O Testamento do Dr. Mabuse
Por que Os Espiões permite a impressão
de ser ao mesmo tempo a crítica impiedosa de
Metropolis e um delineamento de muito do que
Lang obteria com M – O Vampiro de Düsseldorf;
de ser uma peça fundamental para a compreensão
tanto dos Mabuse de 22 quanto das dificuldades
que Lang encontrou em todos os seus filmes anteriores
ao sonoro? Difícil sair com uma resposta de qualquer
tipo, uma vez que o filme não parece respondê-las
fácil ou simplesmente. De um lado Os Espiões
de fato abraça a miríade de territórios
e questões – do social ao geopolítico,
do estético ao ensaístico – que fazem
a fortuna de Lang nas suas maiores obras-primas, como
M, Os Corruptos e o dístico O
Tigre de Bengala/O Sepulcro Indiano; do outro
é difícil notar o mesmo tipo de desenvolvimento
intenso destes "parques" ou o tipo de inacreditável
facilidade que Lang parece ter em envolver tudo aquilo
que lhe é fecundo e produtivo numa única
e enorme teia de relações. Mas por que
ele deveria já ter essa facilidade aqui? Afinal
de contas Os Espiões é um rascunho
brilhante (ênfase aqui em "brilhante"), de imediato
o adiantamento e a subseqüente lapidação
de um olhar intransferível.
Uma vez que Lang não apenas é um monstro
rigoroso mas também e igualmente um espírito
astuto, lhe interessa muito em Os Espiões
– precisamente para finalidades de avanço – aquilo
que o material desenvolvido por ele e Thea Von Harbou
apresenta de crítica aos seus trabalhos anteriores.
Pois para a sua própria fortuna criativa Lang
havia descoberto com Metropolis uma maneira de
utilizar os movimentos de uma cidade para desenvolver
e desempenhar diversas modalidades do metacinema, sempre
comparando os percursos de sua arte com o estudo das
ações (isto é, a cena) e a subseqüente
circulação de informações
(a representação desta cena, o 'pôr
em cena') que preenchem tanto o funcionamento quanto
a existência de uma "polis" (o filme em sua totalidade,
não mais apenas o agrupamento de alguns vértices
e alicerces mas uma estrutura tornada completa, essencial
e inescapável). O que essencialmente
falta em Metropolis – e o que ajuda a tornar
problemáticas as glórias constantemente
dedicadas ao filme – é curiosamente algum tipo
de método que subvencione a criação
deste sistema. Em outras palavras, se existe
algo de encantador e interessante no filme é
o fato de estarmos nos deparando menos com o ponto de
vista firme de um indivíduo (não estamos
ainda em 56 ou 57 para falarmos de No Silêncio
de uma Cidade e Suplício de uma Alma)
que com um olhar no seu estado embrionário, se
formando pouco a pouco, cuidadosa e lentamente se cristalizando
perante nossos olhos. O charme de Metropolis
– e tendo em vista o restante da obra de Lang, trata-se
mais de charme que de interesse – é esta crueza,
este lado um tanto rude de um arsenal fantástico
de formas à procura de um mestre-arquiteto.
Do essencialismo
Nada sequer remotamente semelhante aos problemas
de Metropolis em Os Espiões: aquilo
que em outros filmes dava vazão ao esotérico
ou decorativo encontra aqui uma exposição
muito mais acertada, coerente e justa. O início
do filme é um grande exemplo deste mergulho em
direção àquilo que apenas e tão-somente
importa: em alguns poucos planos, na maioria closes
ou planos médios (o que mostra como os tão
festejados planos abertos d'Os Nibelungos
e de Metropolis não são os que
melhor servem à técnica do diretor), Lang
dispõe todas as informações necessárias
para compor o entrecho de seu filme e dar início
aos procedimentos de narração (introdução
dos personagens principais, dos ambientes ocupados por
esses personagens e onde grandes partes do filme serão
situadas etc.). Neste filme em que a informação
é o mais valioso de todos os bens, o próprio
Lang é quem mais tem cuidado em não desperdiçá-la.
Este será o momento – independente deste momento
ser Os Espiões, Trágica Obsessão,
A Mulher de Todos ou Laura – de surgimento
do grande cineasta.
Isso se chama a aurora, e é assim que em Os
Espiões Lang se desfaz de tudo aquilo que
facilmente o tiraria de seu percurso, precisamente para
se concentrar no mais complexo e irresolúvel
de todos os problemas já postos aos cineastas
de todo o mundo e todos os tempos: os enviesamentos
de um rosto, a incapacidade em se dar conta de um semblante,
de uma figura, de uma máscara. Seu trabalho
– o de manter uma máscara para desmontar outra,
para demonstrar outra – só se torna plenamente
possível uma vez que todo seu esforço
vá direta e exclusivamente nas expressões,
nos gestos, nos movimentos, nas hesitações,
no fulgor... enfim, em toda a sorte de instrumentos
que externam algo de seus envoltórios, de seus
proprietários. É o que o cenário
da cidade faz por Lang (cidade criada por ele mas que
num momento posterior o envolve: seja pelo filme que
tem que fazer nela, seja por todas as passagens que
precisa realizar por ela) e o que as tramas rocambolescas
fazem por Haghi, Tremaine e Sonja (mesma operação
aqui: são eles que criam as tramas e são
eles os mais consumidos por elas, Haghi ironicamente
sendo o mais atingido por este fenômeno).
Morte do expressionismo
É aqui, em Lang, que vem ao mundo toda
uma idéia de cinema: de Losey a De Palma, de
Preminger a Godard, passando por Hellman e Bava, Argento
e Chabrol, Rivette e Welles. O que está em jogo
aqui é nada menos que um absurdo jogo de máscaras
e bifurcações, uma enorme peça
que ao final aniquilará justamente a si mesma.
O trabalho de Lang é menos o daquele que acende
o pavio que daquele que assiste ao percurso da chama:
as falhas, os excessos, os pontos de nós, as
fagulhas, nada nos é poupado. Nenhum adiantamento,
nenhuma precipitação: aqui, a arte apenas
espera, uma vez que as coisas já estão
dispostas de forma a não se traírem,
não se deformarem por uma fraqueza ou
pela impaciência de um criador onisciente (coisa
que Lang, aliás, jamais foi). Poucas vezes a
idéia de arte enquanto processo encontrou uma
expressão tão forte, tão impressionante
quanto em tudo aquilo que Os Espiões tornou
possível para Lang (o restante de sua obra, a
saber). O pulo do gato e o sinal de um cinema do futuro
(já passado), de um horizonte que não
só o cineasta alemão poderá vislumbrar
como toda uma (futura) geração de realizadores:
há todo um cinema a se fazer depois de M
e O Testamento do Dr. Mabuse, e demorará
uns bons 30 anos para que esse cinema comece a ser feito.
"Ele nos lembra que um cineasta é antes de tudo
alguém que está adiante das coisas", disse
Jean-Luc Godard a respeito de Renoir. Ironicamente,
foi Lang quem refilmou dois filmes de Renoir e nunca
o oposto. Estranhos os percursos desta arte...
É necessário acabar de uma vez por todas
com Mabuse. Fantasma em O Testamento..., espectro
televisual em Os Mil Olhos..., ele é a
presença mais sorrateira, a mais enganadora de
todas em Os Espiões. Mabuse não
é Haghi, pois afinal de contas não
temos o personagem de Mabuse em Os Espiões;
mas Haghi é a máscara de Mabuse, a encarnação
final de todas as encarnações, todas as
nuances, cuidados, maneirismos, exageros e pequenos
orgulhos do mestre-enganador. Nada mais verossímil
que matar o signo Mabuse não através do
personagem Mabuse mas sim através de sua máscara,
de sua maior performance mabuseana. É
a morte de Mabuse que catapultará o surgimento
do Fritz Lang dos filmes norte-americanos, do artista
maduro que ao final de sua carreira realizará
Moonfleet, Suplício de uma Alma
e O Tigre de Bengala, e de lambuja da obra que
provocará e possibilitará cineastas a
realizarem filmes como Encontro Com a Morte,
La Bande des Quatre, O Signo do Caos,
Missão: Impossível, Agente Triplo,
Modesty Blaise, Grilhões do Passado.
O coup de théâtre final não
deixa nenhuma dúvida quanto a isso: é
aqui que, através do assassinato do signo Mabuse,
Lang finalmente se resolve com a questão (esgotada
e ilegítima) do expressionismo.
Morte do expressionismo = Essencialismo
A verdade de uma máscara jamais é
o seu excesso; uma máscara nada mais é
que uma máscara. Quanto à ausência
da máscara, esta não é jamais a
verdade nem a mentira de um corpo mas sim sua contradição,
seu tormento – um corpo sem máscara é
aquele que à busca de uma acaba invariavelmente
passando por todas. Nada mais cinematograficamente verdadeiro
portanto que o final de Os Espiões, a
resposta sensata de Lang aos que insistem em rótulos
(como "expressionista", "cruel") e facilidades (como
"alemão" ou "norte-americano"): a máscara
do palhaço como a verdade do arqui-criminoso
de mil faces. Na pequena performance que realiza no
placo, diante de uma enorme platéia, aquele que
antes era um mastermind criminal apenas repete
as ações mais básicas de um show
grosseiro. Tendo em vista a completa debilidade de seus
gestos e suas ações, o performer
aqui nada faz senão chamar atenção
para si próprio (ele está no palco de
um teatro, e alguma coisa precisa ser feita para o agrado
da platéia – mas ele se encontra na boa e velha
situação Langiana de não poder
escapar, uma vez que a polícia empreende por
causa de seus atos criminosos uma caçada pelo
teatro). No completo impasse em que Haghi se encontra
– entre se ocultar por trás da máscara
de palhaço para despistar alguns e fazer de si
mesmo um grande show para agradar outros – está
talvez a maior auto-crítica já feita por
Lang de seu próprio cinema (e conseqüentemente
da própria arte). Haghi acaba tendo nenhuma escolha
senão o suicídio, algo que ele incorpora
ao processo de sua performance de palhaço. Essa
morte – a de Haghi, que talvez também seja a
do expressionismo – não deixa também de
ser uma possível verdade sobre Lang, Os Espiões
e tudo aquilo que se seguirá na obra do diretor.
Bruno Andrade
(VHS Continental)
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