AS ABANDONADAS
Emilio Fernández, Las abandonadas, México, 1944

Las Abandonadas reúne elementos de dois grandes repertórios temáticos, além de estéticos, do melodrama latino-americano: o maternal e o de "cabaretera", numa interessante mistura da casa e da rua. As figuras da mãe devotada e da prostituta se condensam na trajetória da personagem de Margarita/Margot (Dolores del Río), o que imediatamente confere ao filme de Emilio Fernandez um distinto panorama dessas duas figuras femininas que, tradicionalmente, numa abordagem mais conservadora, representam papéis antagônicos, no sentido que encarnam padrões do feminino opostos. É relativamente comum ao melodrama latino-americano trazer esses dois símbolos do feminino para um mesmo corpo, e nesse sentido, também podemos lembrar de Vítimas do Pecado (Victimas del Pecado,1950). O que já abre um precedente para colocar em xeque uma tradição puramente moralista comumente associada ao melodrama. Ao trazer as duas figuras encarnadas numa mesma personagem, e ademais elevá-la ao estatuto de heroína, Fernandez desloca a moral simplista condenatória e machista.

Não há julgamento para a personagem de Margot, ela é definitivamente heroína ao longo do filme, mas nem os valores de virtude a salvam dos infortúnios, dos dramas e dos sofrimentos. Ser heroína não a livra de um final infeliz, e talvez esse seja o grande legado político da obra de Fernandez, o fato do filme não apaziguar as mazelas que segregam os marginalizados, universo da maioria de seus personagens.

Revendo o percurso de Margot, e lembrando de outras heroínas do melodrama mexicano – como Santa (do filme Santa, dirigido por Antônio Moreno, 1931) ou Mercedes (de Salón Mexico, de Emilio Fernandez, 1948) – pensamos como em momento algum sua bondade e altruísmo (característica que as qualifica para figurar o hall das heroínas) as livram do destino de desgraça.

E, talvez valha conjeturar, o grande apelo melodramático dos filmes de Fernandez – e como traço comum ao melodrama latino-americano – seja o dramático não apenas da narrativa, mas da realidade social convocada pela narrativa e reafirmada pela opção de um não apaziguado final feliz.

Em Las Abandonadas, a heroína, mãe e prostituta, é primeiro chamada de Margarita, quando encarna, numa versão praieira, a virgem inocente. Nas primeiras seqüências do filme encontramos uma Dolores del Río de vestido de babados, cabelos soltos, correndo descalça pela areia ou a balançar-se na rede. A narrativa investe numa estrutura de primeiros planos e contra-planos para acentuar um casal enamorado. No diálogo do casal, já se anuncia um primeiro conflito, a diferença de classe, antecipando o embuste, o primeiro abandono. Margarita leva seu amado à estação de trem, e logo descobrimos que ele a enganou. Expulsa de casa, Margarita deixa a praia – enquadrada como um universo rural, como lugar da inocência e da pureza (aliás, uma dicotomia comum ao repertório temático do melodrama).

A seqüência nos mostra uma personagem sofrida, que viaja de carona pela estrada na boleia de uma carroça. O caráter de sofrimento, anunciação dos infortúnios da personagem, nos é ressaltado pela narrativa através dos diversos closes que se alternam entre planos médios e planos detalhe dos seus pés descalços. A fisionomia de Margarita ainda traz a marca de uma identidade que se quer rural/inocente: ela traz um xale nas costas e o cabelo em tranças. Essas representações visualmente demarcadas com símbolos obviamente reconhecíveis são uma das grandes estratégias da estética melodramática. Esse tipo de recurso é algo freqüente em Las Abandondas, em que é possível reconhecer a trajetória da personagem, sem sombra de dúvidas, através de um conjunto de penteados que evocam uma iconografia de virtude ou danação, ressaltados pelos marcantes closes no rosto de Dolores del Río.

Toda a seqüência do trajeto da carroça, embalada por uma performance musical de um grupo de música tradicional rancheira, é a primeira elipse das muitas que vão surgir ao longo da narrativa. Las Abandonadas cobre um grande período da vida de sua personagem central – desde esta meninice inocente até a velhice. E o que se sobressai na construção dessa personagem é a figura de uma mãe devotada. Ao final, será assim que ela será reconhecida por nós, público, embora não seja reconhecida pelo seu bem sucedido filho.

Margarita vê-se obrigada a trabalhar num bordel para sustentar seu filho, e é então que passa a se chamar Margot. Dotada de uma beleza fascinante, Margot encanta o suposto general da Revolução Juan Gómez (Pedro Armendáriz). A cena em que os dois se encontram pela primeira vez segue à risca a construção narrativa de uma diva. Toda a encenação faz contrastar o momento de algazarra no salão do bordel com a interrupção no espaço e tempo, um silêncio, depois da aparição, ao pé de uma escadaria, da figura de Margot. Dessa maneira, a narrativa nos coloca na mesma posição de Juan Gómez, embevecidos com uma mesma aparição.

Um mesmo jogo de closes no rosto de Margot nos convoca ao encantamento pela figura dessa mulher. A narrativa já havia feito esse mesmo investimento, nos closes em Dolores del Río caracterizada de brejeira, na rede de praia, no começo do filme. E, mais adiante, o filme ainda vai retornar ao recurso dos closes, numa personagem envelhecida, evocando, dessa vez, os infortúnios. De inocente, a diva é por fim a sofrida; esse conjunto de closes, todos evocando uma mesma luz suave, costuram a personagem no papel de heroína.

Resgatada do bordel por Gómez, Margot vive e vislumbra brevemente a possibilidade de uma vida familiar feliz e completa. Um homem que a adora e está disposto a assumir seu filho, que, embora ainda criança, igualmente a adora. Contudo, é apenas uma ilusão para Margot, que verá Gómez ser desmascarado como farsante e acabar morto. Margot será então presa como cúmplice. Um novo close no rosto de uma Dolores atrás das grades marca outra grande elipse da narrativa. Quando sai da prisão, Margarita (sim, porque ela já não será mais a diva/Margot) vai reencontrar seu filho, prodigioso estudante num internato. Lá percebe que não pode se revelar ao filho, sob pena de arruinar o futuro dele como advogado, que já se mostra promissor.

É aí que o filme se marca como melodrama maternal, pois a partir desse momento o investimento da narrativa está em mostrar, com todos os elementos possíveis, o martírio dessa mãe para garantir o sucesso do filho. Deixar claro, de todas as maneiras possíveis, é uma das estratégias centrais do melodrama – pautando-se na prerrogativa de mostrar e dizer tudo. Cada um dos elementos textuais da narrativa é acentuado numa mesma direção, estabelecendo as polarizações moralizantes, conduzindo esse grande teatro do bem e do mal (como formula Ismail Xavier, em seu livro O Olhar e a Cena, a partir da noção de pedagogia do bem e do mal de Peter Brooks, autor fundamental de uma revisão do campo de pensamento sobre o melodrama, influenciando especialmente os estudos do melodrama cinematográfico). Nesse sentido, veremos como o gestual, as roupas, os cabelos, os cenários vão, todos, exaltando – através de constantes primeiros planos e movimentos de câmera – a personagem de Margarita como mãe devotada, e que encarna a virtude por seu valor de sacrifício.

A seqüência final vai resumir a esse discurso, também de maneira manifesta e eloqüente, como manda as premissas excessivas de um melodrama. O filho de Margarita, já grande advogado, está num tribunal (cenário recorrente no repertório temático do melodrama clássico, por aquilo que possibilita de junção entre espetáculo e julgamento) defendendo exatamente uma jovem mãe que foi obrigada a cometer um delito para salvar o filho. Com seu discurso emocional, carregado de frases grandiosas, consegue inocentar essa ré, ao que é aplaudido por uma platéia de populares anônimos, mostrados numa panorâmica da câmera, em plano médio, que enquadra a arena, tal como uma arena de teatro. Entre os figurantes dessa platéia, está uma velha e sofrida Margarita, a olhar orgulhosa e emocionadamente seu filho.

A construção da seqüência nos conduz a uma identificação com essa outra mãe, que, tal como a ré absolvida, cometeu delitos em sacrifício do filho, que, no entanto, ignora sua existência. O discurso público do advogado, mesmo de maneira enviesada, é o bastante para o orgulho dessa segunda mãe. O reconhecimento público de seu sacrifício – mesmo que não dirigido especialmente a ela (Margarita) – é o suficiente para sua recompensa. E é assim mesmo no melodrama – sobretudo no latino-americano, em que pululam os finais infelizes – não importa o destino da heroína, o que importa é que o público (e nós espectadores) reconheça sua virtude. O impasse de um final que é ao mesmo tempo feliz e infeliz – como é o caso do de Las Abandonadas, e da maioria dos melodramas de Fernandez – talvez seja a grande ambigüidade narrativa e política do melodrama latino-americano. E que faz desse universo, para além das desqualificações habituais, um percurso aberto ainda por ser trilhado.

Mariana Baltar

 

 





Las abandonadas (1944)