EMILIO FERNÁNDEZ E A VERA CRUZ

Quando a Vera Cruz lança seu projeto de cinema industrial no Brasil, a partir de 1949, a indústria cinematográfica mexicana já havia se estabelecido desde meados da década anterior e em poucos anos se consolidava como o principal centro de produção de filmes para o mercado de língua espanhola. O modelo da companhia paulista eram os estúdios hollywoodianos, mas a experiência mexicana não passa desapercebida. Dela, a Vera Cruz irá incorporar alguns procedimentos estéticos, deixando de lado, é pena, alguns ensinamentos de política cinematográfica (apoio do Estado, canais de distribuição) que lhe poderiam ter sido bastante úteis para a sobrevivência no mercado.

Para os padrões da Vera Cruz – resumidos na fórmula "temas nacionais, qualidade internacional" – não seria qualquer filme mexicano a servir de exemplo. Havia toda uma produção popular e de baixo orçamento que chegava do México para encontrar no Brasil o supremo desprezo dos críticos e dos espectadores de bom gosto. No início dos anos 50, por exemplo, a dúvida entre os cronistas cinematográficos do Recife era decidir o que seria menos pior, se os "abacaxis" mexicanos ou os brasileiros. Os filmes de Emilio Fernández, no entanto, escapavam dessa categoria. Desde 1943 com Flor silvestre e o premiado Maria Candelária, Palma de Ouro no Festival de Cannes, ele vinha consagrando um cinema mexicano "de qualidade", reconhecido internacionalmente. Essa trajetória, sim, a Vera Cruz ambicionava seguir. E seguiu, tanto que em poucos anos conquistava prêmios em festivais internacionais com O cangaceiro (Melhor Filme de Aventura e menção especial para música, no Festival de Cannes) e Sinhá Moça (Leão de Bronze em Veneza, Urso de Prata em Berlim).

No capítulo dedicado a Emilio Fernández no livro Le cinéma mexicain (editado pelo Centre Georges Pompidou, em 1992, com organização de Paulo Antonio Paranaguá), Julia Tuñon escreve que o cineasta exprime com precisão as aspirações cinematográficas de seu tempo, entre elas a de conferir ao cinema um tom artístico. Para tanto, contava com a colaboração decisiva do fotógrafo Gabriel Figueroa. É precisamente esse "tom artístico" que tanto atrai a Vera Cruz. Uma boa estratégia para compreender melhor essa aproximação é considerar as afinidades entre dois filmes, em particular: Sinhá Moça (Tom Payne, 1953) e Enamorada (1946), realizado pela dupla Fernández/Figueroa. Ambos são reconstituições de época, que mesclam romance e fatos históricos – no primeiro, a Abolição; no segundo, a Revolução Mexicana. Há inclusive uma referência direta em Sinhá Moça ao filme de Fernández. Na seqüência final, os negros comemoram a notícia da abolição, dançando em torno de uma fogueira, cuja luminosidade projeta grandes sombras em movimento nos muros da igreja. É um efeito utilizado, com maior impacto dramático, também no final de Enamorada, quando se vê as tropas revolucionárias abandonando o povoado. A movimentação em primeiro plano se desdobra e se amplifica nas grandes sombras projetadas sobre as paredes e também sobre a figura de Maria Félix, literalmente envolvida pela marcha da história que se confunde com o fluxo de seu próprio sentimento amoroso. É quando decide abandonar família e status social para se alinhar ao passo dos revolucionários, escolhendo viver ao lado do líder Pedro Armendáriz.

A elaboração formal que caracteriza os filmes de Fernández/Figueroa encontra plena sintonia com os propósitos da Vera Cruz de fazer um cinema brasileiro de qualidade, ostensivamente contrário à improvisação e vulgaridade das chanchadas. Em Enamorada e Sinhá Moça sucedem-se planos de composição elaborada, muitos deles estáticos para melhor exibir a plasticidade alcançada na combinação entre disposição dos atores, enquadramentos, elaboração da luz, jogo de volumes e formas. A "tentação do hieratismo", como aponta Julia Tuñon em relação a Fernández, marca os dois trabalhos.

Em Fernández, pelo menos nos melhores momentos, há um sentido para o efeito. Em Sinhá Moça, o sentido é a própria qualidade, num movimento tautológico que pouco diz do mundo ou do cinema. Formas, movimentos, emoções vêm domesticados, num tamanho esforço de equilíbrio que acaba por comprometer os desejados efeitos dramáticos, embora o filme tenha constituído, é inegável, uma duradoura iconografia de casa-grande & senzala e um eficiente esquema narrativo (em termos de personagens e situações) que iriam ser retomados, décadas depois, pelas telenovelas em torno do tema da escravidão, Escrava Isaura à frente.

Sinhá Moça carrega uma obsessão pela ordem, que tende a organizar ou mesmo paralisar os movimentos em cena. É um traço, aliás, que não está ausente em Enamorada, com passagens em que a composição do plano enrijece os elementos em cena e emperra o andamento da narrativa, como nos diálogos iniciais entre o líder dos revolucionários e algumas figuras representativas, entre elas o padre e o caudilho local. Quando o formalismo cinematográfico, porém, se alia a elementos pictóricos, promove uma superposição visual por vezes hipnótica, como acontece nos travellings percorrendo a rica ornamentação da igreja ou no majestoso plano de Maria Félix diante da fachada da igreja, com os desenhos de seus trajes desdobrando o rebuscamento das formas arquitetônicas.

À sobrecarga visual, vem se somar a paixão dos sentimentos. Sem medo dos excessos sentimentais, como bem ensina a cartilha do melodrama, Fernández é capaz de conjugar preciosismo estético e arrebatamento emocional. Como na seqüência diante do altar da igreja, em Enamorada, quando Pedro Armendáriz se declara a Maria Félix, dizendo-a mais bonita que a Virgem – e quem, vendo a atriz iluminada por Figueroa, poderia dizer o contrário? O mesmo Armendáriz da brutalidade latina mais machista e tacanha, que se recusava a falar a palavra "atrás" (como Buñuel conta em suas memórias), faz uma declaração de amor daquelas de derreter catedrais, desmontando a teimosia da protagonista.

No filme brasileiro, a obsessão pela ordem, pelo equilíbrio, regula tanto a mise-en-scène quanto o tratamento das emoções. A seqüência de maior apelo dramático – o açoitamento de um escravo até a morte – é rigidamente construída por meio de simetrias. Ainda que mais longa e trabalhada, essa seqüência segue procedimento semelhante àquele que Maria Rita Galvão, em Burguesia e cinema, aponta na sua análise de uma breve cena de Caiçara. O equilíbrio formal e a simetria são quase matemáticos na sua composição, seja na montagem paralela entre as imagens dentro da igreja durante a missa e o martírio do negro sob o chicote do carrasco, seja pelo movimento de câmera simétrico que inicia e conclui a seqüência, partindo e retornando à figura de um vendedor impassível ao lado do seu tabuleiro.

Os excessos que abrem caminho para a paixão, a sensualidade, esses parecem ter entrada proibida nos filmes da Vera Cruz, a não ser que venham em versão doentia, com o peso de uma maldição (como a doença familiar da protagonista em Caiçara). O romance entre Anselmo Duarte e Eliane Lage se instala porque assim deve ser, obedecendo as convenções em todos os seus passos. A escolha de estrelas como Eliane Lage valoriza a beleza equilibrada dos traços, uma harmonia fisionômica que se mostra inexpressiva na tela, desanimadora. Nada comparável à presença magnética de Maria Félix, em Enamorada. Mesmo um pouco deslocada nas cenas cômicas, sempre impõe ao filme beleza e passionalidade. Em Sinhá Moça, o único excesso permitido é o do equilíbrio e com isso a beleza chega esvaziada de paixão e drama. Exibicionismo sem causa, além da própria ostentação, também ela equilibrada, domada. O filme persegue tanto o diferencial artístico, que acaba se enroscando na própria qualidade, sem arriscar ultrapassar os limites da obediência às normas.

Luciana Corrêa de Araújo

 

 




Enamorada (1946), de Emilio Fernández