CRUZANDO A FRONTEIRA

This is the Night Mail crossing the border,
Bringing the cheque and the postal order,
Letters for the rich, letters for the poor,
The shop at the corner and the girl next door.

WH Auden, para o filme Night Mail (1936)


Em cada país em que trabalhou, Alberto Cavalcanti ajudou a criar filmes que foram triunfos artísticos, sucessos populares e nichos seguros na história do cinema dos países. Mas justamente a natureza internacional de sua obra tem há muito trabalhado contra um entendimento pleno de seu brilhantismo.

Então é um desafio para mim poder falar sobre os filmes britânicos de Cavalcanti, tentar passar um pouco de sua qualidade e efeito para aqueles que não os assistiram, para, felizmente, inspirar algumas pessoas a vê-los e para contribuir de uma pequena maneira para uma maior apreciação da obra deste grande realizador.

O imigrante brasileiro apelidado Cav por seus colegas de trabalho ocupa um lugar distinto no cinema britânico. Trabalhou em dois centros de excelência, no General Post Office Film Unit e mais tarde nos Ealing Studios, quando ambas as instituições estavam em seu auge.

Na GPO Film Unit Cav criou a trilha sonora experimental de Night Mail (Basil Wright, Harry Watt, 1936), misturando narração, efeitos sonoros, música e um poema de WH Auden, mantendo o ritmo incessante da maria-fumaça epônima. É um efeito totalmente artístico comparável com o que Von Sternberg estava querendo para o ritmo picotado dos diálogos de Expresso de Xangai (1932). Esse e outro trabalho de documentário de Cavalcanti para a GPO formam um elo importante com o experimental Rien que les heures (1926) e precisa ser visto de modo a ressaltar a relevância dos documentários no cinema de Cavalcanti.

Os Ealing Studios são bem falados no Reino Unido, principalmente pelas excelentes comédias produzidas lá nos anos quarenta e cinqüenta. Mas o estúdio nos seus dias gloriosos foi responsável por filmes de praticamente todos os gêneros e Cavalcanti trabalhou em uma ampla gama de dramas. Os dois que entraram para a história do cinema britânico foram 48 Horas (Went the Day Well?, 1942) e Na Solidão da Noite (Dead of Night, 1945).

48 Horas é um extraordinário filme de guerra passado no front da Segunda Guerra Mundial. Vagamente inspirado em um conto de Graham Greene, cuja obra foi a base de vários dos grandes filmes britânicos desse período, narra a história de uma típica cidade inglesa capturada por uma força invasora de soldados alemães disfarçados de ingleses e ajudados por um colaboracionista local e como os britânicos reconquistam seu lar copiando a selvageria de seus inimigos.

Lançado em uma época em que uma invasão alemã parecia improvável, o filme é quase um conto de ficção científica que passou da validade. O que o salva e o torna poderoso ainda hoje é a convicção com que foi escrito, atuado e filmado e a atemporalidade de seus temas. Apesar de o filme evitar o estilo de documentário, a experiência de Cavalcanti nesse tipo de cinema o ajuda a criar uma qualidade tocante de realismo e de crescente tensão emocional por toda a obra.

O tema do filme é seu aviso contra a complacência. A invasão inicialmente se dá porque os habitantes da cidade estão por demais satisfeitos e seguros com eles mesmos. A agradabilidade associada aos estúdios Ealing é compreensivamente desmontada à medida que o filme empreende um ataque raivoso à ameaça que se apresenta derivada de presunções preguiçosas. Quando o contra-ataque brutal começa, a carteira local (uma senhora fofoqueira) cega um nazista com pimenta e o golpeia até a morte com o machado que usa para cortar lenha. Ela depois corre para a mesa de telefone para alertar a cidade vizinha. Cavalcanti faz a câmera num chicote acompanhando os fios do telefone enquanto à ligação se faz. Uma luz pisca no painel de telefones do correio da outra cidade. As operadoras, fofocando preguiçosamente entre si. ("Ela pode esperar") Quando finalmente conectam a chamada, a operadora já havia sido morta a golpes de baioneta.

Prendendo nossa atenção, Cavalcanti prossegue com seu segundo tema. "Sabe, eu acho que 48 Horas cresceu como um filme pacifista, contra a guerra por causa da história de uma idílica cidade inglesa em que todo mundo é tão bom, tão afável e, quando chega a guerra, todos se tornam monstros absolutos. Eu acho que esse é o melhor tema que se pode imaginar1".

No clímax do filme (depois de uma prototípica cena de violência em câmera lenta e outra em que uma matrona é explodida por uma granada), temos duas jovens atirando em nazistas e dizendo "Temos que manter o placar". O fato de que uma dessas senhoras é Thora Hird, que mais tarde foi apresentadora de programas religiosos na BBC, causa um frisson especial nos espectadores britânicos, algo como ver Lilian Gish atirando com uma Uzi, e é perturbador de qualquer modo.

É impressionante como Cav pôde inserir idéias tão subversivas em um filme oficialmente concebido para ajudar no esforço de guerra sem ser acusado de traição. 48 Horas é uma espécie de versão britânica de O Corvo (Le Corbeau, H.-G. Clouzot, 1943), mas ao invés de ter seu filme banido, sua vida ameaçada e sua carreira suspensa, Cavalcanti foi aclamado por seu talento e continuou trabalhando no Ealing. Tal era a unidade nacional britânica naquele momento da guerra que um filme podia conter essa franca confissão das coisas horríveis que a guerra faz com o espírito humano e ainda parecer pró-governo.

O outro sucesso de Cavalcanti na Inglaterra foi sua contribuição para o compêndio de terror No Silêncio da Noite. Uma colaboração entre vários escritores e diretores, adaptando histórias já existentes de fantasmas, o filme alcança uma extradordinária coerência, em parte devida a força não usual de sua estrutura de enquadramento. Recentemente o episódio de Robert Hamer, que lida com um espelho assombrado começou a receber o reconhecimento merecido, mas o curta de Cavalcanti sempre foi acertadamente considerado o ponto alto do filme. Michael Redgrave faz o papel de um ventríloquo neurastênico atormentado pela crença de que seu boneco tem uma mente própria.. O tema clássico nunca foi expressado de forma mais poderosa e Redgrave faz brilhante perfomance de um homem dividido, inspirando-se nas performances do cinema expressionista alemão, notadamente Conrad Veidt em O Estudante de Praga (Robert Wiene, 1926). Enquanto os filmes de terror do período eram cuidadosos em apresentar finais felizes em que a ordem era restaurada, a história de fantasma sempre se especializou em finais arrepiantes e Cavalcanti realizou um clímax realmente assustador e um desfecho ainda mais terrível, desprovido de toda esperança e inspirador tanto de pena quanto de repulsa pelo louco – e possuído – herói.

O quadro do Ealing era bem estranho e cineastas talentosos freqüentemente encontravam dificuldade em conseguir aval para seus projetos, mesmo se o anterior tivesse sido um sucesso. Assim Robert Hamer não pôde seguir o sucesso sem paralelos de As Oito Vítimas (Kind Hearts and Coronets, 1949) com nenhum projeto e Cavalcanti foi pressionado a fazer Nicholas Nickleby (1947) apesar de sua profunda falta de entusiasmo por Dickens.

Em um episódio mais feliz, o thriller noir de Cav Nas Garras da Fatalidade (They Made Me a Fugitive, 1947) é uma contribuição concisa e interessante a um gênero dominado por americanos (mesmo os melhores noirs britânicos costumam ser trabalhos de americanos fugindo da caça às bruxas). Partindo de um início forte, em que um amargo ex-militar (o intenso Trevor Howard) cai na vida do crime, o filme busca força na doce inocência da heroína Sally Gray e na maliciosa vilania de Griffith Jones como o gângster Narcy (apelido de Narcissus). A eficiência de Jones no papel pode dever um pouco à sua própria amargura – "Ninguém quer mais saber de atores sinceros", ele reclamaria a um amigo meu depois de alguns drinques.

O filme continua a ser eficiente até o seu clímax, quando de súbito decola para um brilhantismo com um tiroteio em um quarto cheio de caixões, uma queda do teto vista por câmera subjetiva e uma seqüência final tremendamente romântica. Com material inspirador, Cavalcanti poderia criar seqüências visuais do nóvel de grandes nomes do cinema Britânico, tais como Lean, Reed ou Powell.

Tendo dado ao cinema britânico alguns bons filmes e algumas obras-primas, Cavalcanti continuou. Eu devo deixar para outros contarem suas aventuras subseqüentes no cinema – mas eu lerei o que têm a dizer com muito interesse, para me ajudar a construir uma idéia melhor desse fascinante gênio itinerante do cinema mundial.

David Cairns
(diretor e roteirista de cinema e televisão, palestrante e jornalista instalado na Escócia)
Tradução de Juliana Fausto.

1. Entrevista para a BBC, 1977. Outras referências bibliográficas de ajuda: Shepperton Babylon, Matthew Sweet, Faber and Faber, Londres, 2005.
English Gothic: A Century of Horror Cinema, Jonathan Rigby, Reynolds and Hearn Ltd, Londres, 2000.