Triste estrada, paisagem
sentimental
Esqueçamos por um instante de todo o bafafá
veiculado a respeito de The Brown Bunny desde
sua primeira exibição em Cannes. Considerado
prematuramente pela crítica especialmente
a americana um fracasso estético completo
e "vendido" como tal ao mais influente jornal
carioca, que estampou em sua primeira página
uma foto do filme e estigmatizando a obra de Vincent
Gallo como um exemplar de cinema trash impossível
de respeitar é assim, de fato, que grande
parte do público se comporta na sessão
, The Brown Bunny não merece nem
a recepção que teve nem o sensacionalismo
barato que trabalha o filme pela cena final de felação
(ao que tudo indica real) de Chloë Sevigny no ator/diretor
do filme. Curiosa geopolícia do cinema: aceitaríamos
de bom grado um Brown Bunny vindo da Tailândia,
da Lituânia ou de Taiwan, mas jamais do berço
do cinema narrativo clássico, a América.
Pois o segundo filme de Vincent Gallo é menos
um movie na acepção clássica
(roteiro, relações entre personagens,
evolução de trama) do que uma experiência
de duração, paisagem e perdição
existencial. Há nisso, convenhamos, muita preguiça
e desconhecimento do cinema americano: Brown Bunny tem
alguns primos notáveis, alguns já inscritos
definitivamente na história do cinema americano:
Five Easy Pieces de Bob Rafaelson, Two-Lane
Blacktop de Monte Hellman, Blackout ou New
Rose Hotel de Abel Ferrara ou os filmes de Andy
Warhol. Mas Vincent Gallo, ao se fazer de ator, produtor,
diretor, montador e fotógrafo de seu filme, acrescenta
um dado novo à pequena história dos cineastas-filmes
desajustados no seio de uma América nada acolhedora:
faz o filme-de-viagens mais sentimental da história
do cinema.
A coisa que mais impressiona em The Brown Bunny,
assim como em alguns dos mais estimulantes filmes vistos
recentemente, é a atribuição de
sentimentalidade a objetos ou paisagens filmados que
originalmente não se prestariam muito a isso.
Da high-school em Elefante de Gus Van
Sant à fabulosa seqüência do desfile
em Shara de Naomi Kawase, a câmera sexualiza
aquilo que está à sua frente, incorpora
o objeto ao sentimento do sujeito filmante (a câmera,
não o diretor por trás dela) e produz
um inaudito sentimento de que tal diferenciação
e separação entre coisa filmada e consciência
filmante jamais existiu. Em The Brown Bunny,
pouco importa se o caminho da Costa Leste americana
até a Costa Leste, de Ohio a Las Vegas para chegar
a Los Angeles o verdadeiro tema do filme, muito
mais do que qualquer interiorização de
sentimentos , pouco importa sinceramente se aquilo
tudo já está lá. De dentro da van
que dirige Vincent Gallo ao longo dos Estados Unidos,
toda espécie de paisagem americana de estrada
adquire um significado especial, completamente diferente
de tudo que já vimos anteriormente. Estamos num
terreno francamente experimental de travelogue
sentimental, onde o que importa exatamente não
é nem como a paisagem prolonga o sentimento interior
do personagem principal e tampouco como o personagem
se relaciona com o mundo que vê à sua volta
(duas coisas que já vimos à exaustão).
Trata-se antes de uma relação fantasmática
de impalpabilidade: pouco importa que estejamos diante
das verdadeiras paisagens, sempre nos parece faltar
alguma coisa, ou talvez até sobrar: o carro e
a trip de Vincent Gallo ressignificam a paisagem
que, por sua vez, está sempre lá, à
espera de ser decifrada e, em última instância,
desfrutada.
O fiapo de ficção que sustenta The
Brown Bunny é uma viagem: Bud vai de New
Hampshire à Califórnia fazer a entrega
de uma motocicleta de corridas. Ao longo do caminho,
ele se aproxima de algumas mulheres que, no entanto,
depois das primeiras leves carícias em espaços
públicos (uma loja de conveniência de beira-de-estrada,
um banco de praça), abandona inexplicavelmente.
O motivo nos aparece aos poucos, fugazmente: um amor
também fantasmático, Daisy (Chloë
Sevigny), cuja lembrança ocupa toda a atenção
do personagem durante seu trajeto pelo território
americano. As outras mulheres também têm
nomes de flores: Lilly, Violet, Rose... Seriam elas
um prolongamento de Daisy, ou antes figuras míticas
de feminilidade, a grande mãe, a desequilibrada,
a puta? Daisy, por sua vez, ao fim do filme, nos aparece
como um pouco das três, mas ao mesmo tempo como
nenhuma: tudo aquilo que vemos diante de nós,
na impressionantemente bem filmada cena de briga e sexo
entre os dois, não passa de um sonho/recordação
de Bud deitado em sua cama de hotel. A mulher falta,
a paisagem falta: The Brown Bunny realiza toda
uma operação de presença/ausência
de sentido para além de qualquer referente: Daisy
estar ou não lá, o deserto estar ou não
lá, as outras mulheres quererem acompanhá-lo
ou não, isso pouco importa. A paisagem ou as
mulheres afetam Bud para além de sua palpabilidade.
Retrato do amor como doença fatal degenerativa
ou da mente como o maior de nossos vícios, The
Brown Bunny vai até o fim na entrega de seu
personagem a um pesadelo de vigília muito mais
estarrecedor do que qualquer sono assustador.
Para acessar de alguma forma a perdição
existencial de Bud, naturalmente, é preciso dar
ao filme a mesma densidade e a mesma falta de horizontes
presentes em seu personagem. The Brown Bunny
realiza isso prolongando todos os seus planos, dilatando
como pode qualquer episódio banal a ser filmado
(convém lembrar que a versão exibida em
Cannes, em torno de meia-hora mais longa, prolongava
ainda mais essa idéia), fusionando sem bula as
experiências "reais" (as paisagens)
com as "imaginárias" (Daisy, muito
embora Daisy seja muito mais real, de certa forma,
do que toda outra coisa para Bud). Um mundo inteiro
de imersão que Vincent Gallo consegue construir
com um impecável senso de plasticidade e ritmo
malgrado as críticas à duração
do filme, cada plano parece ter exatamente a duração
que deve, do ponto de vista rítmico tanto quanto
do ponto de vista dramático. O pesadelo dos insones
é mais devastador do que qualquer sonho ruim.
The Brown Bunny nos coloca nesse redemoinho e
não nos dá a chave de saída. Diário
de viagens, road movie, filme-experimento de duração,
pornô explícito, reality show ou contemplação
paisagística, todos esses gêneros se fundem
aqui para constituir uma experiência inédita
e estimulante de cinema contemporâneo a ser mais
vivida do que compreendida. Então vivamos.
Ruy Gardnier
|