UM TIRA DA PESADA III
John Landis, Beverly Hills Cop III, EUA, 1994

Filme-Dinossauro

Não é mesmo de se esperar muita coerência conceitual de um filme que começa a ser rodado com um roteiro pela metade e sem que ninguém tenha a menor idéia de por que os vilões do filme se escondiam num parque temático – não que em algum momento realmente venhamos a saber do porquê, mas no final das contas, é provável que Landis tenha adorado explorar esse espaço. As poucas páginas simplesmente repetiam o que quem já teve acesso aos dois primeiros filmes da série conhece bem – amigo-parceiro de Axel Foley morre, ele vai para Beverly Hills arranjar confusão resolvendo o caso. Junte isso a uma pressão constante dos produtores, e nasce o clima perfeito para que Landis transforme o processo de realização de Um Tira da Pesada III num verdadeiro circo. Colocando em prática o seu lado mais torrador de dinheiro, Landis usa e abusa das possibilidades mais inacreditáveis que um parque temático pode lhe proporcionar – afinal, é um palco de ilusões – criando as mais mirabolantes atrações por onde Eddie Murphy irá caminhar sem nenhum propósito narrativo, mas para completo delírio do cineasta, que faz um uso genial de todo aquele mega-espaço.

Feito quase na metade da década de 90, Um Tira da Pesada III é um objeto perdido no tempo, um autêntico filme dos anos 80 – em certo momento um dinossauro de brinquedo emerge em cena e não parece surgir ao acaso –, com todos os tiques e excessos da década que já havia passado há alguns bons anos, as músicas, roupas, cabelos, uma franquia consolidada nos anos 80, um astro consolidado nos anos 80. Mas, acima de tudo, John Landis é um homem dos anos 80, e antes disso um cineasta que responde a esse momento da história do cinema (e do mundo). Não surpreende então que no meio da década de 90, com todos os elementos oitentistas à mão, ele realize o filme mais anos 80 possível. Os laços de Landis com a década de 80 são tão fortes que em 2004, realizando o documentário-extra Onde Eles Estão Agora?, o cineasta ainda critica sem piedade o governo de Ronald Reagan (inclusive nominalmente). Mas ganha-se ou perde-se com este fator? Embora os produtores certamente tenham quebrado a cara (e fechado por conseqüência a franquia) ao obviamente não terem como vender o filme que Landis lhes entregou (é bem verdade que isso causa problemas ao resultado final do filme, mas sobre isso aguardemos um pouco mais), e que trata-se de um filme que já nasce datado, o que não é necessariamente problema tendo em vista tratar-se de um filme de Landis – do contrário teríamos de descartar toda sua filmografia, essencial mas certamente dizendo muito sobre um momento específico – é difícil resistir aos domínios de Landis quanto a esse tempo. Talvez não exista nenhum outro cineasta a conseguir encontrar um foco formal tão perfeito que resuma um momento que é o de fazer cinema de humor nos EUA na década de 80 como Landis.

Diante de um produto tão estranho para se vender – embora seja uma pena – não surpreende que os executivos da Paramount, ao fazerem exibições testes do filme, tenham decidido tentar salvá-lo de um fracasso comercial – é um verdadeiro caso para estudo como constantemente os estúdios atrapalham filmes realizando cortes para buscar uma "salvação", e na grande maioria dos casos, não obtendo sucesso da mesma maneira. Embora não seja um fato provado, as evidências sobram na tela, especialmente para quem conhece uma boa quantidade dos filmes de Landis e, principalmente, conheça seus dispositivos. Landis é um cineasta que costumar estruturar a montagem de seus filmes já no ato de filmar, trabalhando muito com contraplanos, tendo a idéia estrutural do filme toda construída antes de ir para a sala de montagem. Quando se observa alguns planos colando a outros de forma dantesca, especialmente até a primeira metade do filme, não é difícil imaginar que falta algo ali. Há ainda momentos bastante estranhos em que um ou outro plano chega a parecer estar desenquadrando – algo absolutamente não-Landis – possivelmente em virtude de um trabalho de segunda unidade de quinta categoria. São problemas que embora não sejam uma constante dentro do filme, são evidentes na tela. Bastante rigoroso com a direção de atores, sabe-se lá por questões de produção/falta de tempo, mas o fato é, e isso fica ainda mais claro que os pequenos problemas de remontagem por parte da Paramount, a direção de atores do filme é algo de surreal. Com Murphy pela experiência já considerável de trabalhos com Landis (e trabalhos primorosos), mesmo sem uma direção mais direta, vê-se ainda alguma coerência de câmera-ator, mas Judge Reinhold, Theresa Randle, Hector Elizondo, John Saxon, Bronson Pinchot (este último principalmente) parecem estar todos atirando para lados diferentes, e o que a princípio parece um problema capital – especialmente tendo em mente este lado rigoroso de Landis – é transfigurado em mais um artifício para o lado caótico em tom épico que o cineasta acaba construindo neste filme (até mesmo o clássico tema original é retrabalhado com picos mais exagerados).

O esteticismo oitentista de Landis serve com perfeição ao humor de Eddie Murphy, ele mesmo um comediante dos anos 80 nato. Todas as suas tentativas de manter sua faceta construída na primeira década de carreira no cinema durante os anos 90 se tornaram pequenos desastres, com o comediante só indo reencontrar seu humor com um lado mais familiar e menos grosseiro na refilmagem de O Professor Aloprado, e é muito curioso observar como isso se dá em 1996 no mesmo momento em que Landis começa a adentrar sua hibernação. No princípio dos anos 80 final dos 70, foram cineastas como Landis e Joe Dante que parecem ter entendido mais rápido o que significava aquele momento que ali começava, e encontrado a melhor forma de transformar isso em cinema. A verdadeira sutileza na década de 80 é a não-sutileza, a vitória da vulgaridade sendo posta de frente com a grosseria (mesmo que tal não seja qualquer grosseria como o termo possa dar vazão, não era e não é fácil fazer um bom uso deste tipo de senso de humor, no qual John Landis é um mestre). A chegada da década seguinte começa a castrar aos poucos os espaços para esse tipo de humor, jogando para a completa marginalidade cineastas como Landis e Dante. Para Um Tira da Pesada III, nada melhor que este último passo de Murphy num humor refinado mas menos comportado (suas tentativas de retornar a este tipo de senso de humor desde então passariam a fracassar comercialmente tanto quanto este filme fracassou), encontrando um trabalho dos mais anárquicos de Landis.

Este filme-dinossauro de Landis, mesmo com todos os seus problemas de produção, marca um momento histórico da comédia americana, o verdadeiro fim de um momento da história do cinema, a sobrevida de um movimento cinematográfico, de uma forma de fazer comédia. Os filmes posteriores de Landis, Os Babacas, Irmãos Cara-de-Pau 2000 e Plano de Risco, já formam um verdadeiro fantasma, mesmo que o talento do diretor seja capaz de transformar até mesmo um filme que tinha tudo para não dar certo como este em um grande filme, capaz de dar um mínimo de coerência a qualquer trabalho.


Guilherme Martins