OS ESPIÕES QUE ENTRARAM NUMA FRIA
John Landis, Spies Like Us, EUA, 1985

Dr. StrangeReagan

Ainda no início de Os Espiões Que Entraram Numa Fria, antes mesmo de termos todo o entrecho claro a partir das informações fornecidas pelo filme, John Landis cria algo que bem poderíamos chamar de "alívio conceitual". No espaço de dois cortes bastante rápidos temos na tela as imagens imponentes das estátuas de Abraham Lincoln e George Washington, com o particularmente irônico acompanhamento na banda sonora de I'll be Loving You, música interpretada por Virginia Mayo e Gene Nelson no filme She's Working Her Way Through College (que conta no seu elenco com a presença de... Ronald Reagan). O corte seguinte abandona sem qualquer tipo de cuidado as ilustres presenças (ainda mais ilustres se considerarmos que se encontram no que é a princípio um veículo para dois dos comediantes norte-americanos de maior ascensão da década de 80) de dois dos mais importantes governantes norte-americanos em favor de um plano do prédio do Departamento de Estado Norte-Americano. Acerca do enquadramento que dá conta da abominação arquitetônica que é este prédio (algo como uma enorme caixa de sapatos expandida a proporções assustadoras) poderíamos escrever um ensaio: o emprego francamente grosseiro da lente grande angular; a posição que um grupo de árvores secas ocupam na lateral direita do quadro; um sentido geral de assimetria que beira o mau-gosto, obtido principalmente pela perspectiva deformada que o prédio forma ao ocupar uma ponta à outra do enquadramento; elementos cênicos que herdam diretamente do dantesco (árvores secas, céu ausente de sol, carros que parecem banheiras); o efeito de tudo isso no olhar do espectador... Enfim, o que Landis está de fato querendo mostrar? Que o prédio do Departamento de Estado Norte-Americano é um correlato da Mansão Bates de Psicose (e que conseqüentemente a América estava sendo governada por um psicopata no ano de 1985)? Que a perspectiva formada a partir do espaço do prédio equivale à agressão que a política gerada por este Departamento de Estado causa ao provável espectador deste filme? Tamanho é o choque causado por este plano – presente não mais do que 3 segundos no filme – que em meio aos eventos e informações que o antecedem e o procedem no fluxo narrativo do filme o espectador nada tem a fazer senão tomar uma posição defensiva. E não é realmente estranho que Landis procure provocar esse tipo de reação: é defensivamente que os protagonistas do filme reagirão à missão secreta que lhes é posta em mãos, e é da mesma forma que o diretor lida com o material que precisa filmar.

Toda a inteligência de Landis está na inclusão deste plano ("intrusão" parece uma opção igualmente feliz de descrição): jamais a opção pelo qualquer efeito, em oposição ao grosso do que se vê na comédia norte-americana atual, e sim a escolha do efeito fácil. O enquadramento é grosseiro; os elementos visuais da cena não casam; o diretor quer que a existência de um Departamento de Estado do qual um Chevy Chase é o porta-voz incomode o espectador a curto e a longo prazo na narrativa; então por que não simplesmente introduzir a presença deste Departamento – que afinal de contas tanto importa ao filme – através do objeto visual particularmente pavoroso que é o prédio que o abriga? Trata-se de um procedimento grosseiro apenas na mesma medida em que é também efetivo – quando vemos Chevy Chase na hilária cena de coletiva à imprensa ou percebemos a presença (sempre incômoda) de uma foto de Ronald Reagan no gabinete de algum figurão ou na minúscula mesa do mais desprezível tecnocrata (sim, obviamente interpretado por Dan Aykroyd) é quase impossível não retornar à imagem do abominável prédio do Departamento de Estado. Um ponto é feito com este plano aparentemente descuidado e boçal – por conta do diretor ter escolhido o momento certo de sua inclusão, da função estrutural que lhe acaba sendo relegada, da gag que ajuda a compor, do impacto que causa no espectador. A isso chamamos de mise en scène, e tendo feito o dever de casa Landis pode recorrer mesmo à ausência deste plano quando bem desejar para obter resultados cômicos. A isso chamamos de uma mise en scène cômica.

Ainda ao som de I'll be Loving You Landis prossegue com seu pequeno tour (de force) através dos ambientes que compreendem o supra-sumo da inteligência organizacional norte-americana. Um movimento de câmera banal nos tira da enorme placa que identifica o prédio do Departamento para uma câmera de vigilância. No instante seguinte estamos no hall de entrada do prédio; um corte bastante seco – tão seco quanto a lógica de comentário visual que Landis está empregando aqui – destaca a presença de uma foto enorme do então presidente Ronald Reagan. Ao som do beijo de Virginia Mayo, um carimbo deixa a sua marca de "Prioridade" num papel; é desta forma que somos introduzidos ao universo aparentemente nada prioritário de um escritório repleto de burocratas... Ou, em outras palavras, apenas somos finalmente introduzidos ao ponto-de-vista-Landis das coisas: o que esse escritório significa e o que os trabalhadores deste governo são obviamente passam pelo crivo de uma sensibilidade bastante peculiar. Uma vez feito o trabalho ontológico (procurar no real ao qual o filme se refere os indícios da ficção que o filme propõe-se a instituir) começa a criação de um recito. Podemos finalmente vislumbrar o campo da ficção pois, obviamente, a linha "comentário grosseiro" que Landis estava a seguir nada mais era que o documento necessário, as evidências recolhidas aqui e ali da ficção que ele pode factual e realmente estabelecer, concatenar, constituir.

A câmera circula um tanto indecisa, encontrando funcionários que como baratas tontas circulam nas mais diversas direções pelo escritório; no teto uma sucessão de lâmpadas fluorescentes encontram-se dispostas sem qualquer tipo de coerência geométrica ou geográfica, jamais sugerindo uma trilha, um caminho ou mesmo um padrão visual coerente que o filme possa seguir (o que faz pleno sentido num filme que justapõe num de seus planos um deserto e uma série de montanhas nevadas). O caos está estabelecido mais do que definitivamente, pois afinal de contas a) é 1985 e Ronald Reagan é presidente dos Estados Unidos e b) Chevy Chase é um diplomata que com a parceria de Dan Aykroyd é escolhido pelo serviço secreto norte-americano para realizar um trabalho de espionagem na União Soviética. Nada melhor então que a introdução do personagem de Chase para entendermos onde Landis quer chegar com tudo isso: com os pés na mesa de trabalho e um fone em seus ouvidos ele assiste numa televisão a... She's Working Her Way Through College, divertindo-se com o número musical que transcorre no monitor. Na cena que Chase assiste Virginia Mayo e Gene Nelson estão numa sala de aula, sentados à mesa do professor. Prestes a se beijar, a figura do professor surge por detrás deles e galhardamente os separa. Quem é o professor que separa os amantes no momento do beijo? Sim: Ronald Reagan. Estranha operação essa: fazer a música finalmente casar-se com a imagem apenas para ver o matrimônio ser rapidamente interrompido, e por Ronald Reagan. O que exatamente Landis está querendo dizer com isso?

Sabe-se que Landis é um grande fã de Kubrick, influência especialmente importante em Os Babacas, no episódio de Além da Imaginação e Um Lobisomem Americano em Londres. Não é de se estranhar portanto que Os Espiões Que Entraram Numa Fria herda fundamentalmente de Dr. Fantástico: os militares paranóicos, os imbecis responsáveis pela III Guerra Mundial, a ameaça atômica, os resquícios da Guerra Fria, o humor bastante ácido... É um fato bem visível, facilmente perceptível. Mas Landis não é um maneirista bobo que utiliza de uma matéria preexistente apenas para satisfazer suas vontades de estudante de cinema, e portanto a operação realizada aqui complica um aspecto importantíssimo do filme de Kubrick. Pois quem afinal é o Dr. Strangelove no filme de Landis? Nem Chevy Chase nem Dan Aykroyd, por mais que funcionem admiravelmente como alívios cômicos; nem o militar interpretado por Steve Forrest (muito mais próximo do personagem de Sterling Hayden) nem os figurões do governo interpretados por Bruce Davison e William Prince (que lembram de certa forma o personagem interpretado por George C. Scott no filme de Kubrick).

Não, o dr. aqui não pode ser ninguém senão o próprio Ronald Reagan. Algo por sinal estranhamente coerente se lembrarmos que no filme de Kubrick o presidente dos Estados Unidos e o dr. Strangelove do título original eram ambos interpretados por Peter Sellers. Em um só tempo Reagan é o ator da comédia musical dos anos 50 e o presidente dos Estados Unidos na década de 80, repetindo portanto a façanha de Sellers e interpretando dois papéis no filme de Landis. A subversão de Landis – para com a figura de Reagan, o filme de Kubrick, os momentos históricos que separam Reagan de Kubrick e Landis de ambos, a declaração política que ele tenta realizar em meio ao material de slapstick mais primário – é fazer vazar a influência de um filme para dentro de outro (toda a razão de se travar um conflito entre duas imagens históricas tão diferentes quanto She's Working Her Way Through College e Dr. Fantástico) e assim refletir o fato de que o humor aqui produzido se infiltra e mesmo determina muito do conteúdo político e ideológico de seu filme, feito aliás em forma de superprodução para um grande estúdio e como veículo para dois comediantes em ascensão.

O que exatamente Landis está querendo dizer com tudo isso? É Ronald Reagan quem impede o beijo entre Virginia Mayo e Gene Nelson – claramente um ato político se já houve um –, e de certa forma a tarefa que Landis relega a Chase e Aykroyd é a de recuperarem em algum momento o beijo como ato político. Pois a missão, o percurso travado pelos dois "espiões" – enfrentar um absurdo treinamento para espiões; atravessar os desertos do Paquistão, do Afeganistão e as montanhas gélidas da União Soviética – nada mais é que uma enorme sucessão de situações cômicas com as quais Landis desafia (põe em jeopardy) seus dois protagonistas para que estes anseiem por um momento que precisa ser retomado desde o início, de tal forma que ninguém – principalmente Reagan – possa impedir. É no final que temos a conclusão de toda a jornada caótica que testemunhamos: num encontro de paz entre União Soviética e EUA onde as delegações dos dois países nada fazem senão jogar uma partida de Jeopardy Aykroyd, agente do governo americano, dá um beijo de consolação em Vanessa Angel, agente do governo russo. Pois obviamente os russos perderam uma rodada de perguntas de um jogo que afinal de contas é norte-americano. Não se trata apenas desta ser uma das melhores metáforas sobre o que foi a Perestroyka mas de ser uma resposta, uma alternativa ao beijo interrompido por Reagan. É neste momento que Reagan dá lugar a Strangelove, e é quando Landis mais uma vez dá uma amostra de sua peculiar política: o slapstick.


Bruno Andrade