I’m my own grandpa
O projeto dramático Os Babacas parte
de um princípio que lembra um pouco o do desenho
Mr. Magoo. Daí, um filme sobre cegos. Os Stupids
(uma família, aliás, este é o título
original do filme) não conseguem ver os outros
em suas verdadeiras intenções ou ocupações,
nem os cenários em suas reais funções
(daí que um instituto planetário se torna
o paraíso celeste, para onde as almas seguem,
um lixão se torna departamento principal de uma
conspiração macabra de roubo dos resíduos
e restos da família média americana, os
lixeiros tornam-se agentes diabólicos dessa conspiração,
etc); já os outros não conseguem ver os
Stupids exatamente como "estúpidos": antes, são
apenas pessoas nos lugares errados, ou complexas demais
para que suas atitudes sejam compreendidas simplesmente
como pertencentes ao absurdo. Portanto, toda a tensão
dramatúrgica, aqui, nasce de um esforço
do mal-entendido e do equívoco. Aliás,
não é apenas a tensão dramatúrgica
que parte desse ponto. Todo o roteiro, um roteiro de
ações em cadeia (um equívoco leva
a um outro, este, por sua vez, conduz a um novo e assim
por diante) é esculpido, ou "anti"esculpido,
a partir dessa idéia.
Mas o que há aqui, para além dessa engenharia
da cegueira e do equívoco? Primeiro: temos esses
estúpidos que vivem em uma vizinhança
de subúrbio, esqueleto paisagístico estereótipo
da classe média americana, filmado pelo diretor
exatamente dessa forma. Mas John Landis nos dá
outras coordenadas. Entremos, por exemplo, no endereço
dos Stupids, em sua casa, essa que fica dentro do subúrbio.
O que temos, acima de qualquer outra possível
leitura, é uma bolha, um estranho organismo de
isolamento. O dispositivo cenográfico é
armado em uma assepsia meio infantilista (às
vezes se assemelha a uma loja de brinquedos), mas também
meio futurista e sintética. Os animais de estimação
são fofuras digitais flácidas que, afora
seu aspecto "tecnológico", dizem muito sobre
a miscelânea de discursos, sociológicos
e visuais, anárquicos, despirocados e propositalmente
gratuitos, que o roteiro e Landis, embora não
estivesse aqui fazendo um trabalho "autoral", inseminam
e amontoam aqui. No entanto, os figurinos e o gestual
dos habitantes da casa, códigos, imaginamos,
construídos e preservados dentro desse organismo
doméstico, são tão afetados do
que deslocados de tempo: evocam passado, época
"dourada". Uma época dourada registrada, e "transmitida"
(sim, falamos de processo televisivo), um dia, decerto.
Assim, o filme se passa contemporaneamente, a leitura
espacial, a cenografia e bichos de estimação
acusam parodicamente uma orientação plástica
"futurista" (os bichos em seu corpo, e a cenografia
também), e o cotidiano da família tem,
não menos parodicamente, alguma coisa de antiquado,
ou retrô. É a partir daqui, dessa operação
múltipla, e quase constrangedoramente exagerada,
envolvendo os componentes cêncos que vamos perceber
que não há apenas uma razão cômica
do descompasso, da impossibilidade de compreensão
das evidências e do posicionamento do "outro"
(no caso, qualquer um), mas há de fato uma desconexão,
temporal, estética e física, dessa família
com o resto do mundo.
E é por aqui, nessa idéia de total desconexão,
que Landis, que sempre acenou para uma certa morbidez,
com um sutil sentido de melancolia, mesmo em suas mais
alopradas comédias, quase consegue fazer um filme
triste. Uma tristeza que começa pela felicidade
anestesiada e de expressão, emocional e corporal,
falseada - meio andróide - dessa família
em suas interrelações afetivas, mas se
alastra. Alastra-se, por exemplo, já no começo,
quando o pai, Stanley, se lança à perseguição
de um caminhão de lixo. E não o faz vulgarmente,
vai de patins. Sai de noite e de manhã ainda
está patinando pelas ruas da cidade, fluxo que
entre outras leituras sugere a da melancolia. Uma tristeza
filtrada, em sons, rostos, movimentos de câmera,
mas que ao mesmo tempo parece neutralizar o aparato
de filtragem. Parece encontrar a si mesmo
A mesma coisa podemos dizer de uma das cenas mais engraçadas
do filme (e da carreira) de Landis, a do Planetário.
Pai e filha estão no Planetário, mas não
sabem, acham que estão em outro lugar. De repente,
aquele aparelho artificialista do espaço sideral
(o trabalho de arte aqui é tosco, o que faz bem
para a cena e fala um pouco sobre mais ou menos tudo
nesse filme) se fecha, mas estão os dois na sala.
Expressando conformidade e sobriedade afetadas, mas
mesmo assim pesadas, mesmo para uma cena cômica,
esse pai e essa filha, de 12 anos, concluem, juntos:
"estamos mortos, agora mais próximos do criador".
É aí que entra o faxineiro da sala, trabalhador
negro equipado com seus instrumentos de limpeza e com
uniforme padrão, de tão padronizado quase
iconográfico no imaginário americano:
um daqueles macacões com a identificação
do funcionário em letras simpáticas e
ornamentadas, contornadas por um círculo. Lá,
aliás, está escrito: "Lloyd". "So your
name is Lloyd, not Lord!".
A partir daqui, segue uma encenação em
duas freqüências: Lloyd, prestativo, diante
de dois visitantes deslocados em horário de inatividade
do complexo, tentando explicar a situação
didática e pacientemente; já pai e filha,
arrebatados, sobriamente conscientes da morte, espantados
e encantados diante da presença divina, tateando
o "grande mistério". De novo há algo de
penoso, de fato desconfortável (embora inspire
gargalhadas), na expressão dos Stupids diante
de mecanismos prosaicos do mundo com os quais não
dialogam integramente, aspecto acentuado pelo conteúdo
"morte" dessa cena. Há uma tristeza, mais uma
vez disfarçada pelo aparato da mise en scène,
mas que ainda consegue contaminar o registro. E daí
que poderíamos chamar Os Babacas de comédia
grosseira (de estereótipos tratados e analisados
grosseiramente) extrema, com o termo "extrema" vinculado
a esse desconforto da melancolia ou da morbidez. Algo
que talvez faça este filme flertar com objetos
televisivos da época, ainda embrionários,
como South Park, por exemplo. Muitos expedientes,
estruturais ou meramente ligados à escrita das
piadas, em Os Babacas se alinham, aliás,
a outros de South Park, por exemplo.
O artesanato desse roteiro de cadeia é um artesanato
de mentira. Ele soa propositalmente frágil, talvez
como nunca na carreira de Landis. O enredo e suas chaves
de evolução soam como uma piada em si
mesma, num sistema de eventos ridiculamente coordenado:
o jogo aqui é assumido. Esse roteiro parece se
articular apenas para que algumas situações
e desenvolvimentos possam se configurar, fertilizando
o terreno para que Landis trafegue, brinque em pequenas
centrais cênicas de acabamento e tonalidade francamente
trash, cutuque o exército (militares americanos
carrancudos e caricaturais vendem armas para corporações
estrangeiras do crime) e demais instituições
americanas, incluindo a televisão americana e
os estereótipos e mitos da imagem fabricados
ou conservados por ela (não é à
toa que a bússola de Landis na confecção
de boa parte disto aqui será o contato com os
ícones e estereótipos cooptados ou reciclados,
como imagem, por essa célula cultural americana,
desde o faxineiro negro uniformizado, aliás).
Há itens colocados da forma mais grotesca (forçadamente
grotesca), como por exemplo uma dupla de ETs, muito
parecida com aquela de Os Simpsons que eventualmente
visita Springfield, o que seria já um exercício
em reprodução do formato "ETs no audiovisual
americano". São no entanto digitais, como os
bichos de estimação, e parecem dar as
caras no filme apenas para que, no final, sejam incinerados
sem querer por Stanley, que utiliza seu equipamento
de churrasco no jardim (outro item estereotipado).
O filme na verdade é composto por pequenos mundos
e "aplicações" cênicas
(descartáveis, tudo no filme parece aliás
exalar esse odor descartável) e a mais interessante
é sem dúvida a da televisão, onde
parece que o filme vai encontrar a si mesmo, lá
dentro, naquele mundo à parte. Aqui, Landis parece
chegar a um tema valorizado em toda a sua cinematografia:
a sabotagem - sobretudo a sabotagem de mecanismos padronizados
e ordenados de uma cultura, por essa cultura, para consumo
e manutenção de seus extratos (no caso
a americana). Se Landis está interessado, em
relação a essa cultura, em observar como
algumas de suas células se constituem e implodem
(universidade, em Clube dos Cafajestes, mais
ou menos tudo, incluindo um shopping center, em Os
Irmãos Cara-de-Pau), ou observar quase que
biologicamente seu funcionamento, como se estivéssemos
em uma selva, experimentando choques que se engendram
a partir de uma série de vetores sociais próprios
dela (Príncipe em NY), em Os Babacas
Landis usa exatamente o que seria, em estereótipo,
algo totalmente americano (essa família Stupids)
para se infiltrar em - e sabotar - um pequeno tecido
cultural. No caso a TV, onde a família participará
ativamente da arquitetura da imagem americana, no interior
físico de seus departamentos, em seus nervos.
É uma ironia, se os Stupids, dentro de seu universo
de imagem, remetem a um milhão de estereótipos
e figuras televisivas, modeladas no cardápio
americano dos últimos 50 anos, que teriam sofrido
aqui mutação ou reprocessamento.
Como tudo nesse filme, há uma deliberada inconseqüência
nessa operação, um sentido gratuito de
encenação e abordagem que se ao mesmo
tempo a torna, à primeira vista, pouco vigorosa,
é o que faz dela mais política. Landis
filma como se estivesse preocupado não em atingir
alguém, danificar a estrutura, mas "tirar um
barato", fazer troça juvenil, tocar a campainha
e sair correndo (não só na TV, mas em
outros "apartamentos" também, o exército
é um deles) e talvez por isso o comentário
se torne mais contundente.
Trata-se de Stanley Stupid "invadindo", com a família,
um canal de TV e brincando com os controles do equipamento
de aplauso. Eles passam a controlar o fluxo de "acende"
e "apaga" do brinquedo, orquestrando assim cada movimento
do público, o que gera uma espécie de
revolta hipnotizada e zumbi da platéia, sorridente,
que se encontra no estúdio. Assim, essa platéia,
de omissa massa de reações previsíveis
converte-se em instância que estaria diabolicamente
manipulando o batimento do programa gravado: um programa
no qual a entrevistada, desesperada com a situação,
seria um desses estereótipos americanos loiros
de alguma série de praia e mar.
Essa seqüência, como comentário, pode
aproximar este filme de Rede de Intrigas, de
Sidney Lumet: há uma "revolução",
uma insurreição, da platéia, via
aplausos ou manifestações canônicas
radicais, que, mesmo dentro dos circuitos do filme (no
caso, dos dois filmes), na verdade só revela
como ela pode ser manipulada e convocável. Na
verdade, Landis aqui trava diálogo também
com Spike Lee, na pesquisa do imaginário americano
e de seus estereótipos através de penetração,
reutilização e envenenamento de seus próprios
dispositivos (e ambientes) de transmissão (Garota
6, A Hora do Show, filme que se passa aliás
sempre entre paredes, "estúdios" e "salas de
reunião", sobretudo as da corporação
televisiva).
Logo depois Stanley cai em outro estúdio e participa
de um desses programas "qual é a sua desgraça?",
semente americana para produtos como Márcia Goldschmidt
no Brasil, e, no improviso, solta: "Eu sou meu próprio
avô". Segue musiquinha alegre, em que Stanley
(aqui, claramente o filme passa a ser de e para Tom
Arnold, comediante americano com origem na TV que interpreta
o personagem) elucida, por meio dos versos, uma rede
de anomalias e cruzamentos familiares que determina
o fato de ele ser "seu próprio avô". Aqui,
é Stanley se fundindo, ou retornando, a esse
mundo à parte da TV americana e de seus estereótipos
e aberrações, já que esse evento
surreal é lido com total sincronia entre aparatos
de filmagem e edição da TV, platéia,
apresentadora e o próprio personagem.
Os Babacas é esse filme disfuncional e
quase ofensivo (assumidamente assim) em sua estratégia
cênica do bizarrismo e do desapego a códigos
estruturais (para Landis, talvez só seria possível
se infiltrar em ambientes como a TV americana dessa
forma). Aliás, nesse aspecto estrutural o filme
emula uma TV: Landis parece se deslocar entre vários
canais, pular de um para outro. Um filme triste, por
baixo de suas camadas. Se não é um Landis
essencial, parece servir como um "descarregar" estilístico
e, sobretudo, um desafio em cenas isoladas, se a unidade
é um aspecto dinamitado logo de partida aqui
(é o jogo). Um desafio completado na maior parte
das vezes, diga-se.
Claudio Szynkier
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