UM DIA DE CÃO
Sidney Lumet, Dog Day Afternoon, EUA, 1975

Elogio à Estupidez

Me lembro da experiência de, ao ler Fazendo Filmes, o ótimo livro de Sidney Lumet sobre direção de cinema, trinta páginas dentro dele achar impossível conter a pergunta: há algum outro relato de um cineasta sobre sua arte provido de tamanho bom senso? Cerca de trinta páginas depois a segunda constatação: não é à toa que, mesmo inegavelmente talentoso, o sujeito nunca tenha ido além de um diretor menor. Há algo de excessivamente controlado, de muito seguro no trabalho de Lumet; é como se a câmera de Lumet, apesar de quase nunca estar no lugar errado, também raramente escapasse do lugar óbvio. É preciso de uma agenda muito especifica para negar que Serpico é um bom filme, mas em termos de denúncia sobre corrupção policial ele não chega a carregar metade da força de um filme como O Chefão de Nova York, um pequeno blackexplotation que Larry Cohen dirigiu na mesma época – mesmo que ninguém jamais tenha confundido Fred Williamson com Al Pacino. A exceção sempre me pareceu Um Dia de Cão, o momento em que Lumet mais se aproximou de fazer um grande filme. Retornando a Fazendo Filmes, achamos o relato de como, após alguns dias de ensaio mal sucedidos, o cineasta decidiu abandonar o eficiente roteiro de Frank Pierson e improvisar o filme junto ao elenco. Pela única vez o entediante artesão eficiente faz algo aparentemente estúpido. Pena que ele não tenha se arriscado mais.

Um Dia de Cão está longe de ser um filme perfeito: ele é uns 20 minutos mais longo do que necessitava; a muito celebrada atuação de Chris Sarandon comprova que, se bons atores podem fazer milagres em improvisação, os maus tendem a se afogar nela; e o populismo do filme tem algo de irritante que prova como Lumet não precisa das bobagens de Paddy Cheyvesky para cair nesse tom. O que mais impressiona em Um Dia de Cão é o seu senso de autenticidade. Superficialmente pode parecer estranho que este filme que poderia ter sido filmado num porão de algum estúdio seja freqüentemente referido como "um grande filme de Nova York", mas Lumet consegue um efeito de espaço/tempo concreto que raramente vemos. Nunca estive sequer próximo ao Brooklyn, mas as externas do filme possuem um senso de aqui-e-agora que indicam que aquilo só pode pertencer a um local específico. O olhar observador de Lumet segue afiado: basta observar a cena do assalto em cada gesto ou na forma como os atores se movimentam pelo espaço. Tendo em conta que estávamos no momento de popularização do filme de cinéfilo, com que freqüência este tipo de seqüência batida de gênero se resolvia de forma tão livre da referência a outros filmes? Cada detalhe aqui soa verdadeiro, um feito e tanto num filme cuja ação principal é tão recheada de absurdos que os produtores devem ter considerado a inclusão do cartão baseado em fatos reais no inicio como essencial. As seqüências iniciais dentro do banco possuem um senso preciso de tempo com a irritação, tédio, medo e nervosismo de ladrões, e as referências são tornadas palpáveis (pena que Lumet termine por demais enamorado pelo efeito e ele termine por se diluir na segunda metade).

A excelência das atuações (a exceção de Sarandon) também é marcante. O trabalho de expressão corporal do elenco comprova o quanto a improvisação valeu: basta observar o andar do gerente de banco enquanto acompanha Pacino numa checagem ou a forma como Charles Dunning se move durante as negociações. A atuação do subestimado John Cazale parece estar fora do filme tanto quanto o seu personagem parece fantasmagoricamente não pertencer à própria situação. Quanto mais tensa, insana e estúpida se torna a situação, mais o elenco funciona como âncora para o filme. Há algo de muito errado com as seqüências em que Pacino joga com a multidão e com as câmeras de tv que acompanham o caso, mas não há como negar que o espetáculo de performance que ele proporciona vende muito bem as idéias de Lumet e Pierson. Há uma curiosa tensão em como o filme opera cada atuação pertencente ao quadro maior, mas Lumet ao mesmo tempo parece isolar cada gesto do filme numa existência particular. É também um prazer observar como cada um dos atores se movimenta de forma a preencher o quadro. Para um filme que é, antes de mais nada, um veículo para um então jovem ator em ascensão, há um elemento democrático em ação aqui: há quase sempre algo mais acontecendo para além dos astros e cada um, dentro ou fora do banco, é tratado da mesma forma pela câmera de Lumet. Toda esta autenticidade de detalhe e observação de comportamento chega ao clímax justamente quando a violência que o filme vem prometendo desde o inicio explode, e tudo acaba em questão de segundos. Mas assista ao seu DVD ou vídeo em slow motion e observe como atores e câmera estão em tão perfeita sintonia que o aspecto pulp da cena – assim como do filme – nem fica registrado.

Filipe Furtado

(DVD/VHS: Warner)