O ÍNDIO VISITA O CINEMA DE CABARETEIRAS
Emilio Fernández, Salón Mexico, México, 1948
Emilio Fernández, Victimas del pecado, México, 1950

Emilio Fernández costumava afirmar sempre sua admiração pelas mulheres, dedicando parte de sua obra às personagens femininas. Certa vez declarou em uma entrevista que, em uma visita ao Louvre, chegara a sentir ciúmes diante da Vênus de Milo, ao perceber o olhar de outros homens à estátua. "¡Una mujer perfecta!", teria dito, ao referir-se à inacessível condição de obra de arte, no sentido mais puro e abstrato e, claro, à completa imobilidade que aquela mulher sem braços parecia evocar.

Assim seria, nos seus filmes, a mulher perfeita para o Indio, assemelhada à beleza de uma obra de arte e tão inacessível quanto esta. Além disso, toda e qualquer mulher só teria seu verdadeiro valor à sombra do seu macho, responsável por conferir-lhe o selo de mulher decente e valorosa. "Las mujeres valen por el hombre con quien andan", diz o inescrupuloso personagem de Rodolfo Acosta a uma revoltada Ninón Sevilla em Victimas del Pecado (1950). Essa parece ser a correta receita para definir o caráter de uma mulher nos filmes de Fernández. As prostitutas, por sua vez, sem um homem que as legitimassem, estavam fadadas à infelicidade e à desamparada solidão. "Nosotras no tenemos el derecho de tener hijos", diz, no mesmo filme, a dançarina cubana Ninón Sevilla. Em Las abandonadas (1944), Margô (Dolores del Rio) se retira do lado do seu filho que vai ser retratado em seu aniversário por não se sentir digna de estar com ele.

Freqüentemente o diretor se derretia em elogios a essas mulheres, proporcionando-lhes cenas como a famosa serenata a Beatriz (Maria Felix), quando os inevitáveis olhos da atriz, fotografados por Gabriel Figueroa, abrem-se ao som de "La Malagueña" enchendo de poesia e encantamento a cena de Enamorada (1946). Porém não se cansava de surrá-las em cena. Em quase todos os seus filmes abundam as cenas de bofetadas e surras em mulheres, como o soco de José Juan Reyes (Pedro Armendáriz) em Beatriz na escadaria da Igreja no já citado filme e os golpes levados por Mercedes (Marga López) em Salón México (1948).

Em fins dos anos quarenta, Emilio Fernández abandona suas paisagens rurais, suas já emblemáticas cenas emolduradas pelos magueyes e pelos famosos céus de Figueroa, e lança-se para o ambiente urbano, movido pelas questões que aquela década agendava. Dedica duas obras àquela que parecia ser a personagem principal de um repertório de filmes que então se anunciavam: a cabareteira. Em 1948 filma, com Marga López, Salón México, e em 1950, tendo à frente a cubana Ninón Sevilla, atriz-dançarina que encarnaria uma das principais cabareteiras do cinema mexicano, rodaria Víctimas del Pecado.

Tratando-se da temática abordada, o cinema mexicano dos anos quarenta foi-se voltando para as cidades, abandonando pouco a pouco a ambientação rural, num processo que acompanhava de perto a própria realidade do país, que perdia rapidamente suas feições rurais com o projeto desenvolvimentista dos governos daquela década, principalmente no período de Miguel Alemán (1946-1952). Esses filmes constituiriam quase um novo gênero, um "cinema dos arrabaldes", um tipo de melodrama urbano.

Nessa ambientação da cidade, os reflexos dessa modernidade paradoxal: junto às inovações projetadas numa urbanização cosmopolita vinham os problemas decorrentes deste desenvolvimento representados por uma classe trabalhadora achatada em sua condição de subalternidade, inscrita freqüentemente num cenário que tornou-se tradição de representação desta classe social no cinema, a vecindad (o bairro). Ao lado do cabaré, esse bairro representa o entrelugar do discurso no qual se depositam os valores tradicionais que a cidade grande tende a destruir, paralelamente à projeção de outros vinculados a um erotismo que desafia a família tradicional.

Esse bairro de vizinhos retratado pelo cinema mexicano ao abordar os personagens das zonas periféricas da cidade grande já estava presente em filmes como La Mujer del Puerto, de Arcady Boytler e Raphael J. Sevilla (1933) e tornaria-se reincidente neste cinema dos arrabaldes, que vai fazer desta vila de vizinhos o local por excelência dos conflitos localizados e da solidariedade manifestada entre os humildes, sentimento este muito trabalhado pelo melodrama. Em filmes como Nosotros los pobres (1947), Ustedes los ricos (1948) ou Pepe el Toro (1952), todos de Ismael Rodríguez com Pedro Infante como protagonista, o bairro é mais que um cenário, é um universo particular capaz de justificar o desenvolvimento da narrativa e o caráter dos personagens. A tradição dessa vila de vizinhos está também na televisão em seriados como Chaves e na sua diversidade de personagens.

O cabaré, nestes filmes de cabareteiras, e mais precisamente os fundos deste cabaré (como os camarins, por exemplo), assumem o espaço do exercício da solidariedade entre as prostitutas, como apresentado no já citado Victimas del Pecado, no qual todas as meretrizes, capitaneadas por Violeta (Ninón Sevilla), acabam por adotar o bebê recém nascido de Rosa (Margarita Ceballos) retirado de uma lixeira onde havia sido depositado pela mãe ao ser pressionada pelo cafetão.

Essa modernização da cidade, presente nos filmes de cabareteira na agitada vida noturna, por exemplo, nos inúmeros planos dos letreiros dos night clubs, boates e cabarés, esteve acompanhada pelo lado periférico desse processo, uma rápida proletarização da sociedade, a articulação do jogo sindical, o início do crescimento desordenado das cidades proveniente de um brutal êxodo rural.

Este cinema se apóia numa atmosfera em que a tipologia subalterna tem raízes em uma problemática realidade social mexicana. Fortemente influenciadas pelo cinema noir americano, as narrativas dos filmes de cabareteiras anunciavam uma sociedade urbana inserida num contexto ameaçador e deteriorado, no qual habitavam os deserdados deste propagado desenvolvimento representados por mendigos, prostitutas exploradas por seus rufiões e cafetinas, funcionários públicos corruptos, policiais sem caráter e outros seres socialmente degradados. Muitas vezes o roteiro nascia de storylines inspirados nas notícias de matérias retiradas das páginas policiais dos jornais. O clima de pós-guerra era tropicalizado nas telas, através da abordagem desta personagem, deusa dos fetiches tropicais que alimentava a sede voyeurística de um público disposto a se deleitar com a sensualidade exposta nos números musicais.

Salón México apresenta uma releitura da história de Las Abandonadas. Mercedes (Marga López) é uma prostituta que ganha a vida no cabaré Salón México assessorada pelo cafetão Paco (Rodolfo Acosta). Assim ela consegue dinheiro para manter sua irmã, Beatriz (Silvia Derbez), num colégio interno de meninas, sem que esta nada saiba do trabalho de sua irmã mais velha. Depois de muitos percalços com a polícia, Paco acaba por refugiar-se na casa de Mercedes, a contragosto da cabareteira, que no fim esfaqueia o bandido antes de ser morta por ele a tiros. Beatriz se casa com um oficial da Aeronáutica, filho da diretora da escola onde estuda.

O filme apresenta claramente dois espaços que se distanciam imensamente em termos de discursos sobre o México. Um, o cabaré Salón México, compõe um universo no qual a fome, a falta de dinheiro, as atividades ilícitas e a prostituição regem a vida de seus personagens, meretrizes, trabalhadores, gigolôs e malfeitores. As cenas são sempre noturnas e acompanhadas pelo sedutor ritmo do danzón e dos números em que predominam a música e as sensuais danças afro-caribenhas. A fotografia é densa e com muitas nuances entre o claro e o escuro, carregando de magia e sedução o esfumaçado e festivo ambiente. O Salón México parece apresentar um universo de um país falido, devastado, que deveria ser superado pelo ambiente contrariamente representado pelo Colégio interno onde estuda Beatriz.

Ali, em um ambiente solar, em espaços amplos e assepticamente iluminados para uma fotografia chapada, a escola apresenta um discurso da correção e da ordem. As meninas discursam sobre os símbolos pátrios e sobre personalidades como São Francisco e Louis Pasteur. São cultivados sentimentos patrióticos reforçados pela comemoração de datas cívicas como a data de Independência e visitas culturais aos museus de arte pré-colombiana.

Tudo parece contrapor os dois discursos que, apesar da oposição, estão estreitamente ligados pelos laços entre as duas irmãs. Estes dois Méxicos, o que é e o que deveria ser, apresentam duas faces da mesma moeda. Porém, apesar do discurso que aparentemente parece bem colocado a favor de um México desenvolvido na hierarquia da ordem representada pelo colégio interno, Emilio Fernández se delicia com a imundície e os vícios do Salón México. Sua câmera percorre os corpos e o ritmo alucinado das noites do cabaré completamente seduzido com as possibilidades de diversão e deleite que aquele universo provoca, revelando uma intimidade com o antro que a frieza asséptica destinada ao internato não possui. Sua opção é clara. A vida que interessa, a que faz pulsar as pessoas e provoca emoção no espectador está no ambiente cabareteiro, que se coloca então como o país verdadeiro. O cabaré assume um espaço destinado ao prazer e ao deleite, apoiado pela fotografia de Figueroa que intensifica a densidade dos corpos expostos nos números musicais, recortando as curvas sensuais da dançarina que quase num transe promove, por meio de uma decupagem de som e imagem que faz dialogar corpos e instrumentos musicais, uma festa em favor da mestiçagem.

Claro que, ao fim, como costumam ser tais melodramas, as coisas devem ficar cada qual no seu devido lugar. Esse México pulsante e verdadeiro, porém corrompido e degradado, deve morrer e dar lugar ao México que nascia dentro da lei, da ordem e do progresso. Mercedes e Paco morrem enquanto Beatriz, formada professora, se casa com o oficial das Forças Aéreas, reafirmando o discurso de que um projeto de México estava ultrapassado diante das inevitáveis propostas modernizadoras que acenavam no cenário político do fim daquela década. Mas o espectador deste drama arrabaldeiro conseguia ir além do moralismo inócuo e, com a intimidade que possuía com as matrizes daquela cultura popular, entendia melhor o recado.

Víctimas del Pecado é o único trabalho de Emilio Fernández com o furacão cubano presente no corpo roliço de Ninón Sevilla, já então um dos grandes nomes do star-system da indústria do cinema mexicano. O filme conta ainda com outros grandes nomes deste circuito musical dos anos quarenta, como Rita Montaner, em seu próprio papel, e Pedro Vargas, um dos maiores cantores de bolero mexicano e que no filme canta a música "Pecadora", cujos versos comentam, em planos entrecortados com a imagem da prostituta Rosa chorando por ter jogado o filho recém nascido na lixeira, a atitude da desnaturada mãe ("¿Por qué te hizo el destino pecadora/ si no sabes vender el corazón?").

Os números musicais da dançarina cubana são pérolas dentro do filme. Costumavam ser coreografados pela própria atriz que, em Víctimas del Pecado, pediu ao diretor que fizesse o famoso número do cabaré de improviso, com os microfones abertos, som direto, sem play-back, para que o resultado tivesse a emoção do número real. O resultado pode ser comprovado nas cenas que são de tirar o fôlego e que serviram para aumentar o mito em torno da atriz que causava furor em platéias de boa parte do mundo onde o filme era apresentado, tendo colhido elogios inclusive de François Truffaut nos Cahiers du Cinéma: "Olhar inflamado, boca de incêndio, tudo se lança em Ninón Sevilla (a testa, os cílios, o nariz, o lábio superior, a garganta, o tom com que se aborrece), as perspectivas fogem pela vertical como outras tantas flechas disparadas, desafios oblíquos à moral burguesa, à cristã e às demais."1

A direção de Fernández, associada à fotografia de Gabriel Figueroa, sabe explorar com competência a sensualidade presente neste repertório de cabareteiras. A decupagem, que destroçava os corpos das dançarinas, oferecendo-os ao deleite do espectador, privilegiava os pés, pernas e as cadeiras da rumbeira, que passeava pelo cenário do Cabaré Máquina Loca decorado por esculturas de pernas de mulher. Há uma total sintonia entre corpo de Ninón e o batuque dos bongôs, através de uma seqüência de planos que intercalam imagens da rumbeira e das mãos que tocam o instrumento, reforçando mais uma vez o discurso mestiço presente no número de bailado da atriz com o músico negro.

O movimento do trem pontua metaforicamente o desenvolvimento da narrativa e da própria história, articulando as elipses presentes no filme, como a marcação do tempo através do aniversário do menino que ganha um trenzinho de brinquedo. O cabaré se chama La Máquina Loca e está ao lado de uma linha de trem, local onde muitas das ações se desenvolvem. O apito do trem anuncia diversas vezes os números musicais, fazendo inclusive um duo com um grupo de mariachis, com o qual se funde ao som dos banjos e o cantar dos músicos citam o ritmo do trem.

Essas imagens de trem evocam também um imaginário em torno de uma iconografia mexicana que tem origem na própria Revolução Mexicana, com trens repletos de revolucionários vestindo seus sombreros e suas cananas cruzadas ao peito. Essa inscrição "trem e Revolução" também está presente no mais ácido dos três filmes de Fernando de Fuentes que compõem sua "trilogia da Revolução", Vámonos con Pancho Villa, no qual as ações do filme se desenvolvem em sua maioria ao longo do caminho do trem ou dentro de seus vagões.

Em outro filme de cabareteras, Vagabunda, dirigido por Miguel Morayta também em 1950, a primeira seqüência apresenta imagens em um tom próximo ao documental, em que o texto reforça que as vias ferroviárias separam os bairros pobres do resto da cidade, delimitando as zonas sociais e separando as classes, servindo de muralha para dividir os homens.

Tudo isso vem reforçar a inscrição do filme neste repertório em que o melodrama articula dispositivos discursivos próprios da linguagem cinematográfica a fim de contemplar, junto a este público já íntimo desta estética tão própria das telas mexicanas desta década, as demandas que se faziam necessárias.

Mauricio de Bragança

1. Publicado originalmente em Cahiers du cinéma, n. 30, Paris, 1954.

 

 




Victimas del pecado (1950)