A partir do amor impossível
e proibido entre Amalita de los Robles (Dolores Del
Rio), filha mimada do poderoso caudilho Dom Fernando
(Julio Villarreal), e o capataz Ricardo Rojas (Pedro
Armendáriz), em pleno México do século
XIX, Emilio "Indio" Fernandez, antes de construir, em
Coração Torturado, o simples melodrama
de época pautado sobre as disparidades sociais
que afligem os amantes, adentra, como sugere a possível
relação incestuosa do patriarca com sua
herdeira, na tragédia e na loucura de uma elite
social corrupta e decadente que consome a si mesma.
Em Coração Torturado, Emilio Fernandez
se desnuda da roupagem consagrada de seus melodramas,
estabelecida em filmes como Maria Candelária:
ao contrário das áreas rurais, cenários
urbanos; ao invés da classe pobre e marginalizada
indígena, a casta criolla que domina a
política e a economia mexicana desde o período
colonial. Na sociedade cindida que se representa na
tela, onde brancos e índios, ricos e pobres,
exploradores e explorados se digladiam, a única
ameaça concreta ao poder exercido pelos senhores
da terra não se encontra na quase inexistente
capacidade de luta e de mobilização das
camadas populares, há séculos humilhadas,
mas na própria devassidão da elite que,
cega e insensível às demandas sociais,
caminha rumo à autodestruição,
pois não se preocupa com nada além do
imediato dia-a-dia das suntuosas mansões em que
habita, isolada do restante do mundo.
A paixão de Amalita de los Robles pelo capataz
Ricardo Rojas – encontro forçado pelo desabamento
da mina que, ao soterrar os trabalhadores, gera animosidade
contra Dom Fernando –, assim, não se constitui
sozinha no motivo principal dos acontecimentos em Coração
Torturado, mas sim em uma das pontas do triângulo
amoroso que, por sua vez, propicia o desenrolar trágico
da narrativa, bem como o subtexto que abarca o declínio
moral das ricas famílias dos hacienderos,
criollos (brancos, descendentes de espanhóis
e nascidos na América) que detêm o poder
no México já durante a administração
colonial. Não é o amor paternal que leva
Dom Fernando a controlar a vida amorosa da filha: trata-se,
na verdade, do ciúme doentio (que aproxima Coração
Torturado de O Alucinado, de Luís
Buñuel) enquanto amante preterido que o impulsiona
ao assassinato de Rojas, seu concorrente.
A possessividade, que conduz ao isolamento e à
degeneração, pois a relação
incestuosa entre pai e filha, em Coração
Torturado, expande o trauma desestruturante conseqüente
das instâncias psicológicas pessoal e familiar
para remetê-lo à autofagia de toda a classe
dominante, que, ao se reproduzir apenas internamente,
propaga e intensifica os genes anômalos que causam
tanto a deformação quanto a morte. Nos
cenários e na decoração luxuosa,
porém vazia, dos interiores, nos vestidos rebuscadíssimos
de Dolores de Rio, nos intrincados movimentos da câmera
de Gabriel Figueroa (que denunciam a si próprios
através da extrema artificialidade, como em Max
Ophüls) – cujo tom épico da iluminação
não concorre para a mitificação
de um herói nacional mexicano, mas antes reforça
a inutilidade e, em conseqüência, o desespero
dos atos dos personagens e das ações presentes
na narrativa –, os sintomas derradeiros de uma elite
social que, ao se encastelar para sobreviver, paradoxalmente
perde os caminhos da História para se tornar
mero fantasma, sombra que evoca somente o passado, sem
presente e sem futuro possíveis.
Com o assassinato do amante e o suicídio do pai,
que assim preserva a honra da filha no julgamento, Amalita
de los Robles, em Coração Torturado,
está condenada à morte em vida, como a
casta que representa: esperando o tempo passar, trancafiada
sozinha na imensa mansão deserta, resta-lhe apenas
tocar enlouquecidamente o piano... que ninguém
irá ouvir.
Paulo Ricardo de Almeida
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