfundível.
Claudio Szynkier
(DVD Classic Line)
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