OS BABACAS
John Landis, The Stupids, EUA, 1996

I’m my own grandpa

O projeto dramático Os Babacas parte de um princípio que lembra um pouco o do desenho Mr. Magoo. Daí, um filme sobre cegos. Os Stupids (uma família, aliás, este é o título original do filme) não conseguem ver os outros em suas verdadeiras intenções ou ocupações, nem os cenários em suas reais funções (daí que um instituto planetário se torna o paraíso celeste, para onde as almas seguem, um lixão se torna departamento principal de uma conspiração macabra de roubo dos resíduos e restos da família média americana, os lixeiros tornam-se agentes diabólicos dessa conspiração, etc); já os outros não conseguem ver os Stupids exatamente como "estúpidos": antes, são apenas pessoas nos lugares errados, ou complexas demais para que suas atitudes sejam compreendidas simplesmente como pertencentes ao absurdo. Portanto, toda a tensão dramatúrgica, aqui, nasce de um esforço do mal-entendido e do equívoco. Aliás, não é apenas a tensão dramatúrgica que parte desse ponto. Todo o roteiro, um roteiro de ações em cadeia (um equívoco leva a um outro, este, por sua vez, conduz a um novo e assim por diante) é esculpido, ou "anti"esculpido, a partir dessa idéia.

Mas o que há aqui, para além dessa engenharia da cegueira e do equívoco? Primeiro: temos esses estúpidos que vivem em uma vizinhança de subúrbio, esqueleto paisagístico estereótipo da classe média americana, filmado pelo diretor exatamente dessa forma. Mas John Landis nos dá outras coordenadas. Entremos, por exemplo, no endereço dos Stupids, em sua casa, essa que fica dentro do subúrbio. O que temos, acima de qualquer outra possível leitura, é uma bolha, um estranho organismo de isolamento. O dispositivo cenográfico é armado em uma assepsia meio infantilista (às vezes se assemelha a uma loja de brinquedos), mas também meio futurista e sintética. Os animais de estimação são fofuras digitais flácidas que, afora seu aspecto "tecnológico", dizem muito sobre a miscelânea de discursos, sociológicos e visuais, anárquicos, despirocados e propositalmente gratuitos, que o roteiro e Landis, embora não estivesse aqui fazendo um trabalho "autoral", inseminam e amontoam aqui. No entanto, os figurinos e o gestual dos habitantes da casa, códigos, imaginamos, construídos e preservados dentro desse organismo doméstico, são tão afetados do que deslocados de tempo: evocam passado, época "dourada". Uma época dourada registrada, e "transmitida" (sim, falamos de processo televisivo), um dia, decerto.

Assim, o filme se passa contemporaneamente, a leitura espacial, a cenografia e bichos de estimação acusam parodicamente uma orientação plástica "futurista" (os bichos em seu corpo, e a cenografia também), e o cotidiano da família tem, não menos parodicamente, alguma coisa de antiquado, ou retrô. É a partir daqui, dessa operação múltipla, e quase constrangedoramente exagerada, envolvendo os componentes cêncos que vamos perceber que não há apenas uma razão cômica do descompasso, da impossibilidade de compreensão das evidências e do posicionamento do "outro" (no caso, qualquer um), mas há de fato uma desconexão, temporal, estética e física, dessa família com o resto do mundo.

E é por aqui, nessa idéia de total desconexão, que Landis, que sempre acenou para uma certa morbidez, com um sutil sentido de melancolia, mesmo em suas mais alopradas comédias, quase consegue fazer um filme triste. Uma tristeza que começa pela felicidade anestesiada e de expressão, emocional e corporal, falseada - meio andróide - dessa família em suas interrelações afetivas, mas se alastra. Alastra-se, por exemplo, já no começo, quando o pai, Stanley, se lança à perseguição de um caminhão de lixo. E não o faz vulgarmente, vai de patins. Sai de noite e de manhã ainda está patinando pelas ruas da cidade, fluxo que entre outras leituras sugere a da melancolia. Uma tristeza filtrada, em sons, rostos, movimentos de câmera, mas que ao mesmo tempo parece neutralizar o aparato de filtragem. Parece encontrar a si mesmo

A mesma coisa podemos dizer de uma das cenas mais engraçadas do filme (e da carreira) de Landis, a do Planetário. Pai e filha estão no Planetário, mas não sabem, acham que estão em outro lugar. De repente, aquele aparelho artificialista do espaço sideral (o trabalho de arte aqui é tosco, o que faz bem para a cena e fala um pouco sobre mais ou menos tudo nesse filme) se fecha, mas estão os dois na sala. Expressando conformidade e sobriedade afetadas, mas mesmo assim pesadas, mesmo para uma cena cômica, esse pai e essa filha, de 12 anos, concluem, juntos: "estamos mortos, agora mais próximos do criador". É aí que entra o faxineiro da sala, trabalhador negro equipado com seus instrumentos de limpeza e com uniforme padrão, de tão padronizado quase iconográfico no imaginário americano: um daqueles macacões com a identificação do funcionário em letras simpáticas e ornamentadas, contornadas por um círculo. Lá, aliás, está escrito: "Lloyd". "So your name is Lloyd, not Lord!".

A partir daqui, segue uma encenação em duas freqüências: Lloyd, prestativo, diante de dois visitantes deslocados em horário de inatividade do complexo, tentando explicar a situação didática e pacientemente; já pai e filha, arrebatados, sobriamente conscientes da morte, espantados e encantados diante da presença divina, tateando o "grande mistério". De novo há algo de penoso, de fato desconfortável (embora inspire gargalhadas), na expressão dos Stupids diante de mecanismos prosaicos do mundo com os quais não dialogam integramente, aspecto acentuado pelo conteúdo "morte" dessa cena. Há uma tristeza, mais uma vez disfarçada pelo aparato da mise en scène, mas que ainda consegue contaminar o registro. E daí que poderíamos chamar Os Babacas de comédia grosseira (de estereótipos tratados e analisados grosseiramente) extrema, com o termo "extrema" vinculado a esse desconforto da melancolia ou da morbidez. Algo que talvez faça este filme flertar com objetos televisivos da época, ainda embrionários, como South Park, por exemplo. Muitos expedientes, estruturais ou meramente ligados à escrita das piadas, em Os Babacas se alinham, aliás, a outros de South Park, por exemplo.

O artesanato desse roteiro de cadeia é um artesanato de mentira. Ele soa propositalmente frágil, talvez como nunca na carreira de Landis. O enredo e suas chaves de evolução soam como uma piada em si mesma, num sistema de eventos ridiculamente coordenado: o jogo aqui é assumido. Esse roteiro parece se articular apenas para que algumas situações e desenvolvimentos possam se configurar, fertilizando o terreno para que Landis trafegue, brinque em pequenas centrais cênicas de acabamento e tonalidade francamente trash, cutuque o exército (militares americanos carrancudos e caricaturais vendem armas para corporações estrangeiras do crime) e demais instituições americanas, incluindo a televisão americana e os estereótipos e mitos da imagem fabricados ou conservados por ela (não é à toa que a bússola de Landis na confecção de boa parte disto aqui será o contato com os ícones e estereótipos cooptados ou reciclados, como imagem, por essa célula cultural americana, desde o faxineiro negro uniformizado, aliás). Há itens colocados da forma mais grotesca (forçadamente grotesca), como por exemplo uma dupla de ETs, muito parecida com aquela de Os Simpsons que eventualmente visita Springfield, o que seria já um exercício em reprodução do formato "ETs no audiovisual americano". São no entanto digitais, como os bichos de estimação, e parecem dar as caras no filme apenas para que, no final, sejam incinerados sem querer por Stanley, que utiliza seu equipamento de churrasco no jardim (outro item estereotipado).

O filme na verdade é composto por pequenos mundos e "aplicações" cênicas (descartáveis, tudo no filme parece aliás exalar esse odor descartável) e a mais interessante é sem dúvida a da televisão, onde parece que o filme vai encontrar a si mesmo, lá dentro, naquele mundo à parte. Aqui, Landis parece chegar a um tema valorizado em toda a sua cinematografia: a sabotagem - sobretudo a sabotagem de mecanismos padronizados e ordenados de uma cultura, por essa cultura, para consumo e manutenção de seus extratos (no caso a americana). Se Landis está interessado, em relação a essa cultura, em observar como algumas de suas células se constituem e implodem (universidade, em Clube dos Cafajestes, mais ou menos tudo, incluindo um shopping center, em Os Irmãos Cara-de-Pau), ou observar quase que biologicamente seu funcionamento, como se estivéssemos em uma selva, experimentando choques que se engendram a partir de uma série de vetores sociais próprios dela (Príncipe em NY), em Os Babacas Landis usa exatamente o que seria, em estereótipo, algo totalmente americano (essa família Stupids) para se infiltrar em - e sabotar - um pequeno tecido cultural. No caso a TV, onde a família participará ativamente da arquitetura da imagem americana, no interior físico de seus departamentos, em seus nervos. É uma ironia, se os Stupids, dentro de seu universo de imagem, remetem a um milhão de estereótipos e figuras televisivas, modeladas no cardápio americano dos últimos 50 anos, que teriam sofrido aqui mutação ou reprocessamento.

Como tudo nesse filme, há uma deliberada inconseqüência nessa operação, um sentido gratuito de encenação e abordagem que se ao mesmo tempo a torna, à primeira vista, pouco vigorosa, é o que faz dela mais política. Landis filma como se estivesse preocupado não em atingir alguém, danificar a estrutura, mas "tirar um barato", fazer troça juvenil, tocar a campainha e sair correndo (não só na TV, mas em outros "apartamentos" também, o exército é um deles) e talvez por isso o comentário se torne mais contundente.

Trata-se de Stanley Stupid "invadindo", com a família, um canal de TV e brincando com os controles do equipamento de aplauso. Eles passam a controlar o fluxo de "acende" e "apaga" do brinquedo, orquestrando assim cada movimento do público, o que gera uma espécie de revolta hipnotizada e zumbi da platéia, sorridente, que se encontra no estúdio. Assim, essa platéia, de omissa massa de reações previsíveis converte-se em instância que estaria diabolicamente manipulando o batimento do programa gravado: um programa no qual a entrevistada, desesperada com a situação, seria um desses estereótipos americanos loiros de alguma série de praia e mar.

Essa seqüência, como comentário, pode aproximar este filme de Rede de Intrigas, de Sidney Lumet: há uma "revolução", uma insurreição, da platéia, via aplausos ou manifestações canônicas radicais, que, mesmo dentro dos circuitos do filme (no caso, dos dois filmes), na verdade só revela como ela pode ser manipulada e convocável. Na verdade, Landis aqui trava diálogo também com Spike Lee, na pesquisa do imaginário americano e de seus estereótipos através de penetração, reutilização e envenenamento de seus próprios dispositivos (e ambientes) de transmissão (Garota 6, A Hora do Show, filme que se passa aliás sempre entre paredes, "estúdios" e "salas de reunião", sobretudo as da corporação televisiva).

Logo depois Stanley cai em outro estúdio e participa de um desses programas "qual é a sua desgraça?", semente americana para produtos como Márcia Goldschmidt no Brasil, e, no improviso, solta: "Eu sou meu próprio avô". Segue musiquinha alegre, em que Stanley (aqui, claramente o filme passa a ser de e para Tom Arnold, comediante americano com origem na TV que interpreta o personagem) elucida, por meio dos versos, uma rede de anomalias e cruzamentos familiares que determina o fato de ele ser "seu próprio avô". Aqui, é Stanley se fundindo, ou retornando, a esse mundo à parte da TV americana e de seus estereótipos e aberrações, já que esse evento surreal é lido com total sincronia entre aparatos de filmagem e edição da TV, platéia, apresentadora e o próprio personagem.

Os Babacas é esse filme disfuncional e quase ofensivo (assumidamente assim) em sua estratégia cênica do bizarrismo e do desapego a códigos estruturais (para Landis, talvez só seria possível se infiltrar em ambientes como a TV americana dessa forma). Aliás, nesse aspecto estrutural o filme emula uma TV: Landis parece se deslocar entre vários canais, pular de um para outro. Um filme triste, por baixo de suas camadas. Se não é um Landis essencial, parece servir como um "descarregar" estilístico e, sobretudo, um desafio em cenas isoladas, se a unidade é um aspecto dinamitado logo de partida aqui (é o jogo). Um desafio completado na maior parte das vezes, diga-se.

Claudio Szynkier