Elogio
à Estupidez
Me lembro da experiência de, ao ler
Fazendo Filmes, o ótimo livro de Sidney
Lumet sobre direção de cinema, trinta
páginas dentro dele achar impossível conter
a pergunta: há algum outro relato de um cineasta
sobre sua arte provido de tamanho bom senso? Cerca de
trinta páginas depois a segunda constatação:
não é à toa que, mesmo inegavelmente
talentoso, o sujeito nunca tenha ido além de
um diretor menor. Há algo de excessivamente controlado,
de muito seguro no trabalho de Lumet; é como
se a câmera de Lumet, apesar de quase nunca estar
no lugar errado, também raramente escapasse do
lugar óbvio. É preciso de uma agenda muito
especifica para negar que Serpico é um
bom filme, mas em termos de denúncia sobre corrupção
policial ele não chega a carregar metade da força
de um filme como O Chefão de Nova York,
um pequeno blackexplotation que Larry Cohen dirigiu
na mesma época – mesmo que ninguém jamais
tenha confundido Fred Williamson com Al Pacino. A exceção
sempre me pareceu Um Dia de Cão, o momento
em que Lumet mais se aproximou de fazer um grande filme.
Retornando a Fazendo Filmes, achamos o relato
de como, após alguns dias de ensaio mal sucedidos,
o cineasta decidiu abandonar o eficiente roteiro de
Frank Pierson e improvisar o filme junto ao elenco.
Pela única vez o entediante artesão eficiente
faz algo aparentemente estúpido. Pena que ele
não tenha se arriscado mais.
Um Dia de Cão está longe de ser
um filme perfeito: ele é uns 20 minutos mais
longo do que necessitava; a muito celebrada atuação
de Chris Sarandon comprova que, se bons atores podem
fazer milagres em improvisação, os maus
tendem a se afogar nela; e o populismo do filme tem
algo de irritante que prova como Lumet não precisa
das bobagens de Paddy Cheyvesky para cair nesse tom.
O que mais impressiona em Um Dia de Cão
é o seu senso de autenticidade. Superficialmente
pode parecer estranho que este filme que poderia ter
sido filmado num porão de algum estúdio
seja freqüentemente referido como "um grande
filme de Nova York", mas Lumet consegue um efeito
de espaço/tempo concreto que raramente vemos.
Nunca estive sequer próximo ao Brooklyn, mas
as externas do filme possuem um senso de aqui-e-agora
que indicam que aquilo só pode pertencer a um
local específico. O olhar observador de Lumet
segue afiado: basta observar a cena do assalto em cada
gesto ou na forma como os atores se movimentam pelo
espaço. Tendo em conta que estávamos no
momento de popularização do filme de cinéfilo,
com que freqüência este tipo de seqüência
batida de gênero se resolvia de forma tão
livre da referência a outros filmes? Cada detalhe
aqui soa verdadeiro, um feito e tanto num filme cuja
ação principal é tão recheada
de absurdos que os produtores devem ter considerado
a inclusão do cartão baseado em fatos
reais no inicio como essencial. As seqüências
iniciais dentro do banco possuem um senso preciso de
tempo com a irritação, tédio, medo
e nervosismo de ladrões, e as referências
são tornadas palpáveis (pena que Lumet
termine por demais enamorado pelo efeito e ele termine
por se diluir na segunda metade).
A excelência das atuações (a exceção
de Sarandon) também é marcante. O trabalho
de expressão corporal do elenco comprova o quanto
a improvisação valeu: basta observar o
andar do gerente de banco enquanto acompanha Pacino
numa checagem ou a forma como Charles Dunning se move
durante as negociações. A atuação
do subestimado John Cazale parece estar fora do filme
tanto quanto o seu personagem parece fantasmagoricamente
não pertencer à própria situação.
Quanto mais tensa, insana e estúpida se torna
a situação, mais o elenco funciona como
âncora para o filme. Há algo de muito errado
com as seqüências em que Pacino joga com
a multidão e com as câmeras de tv que acompanham
o caso, mas não há como negar que o espetáculo
de performance que ele proporciona vende muito bem as
idéias de Lumet e Pierson. Há uma curiosa
tensão em como o filme opera cada atuação
pertencente ao quadro maior, mas Lumet ao mesmo tempo
parece isolar cada gesto do filme numa existência
particular. É também um prazer observar
como cada um dos atores se movimenta de forma a preencher
o quadro. Para um filme que é, antes de mais
nada, um veículo para um então jovem ator
em ascensão, há um elemento democrático
em ação aqui: há quase sempre algo
mais acontecendo para além dos astros e cada
um, dentro ou fora do banco, é tratado da mesma
forma pela câmera de Lumet. Toda esta autenticidade
de detalhe e observação de comportamento
chega ao clímax justamente quando a violência
que o filme vem prometendo desde o inicio explode, e
tudo acaba em questão de segundos. Mas assista
ao seu DVD ou vídeo em slow motion e observe
como atores e câmera estão em tão
perfeita sintonia que o aspecto pulp da cena
– assim como do filme – nem fica registrado.
Filipe Furtado
(DVD/VHS: Warner)
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