Filme-Dinossauro
Não é mesmo de se esperar muita coerência
conceitual de um filme que começa a ser rodado
com um roteiro pela metade e sem que ninguém
tenha a menor idéia de por que os vilões
do filme se escondiam num parque temático – não
que em algum momento realmente venhamos a saber do porquê,
mas no final das contas, é provável que
Landis tenha adorado explorar esse espaço. As
poucas páginas simplesmente repetiam o que quem
já teve acesso aos dois primeiros filmes da série
conhece bem – amigo-parceiro de Axel Foley morre, ele
vai para Beverly Hills arranjar confusão resolvendo
o caso. Junte isso a uma pressão constante dos
produtores, e nasce o clima perfeito para que Landis
transforme o processo de realização de
Um Tira da Pesada III num verdadeiro circo. Colocando
em prática o seu lado mais torrador de dinheiro,
Landis usa e abusa das possibilidades mais inacreditáveis
que um parque temático pode lhe proporcionar
– afinal, é um palco de ilusões – criando
as mais mirabolantes atrações por onde
Eddie Murphy irá caminhar sem nenhum propósito
narrativo, mas para completo delírio do cineasta,
que faz um uso genial de todo aquele mega-espaço.
Feito quase na metade da década de 90, Um
Tira da Pesada III é um objeto perdido no
tempo, um autêntico filme dos anos 80 – em certo
momento um dinossauro de brinquedo emerge em cena e
não parece surgir ao acaso –, com todos os tiques
e excessos da década que já havia passado
há alguns bons anos, as músicas, roupas,
cabelos, uma franquia consolidada nos anos 80, um astro
consolidado nos anos 80. Mas, acima de tudo, John Landis
é um homem dos anos 80, e antes disso um cineasta
que responde a esse momento da história do cinema
(e do mundo). Não surpreende então que
no meio da década de 90, com todos os elementos
oitentistas à mão, ele realize o filme
mais anos 80 possível. Os laços de Landis
com a década de 80 são tão fortes
que em 2004, realizando o documentário-extra
Onde Eles Estão Agora?, o cineasta ainda
critica sem piedade o governo de Ronald Reagan (inclusive
nominalmente). Mas ganha-se ou perde-se com este fator?
Embora os produtores certamente tenham quebrado a cara
(e fechado por conseqüência a franquia) ao
obviamente não terem como vender o filme que
Landis lhes entregou (é bem verdade que isso
causa problemas ao resultado final do filme, mas sobre
isso aguardemos um pouco mais), e que trata-se de um
filme que já nasce datado, o que não é
necessariamente problema tendo em vista tratar-se de
um filme de Landis – do contrário teríamos
de descartar toda sua filmografia, essencial mas certamente
dizendo muito sobre um momento específico – é
difícil resistir aos domínios de Landis
quanto a esse tempo. Talvez não exista nenhum
outro cineasta a conseguir encontrar um foco formal
tão perfeito que resuma um momento que é
o de fazer cinema de humor nos EUA na década
de 80 como Landis.
Diante de um produto tão estranho para se vender
embora seja uma pena não surpreende
que os executivos da Paramount, ao fazerem exibições
testes do filme, tenham decidido tentar salvá-lo
de um fracasso comercial – é um verdadeiro caso
para estudo como constantemente os estúdios atrapalham
filmes realizando cortes para buscar uma "salvação",
e na grande maioria dos casos, não obtendo sucesso
da mesma maneira. Embora não seja um fato provado,
as evidências sobram na tela, especialmente para
quem conhece uma boa quantidade dos filmes de Landis
e, principalmente, conheça seus dispositivos.
Landis é um cineasta que costumar estruturar
a montagem de seus filmes já no ato de filmar,
trabalhando muito com contraplanos, tendo a idéia
estrutural do filme toda construída antes de
ir para a sala de montagem. Quando se observa alguns
planos colando a outros de forma dantesca, especialmente
até a primeira metade do filme, não é
difícil imaginar que falta algo ali. Há
ainda momentos bastante estranhos em que um ou outro
plano chega a parecer estar desenquadrando – algo absolutamente
não-Landis – possivelmente em virtude de um trabalho
de segunda unidade de quinta categoria. São problemas
que embora não sejam uma constante dentro do
filme, são evidentes na tela. Bastante rigoroso
com a direção de atores, sabe-se lá
por questões de produção/falta
de tempo, mas o fato é, e isso fica ainda mais
claro que os pequenos problemas de remontagem por parte
da Paramount, a direção de atores do filme
é algo de surreal. Com Murphy pela experiência
já considerável de trabalhos com Landis
(e trabalhos primorosos), mesmo sem uma direção
mais direta, vê-se ainda alguma coerência
de câmera-ator, mas Judge Reinhold, Theresa Randle,
Hector Elizondo, John Saxon, Bronson Pinchot (este último
principalmente) parecem estar todos atirando para lados
diferentes, e o que a princípio parece um problema
capital – especialmente tendo em mente este lado rigoroso
de Landis – é transfigurado em mais um artifício
para o lado caótico em tom épico que o
cineasta acaba construindo neste filme (até mesmo
o clássico tema original é retrabalhado
com picos mais exagerados).
O esteticismo oitentista de Landis serve com perfeição
ao humor de Eddie Murphy, ele mesmo um comediante dos
anos 80 nato. Todas as suas tentativas de manter sua
faceta construída na primeira década de
carreira no cinema durante os anos 90 se tornaram pequenos
desastres, com o comediante só indo reencontrar
seu humor com um lado mais familiar e menos grosseiro
na refilmagem de O Professor Aloprado, e é
muito curioso observar como isso se dá em 1996
no mesmo momento em que Landis começa a adentrar
sua hibernação. No princípio dos
anos 80 final dos 70, foram cineastas como Landis e
Joe Dante que parecem ter entendido mais rápido
o que significava aquele momento que ali começava,
e encontrado a melhor forma de transformar isso em cinema.
A verdadeira sutileza na década de 80 é
a não-sutileza, a vitória da vulgaridade
sendo posta de frente com a grosseria (mesmo que tal
não seja qualquer grosseria como o termo possa
dar vazão, não era e não é
fácil fazer um bom uso deste tipo de senso de
humor, no qual John Landis é um mestre). A chegada
da década seguinte começa a castrar aos
poucos os espaços para esse tipo de humor, jogando
para a completa marginalidade cineastas como Landis
e Dante. Para Um Tira da Pesada III, nada melhor
que este último passo de Murphy num humor refinado
mas menos comportado (suas tentativas de retornar a
este tipo de senso de humor desde então passariam
a fracassar comercialmente tanto quanto este filme fracassou),
encontrando um trabalho dos mais anárquicos de
Landis.
Este filme-dinossauro de Landis, mesmo com todos os
seus problemas de produção, marca um momento
histórico da comédia americana, o verdadeiro
fim de um momento da história do cinema, a sobrevida
de um movimento cinematográfico, de uma forma
de fazer comédia. Os filmes posteriores de Landis,
Os Babacas, Irmãos Cara-de-Pau 2000
e Plano de Risco, já formam um verdadeiro
fantasma, mesmo que o talento do diretor seja capaz
de transformar até mesmo um filme que tinha tudo
para não dar certo como este em um grande filme,
capaz de dar um mínimo de coerência a qualquer
trabalho.
Guilherme Martins
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