O Capitão Fracasso:
na adaptação para o cinema do clássico
de Théophile Gautier, Alberto Cavalcanti – até
então ligado à vanguarda francesa da década
de 20 – põe em prática a influência
griffthiana, afastando-se do "teatro filmado"
que caracteriza as obras realizadas nos primórdios
da sétima arte em seu país de adoção.
Nobre falido, ao abrigar companhia teatral em viagem
pela França, apaixona-se por uma das atrizes
e resolve se unir ao grupo, segundo com ele até
Paris para, em audiência com o rei, sanar a delicada
situação financeira na qual se encontra.
No meio do caminho, enquanto participa dos espetáculos
com o personagem do Capitão Fracasso, ele precisa
resgatar sua amada, mantida refém por arrogante
membro da nobreza (um ainda jovem Charles Boyer) que
lhe deseja a mão em casamento. Apesar da trama
conhecida, que também origina, por exemplo, A
Viagem do Capitão Tornado, de Ettore Scola,
o principal foco de interesse da versão de Alberto
Cavalcanti está no choque que ela estabelece
entre propostas antagônicas: de um lado, a teatralização
de textos literários consagrados, vertente dominante
no cinema francês do início do século
XX, e, de outro, a narrativa de ação construída
a partir da linguagem sistematizada por Griffith nos
EUA, com filmes como O Nascimento de Uma Nação
e Intolerância.
Lançado em DVD no Brasil, O Nascimento, Vida,
Paixão e Morte de N. S. Jesus Cristo, de
Lucien Nonguet e Ferdinand Zecca, revela os mecanismos
fílmicos utilizados no cinema pré-griffthiano.
Via de regra, a câmera respeita o proscênio
teatral, uma vez que o espaço que se coloca à
frente da objetiva é registrado, em plano conjunto,
como palco onde se desenrolam os acontecimentos. As
ações começam e terminam nos limites
traçados pelo enquadramento, em planos estanques
que não se conectam aos demais, pois, como as
cenas se fecham sobre elas mesmas e são independentes
entre si, não se faz necessário encadeá-las
através da montagem para que a narrativa do "teatro
filmado" faça sentido aos olhos do espectador
(ao contrário, pois, de O Capitão Fracasso,
que nasce da soma de significados fragmentários
e incompletos, de acordo com o cinema clássico-narrativo
com o qual se alinha).
Embora integre, junto a Abel Gance, Jean Epstein e Marcel
L’Herbier, o movimento de vanguarda francês, o
primeiro filme do diretor, Rien que les Heures,
demonstra-o: espécie de sinfonia de cidade, como
em voga nos anos 20, flagra fatos cotidianos esparsos
e em aparência isolados de Paris durante um dia,
mas os unifica sob o conceito da eternidade do tempo
e da vastidão do espaço, quando comparados
à pequeneza do homem –, Alberto Cavalcanti, em
O Capitão Fracasso, segue D. W. Griffith.
Assim, vê-se na tela a aproximação
da câmera ao corpo dos atores, de modo que tanto
rompe com o espaço cênico real pressuposto
pelo palco, quanto cria espaço abstrato e virtual
que, mediado pela montagem, gera a ilusão de
unicidade, de continuidade e, por conseguinte, de realidade.
Não mais restritas e enclausuradas num único
plano, as ações se expandem e se desenvolvem
igualmente nos quadros anteriores e posteriores: a edição
se torna fundamental para o entendimento do filme, já
que não apenas permite o corte do plano aberto
para o fechado, e vice-versa, dentro da mesma cena,
como também, e sobretudo, propicia o corte em
movimento, o qual, ao propagar as atitudes dos personagens
de um plano a outro e mesmo de uma seqüência
a outra, dá o dinamismo e a energia requeridas
pelo "filme de aventura" que O Capitão
Fracasso tenciona ser.
Portanto, O Capitão Fracasso não
se fia na literatura, no teatro ou na vanguarda: trata-se
de narrativa cheia de percalços que visa ao divertimento
da platéia. Para tanto, aposta na ação
desenfreada e na correria, fórmula usada até
hoje no cinema de Hollywood, contudo sem a qualidade
do filme realizado por Cavalcanti há mais de
setenta anos.
Paulo Ricardo de Almeida
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