O RETORNO DE FRANK JAMES
Fritz Lang, The Return of Frank James, EUA, 1940

Pocotós

O maior interesse deste primeiro western de Lang, um de seus primeiros trabalhos nos EUA (a proposta era fazer uma continuação para um filme de Henry King, Jesse James, de 1939), reside certamente em como é turva a distância (ou a apreciação da distância) que há entre o personagem principal, Frank James, e aqueles contra os quais ele luta.

Há uma antítese óbvia: temos a posição de vilões mais ou menos bem preenchida pelos irmãos Ford - pistoleiros arrivistas e cínicos - e até por uma empresa que utiliza de seus serviços. Há também um encanto na figura de Frank James, lendário ex-ladrão, homem individualista e essencialmente íntegro que remete a esse clássico modelo do doce arrogante, consciente de seu charme e de sua maestria em qualquer manobra que tenha de assumir, à margem dos protocolos da lei inclusive. Em suma, superficialmente, há o herói, com seus deslizes, porém bem definido nessa função, e há a outra entidade, aquela que será combatida, perseguida, ou, na maior parte das vezes, perseguirá o herói.

Talvez não seja necessário discutir se Frank James é um homem justo. Mas, diferente: a justiça pontua a trajetória de Frank James?

Ou, antes, o que difere realmente os Ford de James? Ou, o que os iguala?

Por exemplo, os Ford instalam, nos fundos de uma vila, um circo. O principal número é um em que se promove, popularmente, a encenação da morte de Jesse James, irmão de Frank. Um procedimento teatral dos mais oportunistas (cobram ingresso?) e distorcidos, sabemos (Jesse fora assassinado em circunstâncias bem diferentes). A grosseria e a vulgaridade da versão são claras, impregnadas no cenário e na ficcionalização folhetinhesca das falas: mulher é aterrorizada por um monstruoso Jesse James, acompanhado de seu irmão Frank, quando os irmãos Ford, interpretando a eles mesmos, surgem para salvá-la e deter os facínoras.

O princípio desse expediente é o circo, o teatro e seus sistemas de fabulação, o que não difere muito do que é usado pelos defensores de James, aliás, com o mesmo fim: degradar uma imagem, mitificar outra - estóica. Trata-se de sedimentar, à base da manipulação de uma ferramenta parecida (essa também possui potencial como chave de fabulação extrema), a palavra, a idéia de que Frank James é um grande herói, com relevância histórica regional inclusive, que luta contra vermes. Vermes são mais ou menos todos que com James não se bicam, não apenas os Ford.

James é amparado por um aparato midiático primitivo, mas funcional. É protegido do homem que gerencia e edita o jornal da cidade. Essa publicação, envenenada por um sensacionalismo fanático e destrutivo, e o que nela circula diariamente, é um circo (em forma de escrita) de vocação não menos grotesca para a manipulação do que aquele armado pelos Ford. Só que à favor de James. Não é por acaso que, a partir de um olhar cáustico de Lang para mecanismos ainda imaturos de um organismo rústico, estruturado em células ainda primárias em sua atuação (os EUA antes de alcançar o século XX, sua imprensa, seus tribunais), o editor do jornal se tornará advogado de James em seu julgamento. E não será mal-sucedido. Tudo isso no entanto, interessante notar, é camuflado, via tom cômico, pelo roteiro.

Se os Ford traíram e mataram seu antigo comparsa Jesse, impiedosamente, por dinheiro, Frank rouba uma estação ferroviária, já que os recursos viabilizados pelo dinheiro que lá estava armazenado (não por acaso, o dinheiro que seria transmitido aos Ford, a recompensa) bancariam sua expedição de vingança. Nessa ação, porém, indiretamente, provoca a morte de outro homem, que aliás nada tinha a ver com o caso.

Com tudo isso, o que Lang nos diz é que, na prática, ao fim e ao cabo, não há muita diferença entre James, seu "bloco", e os Ford, ou aqueles que eles representam (uma "corporação" ferroviária poderosa, com velhas contas a ajustar com os James, sabotadores de suas linhas). Ou antes, que não é fácil detectar o que realmente difere suas trajetórias. A discussão aqui, valendo para os dois lados, será sempre: "o que o homem faz com o destino do outro homem, a partir daquilo que visa para si próprio?" É coisa que o roteiro resolve, e de forma simpática a seu protagonista (que "retorna" para se entregar e não deixar que seu pacato empregado negro seja equivocadamente condenado), mas não deixará de ressoar o desconforto da impossibilidade de se resolver, sobretudo na esfera social, a distância entre James e seus inimigos.

Toca-se aqui em uma certa relatividade, que envolve instâncias, e vozes, públicas e íntimas. Às vezes, públicas e íntimas conectadas, num terreno de embaralhamento quase caótico, e irreversível, dessas instâncias. Algo que sempre esteve na criação de Lang, cercando, quando não penetrando, seu cinema, desde a Alemanha.

Como Lang explora de fato essa idéia, da fronteira turva entre o papel desses agentes em EUA recém saídos da planta? Basicamente, através da mise en scène. Para descobrirmos por que O Retorno de Frank James é obra mais interessante do que parece, a partir daqui, teremos de lembrar qual é a operação essencial que media este filme. "Como o cinema western americano utiliza Lang e como Lang utiliza o western?".

Há duas seqüências importantes.

Numa delas, uma perseguição à cela. Por paisagens, já coloridas pelo cinema de 1940, de uma geografia profunda tão exuberante quanto perigosa. Processada pela imagem, aliás, exatamente assim. Lang maneja essa geografia não para visualizar e engendrar uma caçada, que seria o sentido natural da seqüência (James, após a passagem do "circo", sai à cata dos Ford), mas sim - de acordo com o que nos informa o modo como o diretor abre, desenha e modula os planos nesse ambiente - para igualar os corpos (e, logicamente, as pessoas) no espaço. Também para nublar nossa percepção em relação ao posicionamento desses corpos, misturá-los.

Mais: a concepção dessa seqüência é de uma crueza evidente. É seca: não há intenção ou imposição de tom. Há apenas o barulho dos cavalos, do atrito das ferraduras com o solo. Há as estradas cheias de pedras, o movimento das montarias e seu ruído, para todos. Eles se igualam nos pocotós. Difícil é identificar o que diferencia cada um nesse curso, pois Lang confunde, visual e sobretudo sonoramente, os sentidos. Para onde vão? Vão para o mesmo lugar. Uso dos mais engenhosos do som ocorre aqui.

Nas cenas de desfecho, típica encenação de "encontro final" nesse cinema dos EUA da fundação e da arquitetura arcaica de suas instituições, desdobra-se coisa similar. A diferença é que nestas Lang contempla principalmente a luz como artifício. Cobertos pelas sombras de um celeiro, James e um dos Ford jogam o mesmo "jogo", evidenciado pela montagem, e são tratados, através do artifício cênico da luz, da mesma forma pelo olhar do diretor; compartilham da mesma atmosfera, sendo por ela e por sua serena luminosidade absorvidos, engolidos.

Não é nem o melhor western de Lang, mas é, nitidamente, um filme inconfundível.


Claudio Szynkier

(DVD Classic Line)