A Matéria
Prima
Maurice Pialat é geralmente descrito como um
cineasta realista - o que não é uma descrição
de toda errada, mas que diz muito pouco. Talvez seja
melhor apontar que, ao lado de Jean-Marie Straub, Pialat
é o mais materialista dos cineastas. O que se
vê em seus filmes é o que se obtém.
Quando vemos a jovem Sandrine Bonnaire flertando com
um marinheiro americano, as imagens do filme revelam
apenas o que têm de mais planas: o prazer que
esta adolescente tem com o flerte e a segurança
com que se relaciona com a própria sexualidade.
Pialat está bem longe de ser algum tipo de cineasta
descritivo, mas seu trabalho com freqüência
é antes de mais nada derrubar a parede que distancia
o espectador da ação, colocá-lo
no meio do combate. O que temos na maior parte do tempo
é uma imagem bruta e tão neutra quanto
o cineasta consegue deixa-lá. Muito da dificuldade
de um filme como Aos Nossos Amores vem dele
deixar boa parte do trabalho para o espectador - que
é quem é chamado para se decidir neste
panorama de guerra familiar. É preciso saber
lidar com as imagens no que elas têm de mais plano
e bruto para realmente se apreciar Pialat.
As primeiras imagens de Aos
Nossos Amores nos apresentam Sandrine Bonnaire
– este foi seu primeiro filme – num ensaio
de uma peça amadora. Ela é aqui um tanto
desajeitada a ouvir as instruções do irmão
(você tem 16 anos, é incapaz de amar),
que de certa forma adiantam os eventos posteriores.
Pialat põe as cartas na mesa e entrega para o
espectador a matéria prima do filme: Bonnaire.
Aos Nossos Amores é um dos casos mais
impressionantes de parceria diretor/atriz: todo o filme
é construído a partir dos ritmos da atriz,
existe a partir dela. Mesmo na famosa cena do jantar,
onde sua participação parece discreta,
Bonnaire permanece central. Não é uma
questão de um quadro composto para valorizar
a atriz, pelo contrario, ela nem sempre tem espaço
privilegiado na imagem. Trata-se de focar o filme na
relação entre a atriz e a câmera,
da atriz com os outros atores. Pialat sempre gostou
de construir situações em que atores deixassem
cair a máscara da interpretação
- não surpreende portanto sua atração
por atores infantis ou adolescentes, mas no seu trabalho
com Bonnaire levou o processo ainda mais longe. Um dos
prazeres de Aos Nossos Amores é justamente
observar uma atriz descobrindo sua arte. Há um
senso de novidade a cada gesto, a cada interação,
mesmo nas mais desagradáveis cenas de violência,
em que não temos muitas dúvidas de que
os atores estão mesmo a trocar tapas.
A pintura
Maurice Pialat começou a carreira como pintor,
e é uma pena que seja tão raro encontrar
reproduções desta sua obra inicial, já
que ela diz muito sobre sua estética particular.
Pode-se dizer que Pialat tem, junto com Robert Bresson,
o melhor olhar de pintor de todo o cinema. Seus filmes
à primeira vista não têm nada em
comum, e é bem provável que eles (Bresson,
ao menos) não gostassem muito de ser colocados
juntos, mas as semelhanças são consideráveis.
Quando se pensa na relação cinema/pintura,
geralmente vem à mente filmes cujas imagens estáticas
fiquem bonitas numa reprodução em livro
ou revista (praticamente qualquer filme fotografado
por Vittorio Storaro) - não é dessa idéia
de aproximação cinema/pintura que falamos
aqui. Considerem esta passagem de uma entrevista de
Bresson dada à época do lançamento
de O Dinheiro: "Já fui chamado
de janseísta, o que é loucura. Sou o oposto.
Estou interessado em impressões. Darei um exemplo
de O Dinheiro. Quando estou nos Grands Boulevards,
a primeira coisa que penso é: como eles me impressionam?
E a resposta é que eles me impressionam como
uma massa de pernas e sons de pisadas sobre o pavimento.
Eu tentei comunicar esta imagem através de imagem
e som... É preciso haver um choque no momento
de faze-lo, é preciso haver a sensação
de que os humanos e as coisas a ser filmadas são
novos, você precisa jogar surpresas no filme.
É isto que acontece na cena no Grands Boulevards.
Eu podia sentir os passos, me foquei nas pernas do protagonista,
e na maneira que eu podia propeli-lo pela multidão
até onde ele precisava chegar. Estes são
os Grands Boulevards até onde me interessam,
todo o movimento."
Esta descrição
(que poderia tranqüilamente ter vindo de Pialat,
apesar de que a solução por ele encontrada
certamente seria outra) se parece muito mais com a que
se espera de um pintor do que a de um cineasta, mas
ela pode ser uma boa porta de entrada para obra de ambos
os cineastas em questão. Ela também aponta
uma clara distância tanto de uma imagem bela (e
elas são bem raras em Pialat) quando do realismo
fotográfico com o qual ele é freqüentemente
associado. Sua associação com o último
será de uma profunda radicalização
do processo. A pergunta-chave que guia Aos Nossos
Amores é: como representar a experiência
desta adolescente? È isto que Pialat fará
seguindo-a pelas noitadas com as amigas, pelo mal-estar
dentro de casa ou no desconforto com que testa um vestido
de noiva. O filme procurará sempre a imagem mais
adequada para isso. Podemos sentir na pele as pinceladas
de Pialat, a forma como se trabalha por acumulação
dentro do plano. É um filme de radicais alterações
de tom, indo dos momentos mais alegres aos mais desconfortáveis.
Muito se fala da vida promíscua de Suzanne, mas
pouco a vemos. Geralmente apenas uma preliminar ou alguma
troca de dialogo pós-sexo, na verdade sexo aqui
– como em alguns outros filmes que cineasta fez
à época como Loulou e Policia
– é mais um desejo, uma urgência
do que um prazer - e o filme deixa-o quase todo nas
suas elipses, se concentrando mais nas suas conseqüências.
Aos Nossos Amores vai mesmo a estratosfera
nas cenas entre pais e filhos (o próprio Pialat
interpreta o pai e Evelyne Ker faz a mãe). Aqui
a forma como o cineasta consegue captar o clima do set
é usada ao máximo em favor do filme. É
notório que Aos Nossos Amores teve o
que talvez seja o set mais caótico da carreira
de Pialat, com grandes desentendimentos – possivelmente
incentivados – entre o elenco, em especial entre
Evelyne Ker e Sandrine Bonnaire. As cenas entre Bonnaire,
Ker e Dominique Besnehard (o irmão que assume
a condição de figura paterna pela maior
parte do filme) são de um peso e concentração
raro em todo o cinema. O clima de que o apartamento-ateliê
(um grande achado cênico, por sinal) está
prestes a explodir e que animosidade toma conta do ar
é latente. A guerra familiar tem um peso bem
próprio, poucas vezes no cinema a não-comunicação
entre pais e filhos foi exibida de forma tão
extrema, mas ao mesmo tempo o tom de experiência
vivida construído pelo filme garante a ele uma
forte credibilidade.
A tristeza sempre durará
Todo o filme deságua no momento do retorno do
pai (desaparecido por cerca de uma hora), interrompendo
o jantar familiar. Trata-se de uma cena de cerca de
quinze minutos, onde o restante da família (Suzanne,
o marido, mãe, o irmão com noiva e futuro
cunhado, além de um amigo) confraterniza. As
variações radicais na parte inicial da
cena que sugerem uma progressiva agressão entre
irmãos prepara a chegada do pai, assim como instaura
a cena como o momento que confirma Aos Nossos Amores
como o grande estudo sobre ressentimento na obra
de Pialat. No filme, as feridas parecem se multiplicar,
cada troca entre personagem por trás do seu discurso
parece querer de alguma forma a atingir o outro. Um
pequeno exemplo se encontra na descrição
que Suzanne faz a uma amiga da conversa que teve com
o marinheiro americano logo depois de fazerem sexo.
Ele:“Obrigado”, ela :“não
tem de que, foi de graça”. A única
explicação para tal troca de diálogos
nesse momento é o desejo mútuo de ferir
um ao outro e a si próprio, desejo esse que se
espalha por todo o filme. Pascal Bonitzer, na sua crítica
a Aos Nossos Amores, traça um paralelo
bastante útil entre o ressentimento em Pialat
e Nietzsche, na maneira como em ambos ele reside sem
a necessidade de se buscar uma razão inicial.
O clima chega ao ápice
justamente instantes antes da chegada do pai. A partir
dali tudo se torna nebuloso, muito pela decisão
de Pialat de escalar a si próprio na figura do
pai. Excelente ator, Pialat antes disso jamais havia
colocado a si mesmo em cena. Sua presença na
imagem cria uma camada extra de crueldade a seqüência,
como se o cineasta tivesse adentrado ao quadro para
poder melhor maltratar seus atores, tornando dessa forma
o discurso do pai mais ambíguo nas suas implicações.
O pai entra como um trator, retomando o espaço
que abdicara ao abandonar a família, brigando
com a esposa e depois se concentrando em agredir verbalmente
o filho – apesar de todas as cenas de ataque físico
do filme, esta cena de assalto verbal é de certo
a mais violenta – até entrar na sua explicação
para as últimas palavras de Van Gogh (a tristeza
sempre durará): "vocês são
os tristes, tudo o que vocês fazem é triste".
È nesse momento que Pialat finalmente questiona
Bonnaire, que até então parecia marginalizada
em cena. É importante observar aqui como a seqüência
toda é filmada. O pai esta sentado de um lado
da mesa enquanto o resto da família se encontra
do outro (com exceção da mãe, que
está próxima ao pai mas é excluída
pelo quadro fechado). A cena quase toda é filmada
em plano e contraplano, com o contraplano dando ênfase
em quem o pai esta atacando -com exceção
dos planos do irmão, onde a disposição
no quadro de Bonnaire a ressalta -, mas isto somente
até a filha ser invocada e Pialat pela primeira
vez optar por fazer a câmera percorrer a mesa.
A seguir a situação é levada ao
limite, com a família toda sendo puxada para
o mesmo plano, com destaque em particular para dois
contraplanos, um do marido de Bonnaire e outro dos demais
convidados (nenhum dos quais volta a dividir o quadro
com os membros da família). São justamente
estes dois planos, somados à posição
estranha que Sandrine Bonnaire – a protagonista
do filme que aparenta sumir no seu clímax –,
que nos dão as chaves para compreender o circulo
vicioso de dor e ressentimento imposto até ali.
Há em Maurice Pialat algo que podemos definir
como a ética do contraplano, a ética da
testemunha, daquele que observa (que obviamente inclui
o espectador). Daí Sandrine Bonnaire –
que é ao mesmo tempo presença física
marcante em diversos planos da seqüência,
mas a primeira vista desimportante para a ação
– ser na verdade sua figura central. É
a ela que o pai fala, que seu olhar busca, que sua câmera
– lembrando que o pai também é o
cineasta – vai privilegiar e por fim buscar. A
testemunha será aquela que precisará lidar
com os efeitos da situação, nunca um júri
do que vê, mas uma figura que precisa aprender
a se tornar ativa no final do processo. Uma porta de
saída. A última imagem do filme é
justamente essa, uma porta de saída, ainda que
incerta.
Filipe Furtado
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