Las Abandonadas reúne
elementos de dois grandes repertórios temáticos,
além de estéticos, do melodrama latino-americano:
o maternal e o de "cabaretera", numa
interessante mistura da casa e da rua. As figuras da
mãe devotada e da prostituta se condensam na
trajetória da personagem de Margarita/Margot
(Dolores del Río), o que imediatamente confere
ao filme de Emilio Fernandez um distinto panorama dessas
duas figuras femininas que, tradicionalmente, numa abordagem
mais conservadora, representam papéis antagônicos,
no sentido que encarnam padrões do feminino opostos.
É relativamente comum ao melodrama latino-americano
trazer esses dois símbolos do feminino para um
mesmo corpo, e nesse sentido, também podemos
lembrar de Vítimas do Pecado (Victimas
del Pecado,1950). O que já abre um precedente
para colocar em xeque uma tradição puramente
moralista comumente associada ao melodrama. Ao trazer
as duas figuras encarnadas numa mesma personagem, e
ademais elevá-la ao estatuto de heroína,
Fernandez desloca a moral simplista condenatória
e machista.
Não há julgamento para a personagem de
Margot, ela é definitivamente heroína
ao longo do filme, mas nem os valores de virtude a salvam
dos infortúnios, dos dramas e dos sofrimentos.
Ser heroína não a livra de um final infeliz,
e talvez esse seja o grande legado político da
obra de Fernandez, o fato do filme não apaziguar
as mazelas que segregam os marginalizados, universo
da maioria de seus personagens.
Revendo o percurso de Margot, e lembrando de outras
heroínas do melodrama mexicano – como Santa (do
filme Santa, dirigido por Antônio Moreno,
1931) ou Mercedes (de Salón Mexico, de
Emilio Fernandez, 1948) – pensamos como em momento algum
sua bondade e altruísmo (característica
que as qualifica para figurar o hall das heroínas)
as livram do destino de desgraça.
E, talvez valha conjeturar, o grande apelo melodramático
dos filmes de Fernandez – e como traço comum
ao melodrama latino-americano – seja o dramático
não apenas da narrativa, mas da realidade social
convocada pela narrativa e reafirmada pela opção
de um não apaziguado final feliz.
Em Las Abandonadas, a heroína, mãe
e prostituta, é primeiro chamada de Margarita,
quando encarna, numa versão praieira, a virgem
inocente. Nas primeiras seqüências do filme
encontramos uma Dolores del Río de vestido de
babados, cabelos soltos, correndo descalça pela
areia ou a balançar-se na rede. A narrativa investe
numa estrutura de primeiros planos e contra-planos para
acentuar um casal enamorado. No diálogo do casal,
já se anuncia um primeiro conflito, a diferença
de classe, antecipando o embuste, o primeiro abandono.
Margarita leva seu amado à estação
de trem, e logo descobrimos que ele a enganou. Expulsa
de casa, Margarita deixa a praia – enquadrada como um
universo rural, como lugar da inocência e da pureza
(aliás, uma dicotomia comum ao repertório
temático do melodrama).
A seqüência nos mostra uma personagem sofrida,
que viaja de carona pela estrada na boleia de uma carroça.
O caráter de sofrimento, anunciação
dos infortúnios da personagem, nos é ressaltado
pela narrativa através dos diversos closes que
se alternam entre planos médios e planos detalhe
dos seus pés descalços. A fisionomia de
Margarita ainda traz a marca de uma identidade que se
quer rural/inocente: ela traz um xale nas costas e o
cabelo em tranças. Essas representações
visualmente demarcadas com símbolos obviamente
reconhecíveis são uma das grandes estratégias
da estética melodramática. Esse tipo de
recurso é algo freqüente em Las Abandondas,
em que é possível reconhecer a trajetória
da personagem, sem sombra de dúvidas, através
de um conjunto de penteados que evocam uma iconografia
de virtude ou danação, ressaltados pelos
marcantes closes no rosto de Dolores del Río.
Toda a seqüência do trajeto da carroça,
embalada por uma performance musical de um grupo de
música tradicional rancheira, é a primeira
elipse das muitas que vão surgir ao longo da
narrativa. Las Abandonadas cobre um grande período
da vida de sua personagem central – desde esta meninice
inocente até a velhice. E o que se sobressai
na construção dessa personagem é
a figura de uma mãe devotada. Ao final, será
assim que ela será reconhecida por nós,
público, embora não seja reconhecida pelo
seu bem sucedido filho.
Margarita vê-se obrigada a trabalhar num bordel
para sustentar seu filho, e é então que
passa a se chamar Margot. Dotada de uma beleza fascinante,
Margot encanta o suposto general da Revolução
Juan Gómez (Pedro Armendáriz). A cena
em que os dois se encontram pela primeira vez segue
à risca a construção narrativa
de uma diva. Toda a encenação faz contrastar
o momento de algazarra no salão do bordel com
a interrupção no espaço e tempo,
um silêncio, depois da aparição,
ao pé de uma escadaria, da figura de Margot.
Dessa maneira, a narrativa nos coloca na mesma posição
de Juan Gómez, embevecidos com uma mesma aparição.
Um mesmo jogo de closes no rosto de Margot nos convoca
ao encantamento pela figura dessa mulher. A narrativa
já havia feito esse mesmo investimento, nos closes
em Dolores del Río caracterizada de brejeira,
na rede de praia, no começo do filme. E, mais
adiante, o filme ainda vai retornar ao recurso dos closes,
numa personagem envelhecida, evocando, dessa vez, os
infortúnios. De inocente, a diva é por
fim a sofrida; esse conjunto de closes, todos evocando
uma mesma luz suave, costuram a personagem no papel
de heroína.
Resgatada do bordel por Gómez, Margot vive e
vislumbra brevemente a possibilidade de uma vida familiar
feliz e completa. Um homem que a adora e está
disposto a assumir seu filho, que, embora ainda criança,
igualmente a adora. Contudo, é apenas uma ilusão
para Margot, que verá Gómez ser desmascarado
como farsante e acabar morto. Margot será então
presa como cúmplice. Um novo close no rosto de
uma Dolores atrás das grades marca outra grande
elipse da narrativa. Quando sai da prisão, Margarita
(sim, porque ela já não será mais
a diva/Margot) vai reencontrar seu filho, prodigioso
estudante num internato. Lá percebe que não
pode se revelar ao filho, sob pena de arruinar o futuro
dele como advogado, que já se mostra promissor.
É aí que o filme se marca como melodrama
maternal, pois a partir desse momento o investimento
da narrativa está em mostrar, com todos os elementos
possíveis, o martírio dessa mãe
para garantir o sucesso do filho. Deixar claro, de todas
as maneiras possíveis, é uma das estratégias
centrais do melodrama – pautando-se na prerrogativa
de mostrar e dizer tudo. Cada um dos elementos textuais
da narrativa é acentuado numa mesma direção,
estabelecendo as polarizações moralizantes,
conduzindo esse grande teatro do bem e do mal (como
formula Ismail Xavier, em seu livro O Olhar e a Cena,
a partir da noção de pedagogia do bem
e do mal de Peter Brooks, autor fundamental de uma revisão
do campo de pensamento sobre o melodrama, influenciando
especialmente os estudos do melodrama cinematográfico).
Nesse sentido, veremos como o gestual, as roupas, os
cabelos, os cenários vão, todos, exaltando
– através de constantes primeiros planos e movimentos
de câmera – a personagem de Margarita como mãe
devotada, e que encarna a virtude por seu valor de sacrifício.
A seqüência final vai resumir a esse discurso,
também de maneira manifesta e eloqüente,
como manda as premissas excessivas de um melodrama.
O filho de Margarita, já grande advogado, está
num tribunal (cenário recorrente no repertório
temático do melodrama clássico, por aquilo
que possibilita de junção entre espetáculo
e julgamento) defendendo exatamente uma jovem mãe
que foi obrigada a cometer um delito para salvar o filho.
Com seu discurso emocional, carregado de frases grandiosas,
consegue inocentar essa ré, ao que é aplaudido
por uma platéia de populares anônimos,
mostrados numa panorâmica da câmera, em
plano médio, que enquadra a arena, tal como uma
arena de teatro. Entre os figurantes dessa platéia,
está uma velha e sofrida Margarita, a olhar orgulhosa
e emocionadamente seu filho.
A construção da seqüência nos
conduz a uma identificação com essa outra
mãe, que, tal como a ré absolvida, cometeu
delitos em sacrifício do filho, que, no entanto,
ignora sua existência. O discurso público
do advogado, mesmo de maneira enviesada, é o
bastante para o orgulho dessa segunda mãe. O
reconhecimento público de seu sacrifício
– mesmo que não dirigido especialmente a ela
(Margarita) – é o suficiente para sua recompensa.
E é assim mesmo no melodrama – sobretudo no latino-americano,
em que pululam os finais infelizes – não importa
o destino da heroína, o que importa é
que o público (e nós espectadores) reconheça
sua virtude. O impasse de um final que é ao mesmo
tempo feliz e infeliz – como é o caso do de Las
Abandonadas, e da maioria dos melodramas de Fernandez
– talvez seja a grande ambigüidade narrativa e
política do melodrama latino-americano. E que
faz desse universo, para além das desqualificações
habituais, um percurso aberto ainda por ser trilhado.
Mariana Baltar
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