48 HORAS (Went the Day
Well?)
Alberto Cavalcanti, Inglaterra, 1942
CHAMPAGNE CHARLIE
Alberto Cavalcanti, Inglaterra, 1944
NA SOLIDÃO DA NOITE (Dead of Night)
Alberto Cavalcanti, Charles Crichton, Basil Dearden,
Robert Hamer, Inglaterra, 1945
NICHOLAS NICKLEBY
Alberto Cavalcanti, Inglaterra, 1947
A passagem de Alberto Cavalcanti pelo cinema inglês,
mais especificamente pelos Ealing Studios, durante a
década de 1940, deixa evidente, mais que o talento
ou competência do cineasta, uma espécie
de natureza camaleônica de seu trabalho. Se os
Ealing Studios, sob o comando do chefe de produção
Michael Balcon, deixavam evidentes na quase totalidade
de seus projetos um ideal de criação ou
divulgação do que poderíamos considerar
como uma "identidade nacional inglesa", e
funcionando como uma espécie de escola para uma
geração de cineastas britânicos
como Charles Crichton, Basil Dearden, Robert Hamer e
Alexander Mackendrick, surpreende a forma como Cavalcanti
– brasileiro e de formação cinematográfica
na França – consegue, preservando suas particularidades
individuais, não destoar do estilo predominante
na contingência local.
Vale ressaltar o modelo de produção predominante
na Ealing, que pode até lembrar o estilo do cinema
B dos grandes estúdios norte-americanos da época,
com produções de orçamento bastante
curto e prazos de realização bastante
estreitos. Só que este modelo, na prática,
acaba sendo mais comparável ao dos estúdios
de segunda linha – Republic ou RKO, por exemplo – atingindo
um padrão intermediário às linhagens
A e B dos majors, sem os orçamentos monumentais
e as grandes estrelas da produção A, mas,
por vezes, se permitindo a uma maior, digamos, flexibilidade,
que as limitações impostas pelo rigor
quase espartano inerente aos filmes B.
Mas voltando ao caso específico de Cavalcanti,
é impressionante como seus filmes conseguem manifestar
– para o bem ou para o mal – a maior parte das convenções
não somente do cinema da Ealing, como também
do cinema inglês da época, ao qual Cavalcanti
certamente vem acrescentar um maior vigor e realismo,
advindo de sua experiência prévia no documentário.
Mesmo assim, causa espécie sua escolha, frente
a companheiros britânicos natos no estúdio,
para conduzir 48 Horas, flagrante panfleto de
mobilização feito durante a 2ª
Guerra. Mas é certo que Cavalcanti consegue impregnar
o filme de algum verismo e senso crítico – este
último, sim, podendo ser creditado a uma espécie
de isenção estrangeira – conforme destacou
David Cairns em texto também apresentado nessa
edição e que toca nos pontos essenciais
de 48 Horas.
Menos flagrante como panfleto e também um caso
ímpar, tanto na carreira de Cavalcanti como na
dos estúdios Ealing – nenhum dos dois afeitos
ao cinema musical - é Champagne Charlie.
Em princípio um musical com um argumento na linha
backstage – subgênero bastante popular
no cinema americano dos anos 30 e que tem como exemplo
mais célebre Rua 42 – vai aos poucos adquirindo
facetas na qual são contrabandeadas idéias
que pregam a união contra um inimigo comum, à
medida que as personagens do filme – artistas do teatro
popular burlesco londrino durante meados do século
XIX – se integram contra uma cruzada moralista que prega
o fechamento dos cafés-concerto.
Porém, até que cheguemos a esse final,
que sem dúvida carrega um certo teor de anarquia
subversiva surpreendentes para um cinema de tempos de
guerra, Champagne Charlie, que narra a ascensão
de um cantor de cabarés, intercalando a narrativa
com a encenação detalhada de números
de palco e que encontra estrutura bastante similar a
um filme americano da época: A Canção
da Vitória, de Michel Curtiz (1942). Só
que, no filme de Curtiz, o artista interpretado por
James Cagney promove uma "elevação
dos espíritos" da platéia através
de canções patrióticas, enquanto
as músicas de Champagne Charlie fazem
apologia das mais variadas espécies de bebida
alcoólica, isso dentro da moralista Inglaterra
vitoriana. Mais uma vez o passado de documentarista
de Cavalcanti se faz preponderante para o filme, com
o diretor caprichando em recriar da forma mais realista
possível o clima e a ambientação
dos teatros vaudeville. Mas esse realismo chega
a incomodar um pouco à medida que se sucede um
excesso de seqüências com infinitas canções
musicalmente pobres versando sempre sobre um mesmo tema.
Na Solidão da Noite é o mais conhecido
e reconhecido até hoje dentro dos filmes dos
quais Cavalcanti participou em sua fase inglesa. Obra
coletiva, trata-se de uma coletânea de histórias
de terror em episódios, assinada por quatro dos
mais importantes diretores atuantes na Ealing. Ressalta
mais uma vez a coesão do trabalho de Cavalcanti
no contexto do estúdio, apesar de também
deixar flagrante seu talento superior como cineasta,
frente aos colegas. Como também foi destacado
por David Cairns, um de seus dois episódios,
The Ventriloquist Dummy, - pois o outro Christmas
Party é demasiado curto – é sensivelmente
o mais rico de todos, ao mesmo tempo assustador e absolutamente
crível, ao retratar um curioso caso de esquizofrenia.
Também não deixa de impressionar a unidade
de Na Solidão da Noite, mesmo tendo sido
trabalhado por 4 diretores. O filme parece único
em seu contexto temporal, um terror psicológico,
com sua narrativa circular e sombria, em tom de pesadelo
infinito, no qual o sobrenatural e sempre contraposto
a uma visão céptica, pela presença
entre as personagens de um psicanalista que sempre tenta
traçar uma explicação verossímil
para as diferentes experiências apresentadas.
Na Solidão da Noite antecipa na maior
parte dos aspectos a série da TV americana dos
anos 60 Alem da Imaginação e sua
estrutura certamente foi a inspiração
para a versão para o cinema da mesma série,
feita nos anos 80, também com 4 diretores em
vários episódios entremeados por uma história
de conexão entre eles. Mas seria injustiça
falar do filme sem também destacar o trabalho
de Charles Crichton, no episódio Golfing Story.
Único em tom de comédia – gênero
que viria a ser o forte, tanto do diretor como de toda
a produção da Ealing - Golfing Story
é dotado de impressionante ironia e falta
de senso de moralismo.
Mesmo sendo o que carrega menos as características
pessoais de Cavalcanti, que declaradamente manifesta
sua insatisfação com o filme, ao qual
se dedicou apenas por força de obrigações
contratuais com o estúdio, Nicholas Nickleby
é filme que cumpre uma função
mais que digna como adaptação cinematográfica
de romance de Charles Dickens. Cavalcanti opta por um
tom mais leve, diferente do tom carregadamente sombrio
presente nas duas famosas transposições
do mesmo autor que David Lean dirigiu no mesmo período:
Grandes Esperanças (1946) e Oliver
Twist (1948). Mesmo sem fugir do modelo que acabou
sendo vulgarizado pelo cinema inglês das mais
diversas épocas – adaptações formalmente
acadêmicas de textos literários com cuidadosa
reconstituição de época – Cavalcanti
faz de seu Nicholas Nickleby uma peça
bastante ágil, que une com precisão e
em breves 100 minutos os diversos episódios vividos
pela personagem título. Coisa que nem de longe
foi conseguida por Douglas McGrath em sua burocrática,
preguiçosa e insatisfatória refilmagem
recente do mesmo texto, O Herói da Família
(2002). Mais pontos para a riqueza da obra curiosamente
vasta e apátrida de Alberto Cavalcanti.
Gilberto Silva Jr.
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