Alberto Cavalcanti filma O
Canto do Mar em Recife entre 1952 e 1953. Depois
de deixar o cargo de produtor-geral da Vera Cruz, no
início de 1951, e realizar a comédia Simão,
o Caolho (1952), para a Maristela, liga-se a outra
produtora paulista, a Kino Filmes, levando adiante um
projeto já anunciado nos tempos da Vera Cruz
de adaptar para o litoral brasileiro a história
de En rade, produção francesa que
dirigiu em 1927.
Antes de chegar ao litoral, O Canto do Mar apresenta
um prólogo documental no sertão pernambucano,
com imagens da seca e uma solene voz over reforçando
o drama dos retirantes que abandonam suas casas para
procurar trabalho no sul do país. Viajando de
caminhão, eles chegam a uma praia de Recife,
onde começa o enredo. Ali perto mora uma família
pobre, sustentada pela mãe lavadeira, desgostosa
com a loucura do marido, o filho pequeno doente e a
filha que só pensa em melhorar de vida, nem que
para isso seja preciso se prostituir. Orgulho materno
é o filho Raimundo, que sonha em pegar um navio
para o sul, levando junto a namorada.
A certa altura, pelo meio do filme, reaparecem os retirantes
do prólogo, embarcando para o sul e sendo observados
por Raimundo e seu pai. Reaparece, inclusive, a voz
over, o que reforça o estranhamento da
cena documental que irrompe em pleno desenvolvimento
do enredo, quando os personagens literalmente param
para deixar o documentário passar. É curioso
porque, se por um lado o filme pretende articular sertão
e mar no mesmo processo de estagnação
e desejo de fuga, por outro lado insiste em mantê-los
como mundos distintos, desconectados até pelo
gênero, cabendo a um o tratamento documental e
a outro o ficcional. Mais eloqüente do que todo
o discurso da voz over e de muitos diálogos,
é a imagem de abertura, uma admirável
fusão que associa as linhas do mapa de Pernambuco
ao desenho formado pelas rachaduras na terra ressecada
do sertão. A idéia de aprisionamento e
fatalidade, que atravessa todo o filme, está
aí traduzida à perfeição,
com um impacto e beleza que não irão se
repetir quando, com intenção semelhante,
surgem imagens recorrentes de redemoinhos, gaiolas,
grades e vigas que parecem aprisionar os personagens.
O precário entrosamento entre ficção
e documentário não se limita à
relação sertão-mar, desdobrando-se
também ao longo do desenvolvimento da narrativa.
O Cavalcanti documentarista não consegue deixar
passar a oportunidade de inserir ao longo do filme uma
série de manifestações artísticas
e religiosas locais, incluindo o frevo, maracatu, bumba-meu-boi,
procissão, carpideiras, terreiro de xangô.
As inserções documentais comprometem o
andamento da ação? Talvez, mas com uma
história tão depressiva de frustrações
e maldições (a miséria, a loucura)
e a pouca expressividade do protagonista que em nada
contribui para alcançar a densidade dramática
desejada, o dinamismo das cenas documentais é
mais que bem-vindo. Cavalcanti filma com visível
empolgação, em especial as danças
e o xangô (como é chamado o candomblé
em Recife). Não só tira proveito dos elementos
visuais, a exemplo da movimentação das
sombrinhas durante o frevo, como empreende um notável
trabalho de gravação das músicas,
em histórica documentação audiovisual.
Quando pai e filho visitam o terreiro de xangô,
a seqüência é dominada pelo som dos
instrumentos e da cantoria, valorizados ainda mais pela
montagem. Os personagens funcionam como pretexto para
filmar aquele ambiente, não há maior integração
entre eles – para isso, será necessário
esperar uns dez anos por Barravento.
A seu modo, O Canto do Mar procura se aproximar
do neo-realismo. Pode-se perceber mesmo referências
a Terra trema (Luchino Visconti, 1948), tanto
pelo tema, envolvendo uma comunidade à beira-mar,
como pelas imagens do baú onde o protagonista
guarda panfletos de viagem e a figura da mãe,
imóvel e toda vestida de negro, observando o
mar à espera do retorno do marido. Embora o filme
esteja atrelado à linguagem dos estúdios,
nos aspectos mais convencionais como uma certa rigidez
na mise-en-scène e a impostação
dos atores, a escolha por filmar em locação
traz o encanto e as surpresas da cor local. As fisionomias
que vão surgindo na tela, especialmente na seqüência
da morte do filho caçula, pouco ou nada costumavam
freqüentar o cinema de ficção brasileiro.
Também a fisionomia arquitetônica da cidade
não poderia passar desapercebida a Cavalcanti,
com sua formação de arquiteto e diretor
de arte – as casas velhas, os becos e telhados do antigo
bairro de São José, a disposição
entre os coqueiros das casas de palha na praia, os sobrados
da zona de prostituição, cuja escadaria
ele aproveita para fazer um plano homenagem a A Morte
Cansada, de Fritz Lang.
Construída em locação (com alguns
planos filmados em um armazém que servia de estúdio),
a casa da família deixa ver, pela moldura da
porta e das janelas, a paisagem exterior. O vento entra
pela casa, esvoaçando cortinas, roupas e cabelos.
Carioca de família pernambucana, Cavalcanti não
esquece de filmar a brisa recifense, documentando assim
um dos patrimônios locais mais valiosos.
Luciana Corrêa de Araújo
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