A Época de Ouro do Cinema
Mexicano rendeu seu tributo a um gênero que acabou
por tornar-se quase emblemático na cultura latino-americana:
o melodrama. Sob os códigos desta "forma
de ver o mundo", como a linguagem do melodrama
é sucintamente definida por Peter Brooks, o melodrama
cinematográfico mexicano pautava e agenciava
as discussões nacionais levando-as para o consumo
da massa e criando um imaginário social em torno
do nacional.
No México, o melodrama apresentava matrizes que
se filiavam a múltiplos aspectos de uma cultura
popular. Desde meados do século XIX, os folhetins
de origem francesa eram consumidos por uma camada da
sociedade mexicana, que insistia em firmar suas vinculações
àquela "sofisticada" cultura que tentaria
se plasmar no extenso período em que o ditador
Porfírio Diaz esteve no poder. A música
de cunho romântico, com suas letras lacrimosas
e devocionais à mulher, deixavam marcas indeléveis
na tradição popular. Destaca-se, neste
sentido, o nome de Guty Cárdenas, violonista
maior da trova yucateca e estrela mexicana de filmes
hispânicos produzidos pela indústria hollywoodiana
dos anos 20. Não se pode deixar de mencionar
também o estrondoso sucesso dos melodramas italianos
junto ao público mexicano na segunda década
do século passado. Tais filmes, impulsionados
pelo poder de fascínio exercido por suas divas,
provocavam uma verdadeira adoração junto
a seu público, chegando até a se constatar
nos anos 10 uma onda de menichelismo1
junto às muchachas mexicanas naquela época.
Tudo isso era devidamente temperado com elementos de
uma estética muito popular que enaltecia o namorinho
no portão, o amor reverencial às mulheres,
a serenata apaixonada à luz da lua, o que caracterizava
um gosto bastante questionável para uma certa
elite intelectual que insistia em negar esta "estética
possível do subdesenvolvimento".
O melodrama convertia-se então, no México,
em um espaço privilegiado para as discussões
dos grandes temas nacionais em filmes que traduziam
em um âmbito épico-dramático o projeto
de confirmação de uma sociedade capitalista
firmada com o projeto de Revolução Mexicana.
Assim, a linguagem do melodrama inscrevia as tensões
nacionais no âmbito do doméstico, do privado,
projetando na cultura de massa, um horizonte de discussões
políticas em torno de um projeto nacional.
A filmografia de Emilio Fernández freqüentemente
abordou o tema da Revolução Mexicana,
numa recorrência que confirmava que tal discussão
se apresentava como uma verdadeira preocupação
para o cineasta. Em dois de seus filmes, Flor Silvestre
(1943) e Enamorada (1944), a Revolução
é tomada como um motor principal que deflagrará
os mecanismos capazes de dramatizar a relação
de amor impossível projetado na tela.
O filme de 1943 trará de volta ao México
a grande estrela dos filmes hispânicos de Hollywood,
a mexicana Dolores del Río. Depois de uma carreira
prestigiosa em dezenas de filmes na Meca do cinema mundial,
a estrela, já por volta de seus quarenta anos
e com a carreira praticamente finalizada nos Estados
Unidos, é convidada por El Indio para encabeçar
o elenco daquele que será seu primeiro filme
em língua espanhola. Ao lado de Pedro Armendáriz,
Del Rio estreará em Flor Silvestre o casal
chave dos melodramas de Fernández.
O filme traz a clássica história de um
amor proibido. Contrariando o desejo do pai Don Francisco
(Miguel Angel Ferriz), um poderoso latifundiário,
José Luis Castro (Pedro Armendáriz) se
casa com Esperanza (Dolores del Río), filha de
um humilde camponês. Isso provoca uma ruptura
familiar que, junto à incorporação
de José Luis às tropas revolucionárias,
faz com que pai e filho se separem. Triunfada a Revolução,
bandidos que se fazem passar por generais revolucionários,
invadem a fazenda de Don Francisco e o matam. Ao saber
da morte do pai, José Luis Castro sai em busca
de vingança, o que o leva a enforcar Ursulo (Manuel
Dondé), um dos assassinos. Esperanza e seu filho
recém nascido são seqüestrados e
feitos reféns para que José Luis se entregue.
Ao fim, este é fuzilado diante do desespero de
Esperanza que acompanha a cena com o filho nos braços.
O filme é contado em flashback. Na primeira cena,
vemos um plano geral das terras do Bajío mexicano2.
Ali, no alto, diante da extensão dos campos,
estão Esperanza e seu filho, um jovem cadete
do Colégio Militar. O close no rosto de Esperanza
nos permite ver as marcas do tempo. Ela, a pretexto
de contar a história da família para o
seu filho, inicia um discurso em prol da terra, afirmando
a importância do valor da terra ao conferir dignidade
ao homem. Poderíamos pensar em um discurso agrarista,
a favor daquele que formou o emblema maior do movimento
revolucionário liderado nos anos 10 por Emiliano
Zapata: "Tierra y Libertad". Mas a ligação
entre a mulher e a terra nos filmes de Fernández
apresenta um caráter quase transcendental, como
se as duas fossem forjadas da mesma matéria e,
portanto, assumissem um valor cósmico, atemporal.
Sob as marcas do tempo projetadas numa maquiagem que
envelhecia (e maculava) a plástica perfeita de
Del Río, se inscrevia a memória e a história
diante da terra.
Apresentando ao filho a propriedade da família
Castro, Esperanza quer revelar-lhe sua história:
"Nadie puede vivir sin un pedacito de tierra.(...)
El amor a la tierra es el más grande y más
terrible de todos los amores.(...) Sobre el sacrifício
de hombres como tu padre se levanta el México
de hoy." Assim, o filme revela suas estratégias:
ao problematizar pela ótica do sentimento a questão
agrária e, portanto, a narrativa sobre a Revolução
Mexicana que será apresentada em flashback, Fernández
propõe um percurso que remeterá à
terra o âmbito do amor, numa vinculação
entre Revolução (terra) e mulher (local
onde, por excelência, são trabalhadas as
questões do sentimento no melodrama).
As rupturas promovidas pelo movimento da Revolução
aqui caminharão juntas às rupturas familiares
promovidas pela relação de José
Luis e Esperanza, num diálogo que particulariza
o movimento político, trabalhando-o no universo
da domesticidade e do privado. Desta forma, o corpo
da mulher sintomatiza o fervor revolucionário
a partir do sentimento, consagrando como é de
praxe no melodrama, o corpo feminino como o local do
amor e da paixão.
Este projeto político, que na personagem de Pedro
Armendáriz apresenta-se alimentado pelo fervor
revolucionário e emoldurado pela paixão
impulsiva que fazia da causa política quase um
sentimento primitivo, ligeiramente bárbaro, deve
morrer e ceder lugar a uma Revolução amadurecida,
marcada pelas conquistas de um México civilizado
e fundamentado na ordem e na hierarquia. Anos mais tarde,
a personagem do filho, fardado como cadete do Colégio
Militar, ao escutar a história de sua família,
diante da força e da dimensão da terra,
reforça o caráter épico e distante
daquele primeiro momento da Revolução
Mexicana, já então devidamente domesticada
pela ordem institucional que se seguiu. A morte de um
projeto de revolução – José Luis
Castro – sobrevive no outro – seu filho, o cadete.
Essa relação entre a terra e a mulher
também se faz presente em um filme como Maria
Candelária (1943), por exemplo, que se passa
em 1909 (antes, portanto, da Revolução
Mexicana), quando ajoelhada sobre a terra, a indígena
(Dolores del Río) ao tentar dissuadir seu namorado
Lorenzo Rafael (Pedro Armendáriz) de abandonar
a casa fala-lhe, tendo às mãos um punhado
de terra, do poder ancestral da terra, local sagrado
e atemporal: "Aquí nacimos los dos y aqui
hemos vivido siempre. Ésta es nuestra tierra:
mira qué negra y qué suave. ¿Como quieres
que nos vayamos?" O plano, num leve contra-plongé,
projeta, a partir de uma câmera mais baixa, mais
próxima à terra, as figuras dos indígenas
contra um céu denso, com nuvens dramaticamente
encorpadas a la Figueroa, dotando o quadro de uma aura
atemporal, suspendendo o discurso histórico e
carregando de transcendência o discurso da personagem
feminina, intenção esta reforçada
pela ausência de música na cena que confere
ao momento uma solenidade reverencial.
Se em Flor Silvestre, a personagem feminina pura
e honrada encontra um representante da Revolução
também digno e valoroso, em Las Abandonadas,
à personagem de Dolores del Río, a prostituta
Margô, mulher maculada pelas implacáveis
circunstâncias do seu próprio destino,
cabe-lhe um também um impuro representante da
Revolução. Pedro Armendáriz é
Juan Gómez, um bandido disfarçado de general
revolucionário, um impostor. Embora a referência
à Revolução Mexicana, neste filme,
esteja presente nesta citação à
personagem do galã Armendáriz, a inscrição
do casal protagonista explicita a lógica do melodrama:
para a casta Esperanza, um verdadeiro revolucionário;
para a prostituta Margô, um bandido disfarçado
de general.
Em ambos os casos, porém, a mulher perde seu
amado por conta da Revolução. Em Flor
Silvestre, José Luis é fuzilado por
um batalhão. Em Las Abandonadas, Juan
Gómez é preso ao ser desmascarado pelas
tropas revolucionárias. A possibilidade de um
amor eterno é interrompida por acontecimentos
relacionados direta ou indiretamente à Revolução,
o que inscreve a idéia de que o projeto revolucionário
é um parto doloroso, e que, portanto, só
vingará dentro dos limites institucionais de
uma etapa posterior ao processo insurrecional, representado
nas narrativas fílmicas nas gerações
seguintes ao do casal protagonista. O filho de Esperanza,
de Flor Silvestre, é um cadete do Colégio
Militar; o de Margô, de Las Abandonadas,
é um pródigo e justo advogado, que ao
fim do filme absolve uma pobre mulher no tribunal com
um discurso que faz juz também à absolvição
da própria personagem de Margô, que abrira
mão do filho, entregue a uma instituição,
e se prostituira para, anonimamente, poder educá-lo:
"donde hay una mujer está la pureza de la
vida, pero donde está una madre... ahí
está Dios..."
Cabe aqui também a lembrança de Salón
México (1948), cuja narrativa em muito lembra
a de Las Abandonadas: Mercedes (Marga López)
trabalha como prostituta em um cabaré para poder
educar a sua irmã Beatriz (Silvia Derbez), que
se encontra interna em um pensionato para meninas. Ao
fim, sua irmã se casará com Roberto (Roberto
Cañedo), um tenente da Aeronáutica, filho
da dona do internato, enquanto Mercedes será
assassinada pelo seu cafetão. A geração
"possível" é sempre uma geração
posterior a da Revolução, formatada através
do sacrifício da protagonista que sofre para
poder garantir as conquistas que ela mesma não
alcançou.
Em um outro filme da extensa filmografia de Fernández,
Enamorada (1946), o diretor convida a estrela
Maria Felix para compor o casal com Pedro Armendáriz.
A história, baseada no texto A megera domada,
de Shakespeare também narra a história
de um amor aparentemente impossível. Beatriz
(Maria Felix), filha de um próspero comerciante
da cidade de Cholula, de gênio indomável,
tem uma relação de amor e ódio
com um revolucionário zapatista, José
Juan Reyes (Pedro Armendáriz), a quem aparentemente
despreza. Ela está prestes a se casar com o gringo
Eduardo (Eugenio Rossi), mas acaba rendendo-se ao seu
amor verdadeiro quando na noite de seu casamento escuta
a tropa de José Juan desocupar a cidade, fugindo
do confronto com as tropas federais. Beatriz incorpora-se
à tropa zapatista, seguindo José Juan
como soldadera 3.
Aqui, a Revolução também se apresenta
como um empecilho para a constituição
de um amor possível para o casal protagonista.
Integrantes de classes sociais diferentes e tendo, portanto,
interesses políticos diferentes, a única
possibilidade para a concretização do
amor é a renúncia, o que acontece na cena
final em que abrindo mão do casamento com o noivo
norte-americano (e aí está expresso o
sentimento nacionalista presente nas historicamente
complexas relações entre México
e Estados Unidos), Beatriz rompe o colar de pérolas
que havia ganho do noivo e toma da empregada da casa
o xale com que tomará o posto de soldadera
ao lado do homem a quem seguirá.
Os objetos – o colar de pérolas e o xale – assumem
um peso para além da própria cena. A descrição
detalhadamente realista das "coisas" confere-lhes
um estatuto quase "humano" no sentido de adquirirem
significado na relação de pertença
a um personagem e de revelar um aspecto e caráter
daquele que o possui. Essa relação de
propriedade entre coisas e personagens é crucial
no melodrama, que serviria não somente como forma
de apresentar uma sociedade encoberta pela grandiosidade
gestual, como também articularia o próprio
discurso em prol do descortinamento de uma realidade
social apresentada por uma metáfora, que também
estaria a serviço da representação
melodramática. Todo o gestual deste mundo representado
parece ser configurado de tal forma que temos a impressão
de que não conseguirão suportar o peso
dos sentidos nele colocados. Essa carga de significações
caracteriza uma abordagem que, comumente, identifica-se
como um estilo melodramático de exposição
das situações.
Maurício de Bragança
1. Referência
a Pina Menichelli, a mais bizarra e perversa diva dos
melodramas italianos desta época, atriz de filmes
como Il Fuoco (1915) e La Storia di una donna (1920).
2. O Bajío é uma região
da meseta mexicana que forneceu as matrizes para a constituição
de um repertório de uma suposta mexicanidade
que estava sendo construída neste momento, como
por exemplo a china poblana e o carro cantor, conhecido
como o mariachi.
3. Soldaderas eram as mulheres
que seguiam as tropas revolucionárias, ajudando-os
em atividades acessórias. Tiveram participação
imprescindível no processo revolucionário
|