Da Brecha
Desde A Hora do Show, Spike Lee entrou num
período especialmente fértil de sua filmografia.
Tratou-se menos de algum tipo de virada em sua obra
– já que não apresentou nenhuma grande
mudança temática ou estética –
do que de uma espécie de reafirmação
de objetivos acompanhada de uma lucidez e concentração
que apenas ocasionalmente se apresentava com tanta eficácia.
Talvez por conta disso, mais do que nunca, com seus
três longas de ficção recentes (neste
período bastante criativo ele dirigiu ainda pelo
menos dois registros de performance, um documentário
e um curta-metragem), Lee tem se disposto a radiografar
a sociedade americana contemporânea. Em She
Hate Me, sai de cena o tom mais contemplativo visto
em A Última Noite e retornamos ao confronto
direto de A Hora do Show (não é
à toa que o filme está vindo direto para
o vídeo, depois de ser tratado como um estorvo
pelo seu distribuidor americano). O próprio Lee
explicita a relação com o filme anterior,
ao inserir uma cena bastante gratuita bem no começo,
em que o protagonista chega atrasado numa reunião
que é praticamente idêntica à que
existe naquele.
She Hate Me começa com uma montagem sobre
notas de dólares que após algum tempo
começam a valorizar a imagem de sucessivos ex-presidentes
americanos até se concluir, num tom cômico,
com uma inexistente nota de três dólares
com a face George W. Bush e um carimbo da Enron (a corporação
que estourou o primeiro grande escândalo do atual
governo americano). Em outros filmes, uma seqüência
de créditos como está serviria para expor
o que vai ser ilustrado nas pouco mais de duas horas
seguintes, mas aqui ela apenas serve para indicar qual
foi o ponto de partida do cineasta. Como em todos os
filmes de Lee, há uma tensão entre um
mundo artificial e fantasioso que ele constrói,
e os discursos e dilemas inseridos lá dentro,
que nunca deixam de nos ter como ponto de referência.
Esta abordagem é responsável por muito
da confusão com que os filmes de Lee são
freqüentemente recebidos. Todos os apartamentos
de She Hate Me são mobiliados da mesma
maneira e quase toda a ação é inverossímil
(Anthony Mackie consegue engravidar de primeira cinco
mulheres na mesma noite três vezes!), mas os sentimentos
de Spike Lee em relação ao seu material
nunca deixam de ser concretos. Pouco se menciona, mas
Lee é profundamente marcado por jornalismo. Seus
filmes sempre se assemelham a um jornal em que é
preciso cobrir diversos temas ao mesmo tempo; mesmo
as narrativas mais centradas, como Ele Joga Muito
e A Última Noite, se beneficiam das digressões
e pequenas sub-tramas. Há, aqui, a história
sobre a corrupção numa grande corporação
e a investigação governamental que se
segue, a do homem que engravida lésbicas ricas
para manter o padrão de vida e a de um universo
de imagens estereotipadas que surgem na mídia.
Isto sem contar digressões como as cenas envolvendo
as dificuldades do pai (Jim Brown) com diabetes e a
inspiradíssima passagem sobre o segurança
que fez a ligação de Watergate. A sub-trama
em que Mackie engravida lésbicas por dinheiro
acaba se tornando o centro do filme (mesmo que a narrativa
seja organizada pela parte sobre corporações)
porque permite que Lee trate ao mesmo tempo sobre corrupção,
família e as tais imagens estereotipadas, o que
gera um curioso e conflitante acúmulo de significações.
Ao mesmo tempo, como em todos os outros trabalhos do
cineasta, há um mural de discursos diversos,
que procuram chamar a atenção para si
mesmos, freqüentemente contrastantes. Neste sentido,
os filmes de Lee são bastante similares aos que
Jean-Luc Godard realizou no fim dos anos 60 e início
dos 70: uma série de discursos é apresentada
de forma por vezes quase didática (Todos a
Bordo é o exemplo máximo disso, já
que praticamente se assume como filme-aula). Pode-se
até perceber uma maior ou menor simpatia de Lee
pelos seus diversos ideólogos, mas o filme jamais
assume de vez qualquer ponto de vista, algo muito dado
à relação complicada que Lee mantém
com a retórica ideológica (que o fascina
à mesma medida que o repele). Ao final de She
Hate Me, seu protagonista (numa posição
rara num filme de Lee) tem a oportunidade de resolver
todos os seus problemas, o que o cineasta contrapõe
ao realizar o final numa chave fantasiosa e ao embarcar
nele tanto suas tendências mais progressistas
quanto as mais conservadoras. Ninguém vai, portanto,
achar qualquer resposta em She Hate Me; o filme
nos dá um painel bem amplo da irritação
do seu autor para com muito da História recente
do seu país, mas apresenta pouco em termos de
conclusão e/ou saída. Lee claramente partiu
para o projeto com interesse de irritar. Diz muito sobre
isso que, ao contrário dos demais filmes americanos
do ano passado que colocavam o panorama político
do país em destaque, She Hate Me jogue
bombas tanto em republicanos quanto democratas (e chegue
no seu clímax numa audiência no Senado
onde todos os senadores pareçam idênticos).
O cinema de Spike Lee se constrói nesta encruzilhada
entre um variado universo de temas e um ainda mais variado
universo de discurso sobre eles. Tudo o que ele diz
(e é sempre muito) surge por meio das brechas
que se abrem pelo conflito destes elementos todos. Dito
tudo isso, She Hate Me é um dos melhores
trabalhos do cineasta. Quem mais nos daria uma farsa
sexual sobre ganância corporativa? E melhor: ainda
fazendo a coisa toda funcionar de forma que cada elemento
termine por iluminar os outros. A montagem do filme
é especialmente feliz com suas mudanças
radicais de tom (é impressionante como Lee parece
seguro do que quer aqui; ele deixa narrativa em último
plano a ponto de ser visível que certas seqüências
no filme foram tiradas da ordem lógica para alcançar
um efeito desejado pelo cineasta). No meio do filme
há um momento bastante feliz quanto ao tipo de
troca entre suas diversas esferas que a abordagem de
Lee permite. São três seqüências
colocadas em filas:
1) Anthony Mackie conversa com o irmão sobre
seu negócio com as lésbicas e, no que
será o estopim da posterior crise da consciência
do protagonista, recebe um grande puxão de orelhas,
especialmente porque o irmão fica horrorizado
com a idéia das mulheres serem lésbicas.
2) A primeira (e única) incursão do filme
à intimidade da ex-noiva de Mackie (Kerry Washington)
e sua atual namorada. Momento privilegiado em que o
diretor suprime a farsa e permite que o casal de lésbicas
exista sem o exagero com que são pintadas no
resto do filme.
3) Mackie acompanha um amigo (Q-Tip) numa visita a uma
empresa de inseminação artificial, onde
o amigo precisa fazer os testes para descobrir se é
ou não um possível doador.
Dentro destas três seqüências passeiam
todo um universo de percepções sobre as
diferentes temáticas do filme, e Lee as mantém
sempre complicadas. Alguém poderia dizer que
a cena íntima entre as lésbicas depois
dos comentários homofóbicos do irmão
estão lá apenas para negá-los,
mas são estes mesmos comentários que afetam
a maior parte das ações de Mackie a partir
daquele ponto, sendo que os comentários do irmão
sobre o excesso de mães solteiras na comunidade
negra é obviamente levado bastante a sério
pelo cineasta. Claro que mães lésbicas
que decidiram criar os filhos sozinhas e mães
hetero que foram abandonadas pelos parceiros são
duas coisas muito distintas, mas a forma como o filme
as colide abre espaço para uma ambigüidade
vital para o final funcionar.
Não surpreende que alguns dos momentos mais importantes
são aqueles em que o filme parece estar simplesmente
tomando um desvio. Assim, a seqüência sobre
Watergate com seu senso de ultraje e absurdo crescente
termina por funcionar como o coração do
filme. Da mesma forma como o desvio pela máfia
italiana e a imitação de John Turturro
do Marlon Brando de O Poderoso Chefão
seja o ponto em que o filme deixa mais claro para que
veio. Estamos num universo de imagens mercantilizadas,
de estereótipos para consumo rápido. Turturro
reclama do lado poser dos rappers enquanto
ele mesmo está fazendo uma operação
mimética que tem menos a ver com gangsteres do
que com uma imagem romantizada que o cinema construiu
deles. O filme todo é construído sobre
figuras clichês do cientista alemão: da
imitação de Martha Stewart da Ellen Barkin
ao negro bem dotado que funciona como objeto sexual,
passando pela parada variada de lésbicas. Que
o filme comece com um plano não do jovem executivo
negro bem sucedido, mas do seu amigo que aparenta ser
alguma espécie de estagiário subalterno
indo buscar café para o patrão, certamente
não é acidente. As imagens aqui tentam
se apresentar sempre dentro de uma calculada banalidade
auto-explicativa que simplifica as situações,
só que Lee as insere dentro de um contexto que
sabota o processo. Se a maior parte dos personagens
do Lee acredita – erroneamente – que tudo sabe, aqui
eles são ávidos consumidores de imagens
que confirmam este estado das coisas: elas ajudam a
estabelecer a crise ética e familiar que está
no centro das preocupações de Lee ao confirmar
um estado de complacência. Estas imagens querem
ser donas da narrativa, nos apontar para onde e para
o que olhar, mas Lee procede por sabotá-las.
Logo no começo, quando o alemão se suicida,
vemos ele cair por sobre a barraca de um vendedor de
rua; nenhum dos personagens parece notar (e, a julgar
pelos artigos que saíram, nenhum dos críticos),
mas o corpo morto do vendedor está por baixo
dele, o que Lee nos revela num close rápido,
e a cena logo depois retorna ao seu andar normal com
aquela morte sem importância (afinal, o
corpo não pertence a um personagem integrado
à narrativa) sendo esquecida. Colocadas no meio
do conflito, no tom passional-exagerado que Lee impõe,
estas imagens se implodem dando lugar ao filme que existe
na intersecção de todos estes elementos.
Filipe Furtado
(DVD/VHS
Columbia)
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