Flor Silvestre é
visto dentro da obra de Emilio "Índio" Fernández
como um filme essencialmente inaugural. Após
ter se iniciado na direção cinematográfica
com La isla de la pasión/Clipperton (1941)
e de ter concluído o seu segundo filme (Soy
puro mexicano, 1942), nada levava a crer que Emilio
Fernández ainda seria um dos maiores diretores
da história do cinema mexicano. Os seus dois
primeiros filmes não foram capazes de demonstrar
a potencialidade de seu projeto cinematográfico.
No ano de 1943, todas as fichas tinham sido apostadas
no nome de Julio Bracho, intelectual proveniente do
meio teatral e que tinha, diferentemente de Fernández,
surpreendido com seus primeiros filmes (Ay qué
tiempos señor don Simon!, 1941 e Historia
de um gran amor, 1942). Eis que o astuto produtor
Augustín J. Fink, proprietário do estúdio
Films Mundiales (que já tinha Julio Bracho
sob contrato), convoca Fernández e lhe fornece
os meios necessários para que enfim ele possa
levar adiante os seus ambiciosos objetivos cinematográficos.
Um desses meios, e o mais essencial, foi a possibilidade
do encontro de Fernández com os seus principais
colaboradores: o escritor-roteirista Mauricio Magdaleno,
o fotografo Gabriel Figueroa e a montadora Gloria Schoemann.
Flor Silvestre, além de ser o primeiro
filme de Fernández com os dois primeiros (Gloria
Shoemann entraria a partir de Maria Candelária),
foi também o que lançou nos braços
do então poderoso star system da industria
cinematográfica mexicana as figuras de Pedro
Armendáriz e Dolores del Rio.
O filme é um grande flashback. Dolores
del Rio, caracterizada como uma senhora idosa, relata
para o filho, um jovem cadete do exército, a
história de seu pai e de seu nascimento, que
não por acaso coincide com o nascimento de um
novo México. A figura do filho de Esperanza (Dolores
del Rio) é a encarnação da revolução
mexicana institucionalizada, mas qual teria sido o percurso
caminhado pelo país para ter alcançado
esse estágio atual? Esperanza então inicia
a sua narrativa exatamente em um momento crucial: o
dia de seu matrimônio com José Luis (Pedro
Armendáriz). Esse elemento bastante comum no
melodrama – o conflito proporcionado pelo amor de duas
pessoas de classes sociais opostas – é alocado
na estória como um indício da propagação
dos ideais semeados pela Revolução. O
casamento de Esperanza e José Luis, ao mesmo
tempo em que desencadeia os nós que aparecerão
ao longo da trama, também exerce a função
de anunciar a iminência do já aguardado
triunfo revolucionário. A demolição
da gigantesca barreira que delimita a separação
entre ricos e pobres, senhores e criados, propiciada
por essa união, faz explodir a ira de don Francisco
(Miguel Angel Ferriz), que recusa o laço sanguíneo
com o filho.
Ao mesmo tempo em que José Luis casa com Esperanza,
se filia ao exército revolucionário. A
opção do protagonista aciona uma comunicação
entre as esferas política e afetiva. Os ideais
da Revolução são mostrados como
uma postura a ser adotada de forma integral. Trata-se
de uma mudança total de paradigma e da superação
de valores profundamente fincados. A seqüência
com que José Luis convida os criados a sentar
em sua mesa é exemplar. Nicanor (Augustín
Isunza) recusa o convite por achar que, aceitando, está
infringindo uma lei de Deus: a separação
entre amos e servos. José Luis então faz
o seu discurso afirmando que essa lei não é
divina, pois Deus está presente no ideário
da Revolução. A Revolução,
além de ser apresentada pela ótica feminina
(a estória está sendo narrada por uma
mulher) – espaço por excelência capaz de
emanar os mais puros sentimentos –, está associada
ao sagrado. A Revolução Mexicana é
a transcendência.
Outro elemento associado ao sagrado é a terra.
A evocação do amor do homem pela terra
é explicitada desde o início. A terra
deve pertencer a todos os homens e não apenas
a uma determinada classe social, pois todos, sem exceção,
são ligados intimamente a ela. Quando um militar
visita a propriedade de don Francisco, alertando-o para
que ele abandone a fazenda porque ela está preste
a ser invadida, o fazendeiro decide ficar. É
preferível morrer do que estar longe do abraço
acolhedor de seu pedaço de terra. No meio de
sua fala, don Francisco se compara a uma árvore,
porque, como ela, possui as raízes bem fincadas
no solo. O mesmo ocorre com os criados Nicanor e Reynaldo
(Armando Soto la Marina): quando eles vão pedir
ao amo a permissão para trabalhar na casa de
José Luis, alegam terem brotado da terra assim
como o milho e o trigo. Homem e Terra são elementos
indissociáveis e o papel da Revolução
é nada mais que propiciar entre os homens a igualdade
dessa união.
Esse processo, porém, é extremamente doloroso.
A decadência e o desmembramento de uma típica
elite criolla ocasionada pelo advento da Revolução
são ilustradas de maneira belamente melancólica.
A seqüência em que José Luis entra
na fazenda destruída, enquanto os marginais cantam,
é de uma beleza singular. José Luis olha
para o retrato de seu pai e sente na alma a terrível
violação que sua família acabara
de sofrer. A sua propriedade não foi respeitada,
porém, ela não foi invadida em nome da
Revolução, e sim por falsos revolucionários.
Ursulo Torres (Manuel Dondé) e Rogelio Torres
(Emilio Fernández) são bandidos disfarçados
de generais que, aproveitando o clima de desordem da
Revolução recém instalada, cometem
uma série de saques e assaltos. Fica transparente
o fato de que generais autênticos jamais seriam
capazes de cometer tamanha violência: a de desmantelar
uma família tradicional. Ao mesmo tempo em que
a terra necessita ser compartilhada a propriedade dos
ricos também precisa ser oficialmente respeitada.
Propriedade e família são peças
de uma mesma engrenagem. Vingando a morte do pai e lavando
a honra de sua família (com a desgraça
sua mãe ficou louca), José Luis está
também condenando à perda de sua propriedade.
O revolucionário José Luis sem saber está
legitimando sua origem aristocrática. O seu diálogo
visual com o quadro quebrado do pai (símbolo
de uma tradição eliminada) atesta essa
visível contradição que o levará
à morte. Para saldar a dívida com os saqueadores
que mataram seu pai e destruíram a propriedade
de sua família de berço, o protagonista
acabará pondo em segundo plano a sua família
por opção (mulher e filho). José
Luis não ouve os conselhos dos amigos e parte
para a vingança pessoal, deixando Esperanza e
o seu filho recém nascido sozinhos. Logo após
matar Ursulo, ele receberá a notícia de
que eles foram seqüestrados por Rogelio. Em um
ato nobre de sacrifício, José Luis trocará
a sua vida pela libertação de sua amada
e de sua prole. Surge agora a seqüência –
chave igualmente cruel e sublime, em que o nosso herói
será fuzilado sob os olhos tristes e desesperados
de Esperanza. Não vemos o momento exato do sacrifício
(José Luis morrerá no espaço em
off), apenas a reação de Esperanza,
que a partir de agora somente terá a figura de
José Luis guardada na memória – e o seu
nome para ser continuamente pronunciado como símbolo
de mexicano exemplar para o filho militar.
Estevão Garcia
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