Ao longo do novo filme de Andrucha
Waddington, vez ou outra vem a impressão
de se estar na sala de cinema para ver e ouvir o
vento. Por mais que as imagens transmitam uma grande
segurança em relação ao que está sendo construído no
filme, é possível enxergar um desejo mudo em Casa
de Areia: ter uma narrativa de fundo sustentando
um belíssimo documentário sobre o vento que sopra nos
lençóis maranhenses. Há um vigoroso estudo de paisagem
e de ritmo que pouco a pouco se comprova inseparável
da trama calcada no tempo e no corpo. O fato é que Casa
de Areia, já nos seus primeiros minutos, oferece
menos uma estrutura psiconarrativa
imediatamente mapeável do
que uma experiência que se funda na desordem empírica
dos acontecimentos, com a sensibilidade espacial e a
narratividade dos olhares adquirindo uma potência sobrecomum.
Assim como em Wong Kar-wai
(Ashes of Time,
Amor à Flor da Pele), aqui uma temática do tempo
e da passagem constitui o arcabouço de um cinema das
elipses. Toda passagem se deixará então produzir sob
a forma da dissimulação, da prestidigitação. A montagem
em cortes secos apenas exacerba no filme a indeterminabilidade – ao menos num primeiro momento – do tempo
transcorrido entre um plano e outro, essa cronologia
fugidia estando na base de sua composição elíptica.
Mas em Casa de Areia não se experimenta a vertigem
de alguns filmes de Wong (Days of Being Wild, Felizes Juntos), pois tanto a noção de movimento
está no caminhar vagaroso que as areias das dunas impõem
quanto o projeto estético de Waddington
– muito antes de incorporar a sensação de queda em abismo
– pede uma firme atrelagem ao solo, seja pela busca
de uma qualidade da mise
en scène (busca que transcorre
em sentido positivo, sem render, por exemplo, o incômodo
“peso da imagem” de Lavoura Arcaica,
ou a sofisticação às raias da esterilidade de Abril
Despedaçado), seja pela confirmação de uma
poesia de geólogo, que examina a terra para extrair-lhe
uma beleza que é mais textural
do que “essencial”. De Eu, Tu, Eles a Casa
de Areia, esse telurismo
passou por radicais mudanças cromáticas e físicas. Ao
sertão de cores quentes, onde a terra é o que nunca
sai do lugar, se segue uma paisagem colorida-em-branco-e-preto
e em eterna mobilidade. Se há como falar de uma espacialização
do tempo em Tarkovski, em Casa de Areia o processo parece se inverter
e resultar na temporalização do espaço, uma vez que
este deixa de ser aquilo que permanece e se torna parte
do elemento movente, eixo indistinto de um espaço-tempo
que escorre nessa locação que nada é senão um imenso
relógio de areia. Por isso um ponto do “sistema” pode
estar a “um dia e meio” de outro – a medida da distância
é o tempo.
No seu mergulho ao “Brasil profundo”, Waddington
já havia mostrado não apenas a preferência por configurar
um lugar isolado, mas também a proposição de uma nova
matemática do mundo e dos homens (em Eu, Tu, Eles,
um teorema afetivo insolúvel; em Casa de Areia,
a geometria de um espaço curvo). E é já em Gêmeas,
seu primeiro longa-metragem, que se instaura uma obsessão
da semelhança que os filmes posteriores re-trabalham:
rostos parecidos ou mesmo repetidos,
histórias que se reciclam ao capricho do destino,
sucessão espacial desdiferenciada.
Em Casa de Areia, no solo movediço em que todo
traço e todo vestígio são apagados, a semelhança é a
forma que mais se aproxima da permanência. O que não
é possível é justamente a “escritura”, a tentativa de
demarcar limites no território ou livrar alguma coisa
do esquecimento através da sua conversão em signos legíveis.
O halo solar, na cena após o eclipse, só fica registrado
na chapa sensível porque constitui uma marca de natureza
indicial, responde diretamente
à experiência presente.
Já no segundo plano do filme, após a lenta tomada aérea
que transforma o espaço em pura superfície (quase uma
gravura), Waddington inscreve
a magnificência dos quadros numa estética do pleno preenchimento
em que o elemento fora-de-campo não estará necessariamente
em contigüidade com o enquadrado, mas antes será o que
provisoriamente não pertence ao filme. Os movimentos
(de câmera, de personagens) se desenvolvem lateralmente,
e as imagens se formam menos numa relação de fundo-superfície
do que num crescimento para os lados – discreto parentesco
estético com Gerry
que parece explicitado no início do filme, com a
câmera praticamente repetindo um enquadramento de Gus
Van Sant ao acompanhar de
perto os rostos de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro
lado a lado enquanto caminham. Todo distúrbio que houver
nesse ambiente será, de alguma maneira, uma ruptura
dessa topografia, uma recusa a essa premissa de “movimentos
de orla”.
Na inextensão desse espaço
em que a História é um eco distante, uma matéria de
cinema fantástico entra quase que por osmose, e um eclipse
ou uma lua mélièsiana desdobram
em fábula toda a performance meteorológica que o filme
traz. Princípio mantido até o fim: sob um céu de ficção
científica, mãe e filha se reencontram após anos e anos
de uma separação que apenas concretizara a distância
entre seus mundos interiores opostos. A composição visual
da cena que encerra Casa de Areia não esconde
sua tarefa de ser também um equilíbrio dos contrastes
(de enquadramento, de tom) – e uma conciliação com as
cores. Antes desse equilíbrio, contudo, foi dando boas-vindas
às intempéries que Waddington evitou uma lógica de aquariofilia
(que não permitiria a entrada de qualquer coisa que
escapasse a uma certa escolha visual/temática) e encontrou
uma força na entropia do espaço que só tem a somar para
sua proposta estética. Casa de Areia é ao mesmo
tempo um projeto distante e complementar a Eu, Tu,
Eles. O mesmo feelgood no desfecho, a mesma candura disfarçada
na crueza, o mesmo prazer em fazer retornar o “semelhante”.
O distanciamento está em não se limitar à repetição,
não aderir à tautologia autoral, e sim querer expandir
seu horizonte de cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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