América, 1983
Ver Trocando as Bolas em 2005 é observar
um objeto cinematográfico estranho que nos remete
a um tempo e lugar bastante especifico. È um
filme datado? Até certo ponto. Todo filme político
que radiografa/reflete seu momento não tem como
não ser. Qual é a operação
que Landis pratica aqui? Partir de uma encomenda (dado
importante) para realizar uma comédia sofisticada
dos anos 30 (Lubitsch, Cukor) em plenos anos 80 de Reagan
e dali realizar uma autopsia da sua própria impossibilidade.
Eddie Murphy não é Maurice Chavalier,
nem Dan Aykroyd tem o charme de um Cary Grant. Mas a
questão é menos de material e sim de que
a sociedade mudou, os tempos são outros. Cluny
Brown (1946), o Lubitsch derradeiro e um dos mais
belos filmes finais encanta justamente por mostrar
o cineasta num mundo particular que pertence só
a ele. Em 1980, Arthur, outra tentativa de atualizar
este tipo de filme, havia sido um enorme sucesso (e
Landis ao escalar Denholm Elliot como o mordomo certamente
pretendia fazer a ligação entre os filmes),
e sem dúvidas ajudou o filme de Landis a receber
o sinal verde, mas aqui não estamos mais diante
de uma tentativa ingênua de retorno ao modelo,
mas de um filme de alguém que conhece a fundo
a história da comédia americana e reconhece
que diante do seu momento as únicas alternativas
possíveis diante de tal proposta são:
o mergulho na mais completa fantasia maneirista ou fazer
a anatomia do cadáver deste projeto de comédia.
Quando Arthur Hiller se torna um grande diretor de comédias,
o My Man Godfrey (1936), de Gregory La Cava,
em que o mendigo William Powell se revela o mais distinto
dos cavalheiros, já não pode mais existir.
Portanto, dá-lhe piadas sobre sexo com gorilas!
Não é por nada que Landis elege para modelo
não o primeiro Cukor ou Lubistch, mas Frank Tashlin
(o sismógrafo cômico da América
de Eisenhower). Trocando as Bolas é o
Em Busca do Homem de Landis, devidamente revisto
para os anos Reagan (outro mundo, outras questões,
mas operações similares). Se a Tashlin
era possível questionar pode o sucesso estragar
Rock Hunter?, aqui a questão já nem
pode ser posta. O mundo de Trading Places é
corrupto de cima a baixo, o máximo que os nada
heróicos heróis podem fazer é ferir
os caras maus na conta bancaria. Aqui o personagem marginal
pode até ser simpático e boa pinta, mas
ele quer a sua fatia do bolo como todo mundo. Landis
não acredita em filmes idealistas onde é
possível atacar os problemas de frente. Ao invés
disso ele permite que estes problemas respirem e ressoem
na tela. Seus heróis podem ser sempre marginais,
boçais, deslocados e eles irão quase que
invariavelmente triunfar no final (afinal, thats
entertainment!), mas eles não estão
assim tão distante da Rosetta dos irmãos
Dardenne. Don Ameche, o herói do melhor filme
de Lubitsch (O Diabo Disse Não), reaparece
aqui de forma não menos que memorável,
vale dizer como representante do que há de
mais retrógado e reacionário, e o que
impressiona é que poderia-se muito bem se tratar
da mesma personagem. Como um dos mais vivos protagonistas
de todo o cinema se metamorfoseou neste cadáver
monstruoso? O que aconteceu com um certo projeto no
espaço de 40 anos que separa estas duas atuações
de Ameche é algo que assombra todo o filme (basta
ver a forma como Landis pontua freqüentemente planos
com imagens de figuras históricas americanas
ao fundo culminando com o plano onde Ralph Bellamy
outra figura da comédia dos anos 30/40 divide
o quadro com uma foto do então presidente Reagan,
ele próprio um ícone dos anos 40, ainda
por cima um ex-sindicalista dos anos Roosevelt). Reconhece-se
a evolução do humor (Ernst Lubitsch /Preston
Sturges/Frank Tashlin/Jerry Lewis/Elaine May/John Landis)
ao mesmo tempo da evolução da política
e só pela forma como o filme realiza esta operação
de junção mundo/imagem já o tornaria
essencial.
Toda a obra de Landis circula do detalhe mais sutil
ao francamente grotesco, mas nunca no esforço
de retratista do diretor o segundo lado se destacou
de forma tão clara. Trading Places é
grosso, é boçal, é vulgar, é
feio, é óbvio, mas é porque ele
necessita ser. È um filme muito triste, em que
o humor é a única saída para a
tragédia. Landis compreende que o humor politicamente
incorreto e ofensivo só pode existir como arma
de incômodo político quando desacompanhada
de um tom auto-congratulatório. Perguntado certa
vez a respeito de qual seria o tema dos seus filmes,
Frank Tashlin respondeu acho que aquilo que vocês
chamam de civilização. O mesmo pode
ser dito dos melhores filmes de Landis (Um Romance
Muito Perigoso, Um Príncipe em Nova York,
Animal House, este aqui). Como um comediante
vulgar como Landis pode estar se preocupando com as
mesmas coisas que um Manoel de Oliveira, o leitor pode
se perguntar? A resposta: observem Eddie Murphy se movimentado
pelo seu novo emprego num ambiente onde todos os demais
funcionários são brancos. Não se
trata de um comentário sobre racismo mesmo
que as personagens de Ameche e Bellamy obviamente sejam
racistas mas de como idéias e mentalidades
se formam. Ou ainda basta olhar na maneira como Mnurphy
e Aykroyd se adaptam a seus novos papéis. O filme
sublinha o que quer dizer em letras gigantes, e ao mesmo
tempo é cuidadoso com os detalhes. Basta observar
as cenas iniciais entre Aykroyd e Elliot, em particular
o olhar que o segundo lhe lança na última
vez que o vê antes do patrão perder tudo.
A direção de arte do filme é primorosa
justamente na capacidade de apontar detalhes. A cena
da bolsa de valores é caricatural o suficiente
para gerar o cômico, sem deixar de ser um primor
de observação, o mesmo valendo para todas
as cenas de transações comerciais. O filme
acerta no alvo mesmo em seus mergulhos no falso, como
na sua parodia de Todos os Homens de Presidente,
no jogo de disfarces, em especial na seqüência
em que o funcionário corrupto do governo se vê
cercado por outros personagens fantasiados como os mais
diferentes tipos de estrangeiros (incluindo Murphy ensaiando
seu príncipe africano de Um Príncipe
em Nova York). A tensão entre as caricaturas
as conscientes ensaiadas pelas personagens principais
e a não consciente do funcionário corrupto,
que circula sem problemas por uma festa fantasia sem
se dar conta o tempo preciso da cena, tudo leva a
um confronto inevitável onde a falsidade calculadamente
cinematográfica desnuda uma falsidade de discurso.
Acima de tudo esta espécie de O Príncipe
Yuppie e o Vagabundo é um filme que respira
em cada poro o seu momento específico, mas se
Landis é um arqueólogo do seu tempo, ele
sabe muito bem que também pertence a ele. Não
há aqui qualquer distanciamento ou satisfação
consigo mesmo. Pelo contrário, o filme é
tão mais critico quanto mais se impregna do aqui-e-agora
de então.
Por fim, fica a pergunta: se podemos dizer que Landis
é herdeiro de Tashlin, onde estão os herdeiros
de Landis? Quem teria coragem para fazer um filme tão
direto como Trading Places em 2005 ou 2006, de
dentro da industria? Há um lado político
no humor dos Farrellys, mas eles chegam a ele pela porta
dos fundos. Não faltam boas piadas na comédia
americana recente, mas falta uma que morda e seja tão
incisiva quanto esta aqui.
Filipe Furtado
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