ELAS ME ODEIAM MAS ME QUEREM
Spike Lee, She Hate Me, EUA, 2004

Da Brecha

Desde A Hora do Show, Spike Lee entrou num período especialmente fértil de sua filmografia. Tratou-se menos de algum tipo de virada em sua obra – já que não apresentou nenhuma grande mudança temática ou estética – do que de uma espécie de reafirmação de objetivos acompanhada de uma lucidez e concentração que apenas ocasionalmente se apresentava com tanta eficácia. Talvez por conta disso, mais do que nunca, com seus três longas de ficção recentes (neste período bastante criativo ele dirigiu ainda pelo menos dois registros de performance, um documentário e um curta-metragem), Lee tem se disposto a radiografar a sociedade americana contemporânea. Em She Hate Me, sai de cena o tom mais contemplativo visto em A Última Noite e retornamos ao confronto direto de A Hora do Show (não é à toa que o filme está vindo direto para o vídeo, depois de ser tratado como um estorvo pelo seu distribuidor americano). O próprio Lee explicita a relação com o filme anterior, ao inserir uma cena bastante gratuita bem no começo, em que o protagonista chega atrasado numa reunião que é praticamente idêntica à que existe naquele.

She Hate Me começa com uma montagem sobre notas de dólares que após algum tempo começam a valorizar a imagem de sucessivos ex-presidentes americanos até se concluir, num tom cômico, com uma inexistente nota de três dólares com a face George W. Bush e um carimbo da Enron (a corporação que estourou o primeiro grande escândalo do atual governo americano). Em outros filmes, uma seqüência de créditos como está serviria para expor o que vai ser ilustrado nas pouco mais de duas horas seguintes, mas aqui ela apenas serve para indicar qual foi o ponto de partida do cineasta. Como em todos os filmes de Lee, há uma tensão entre um mundo artificial e fantasioso que ele constrói, e os discursos e dilemas inseridos lá dentro, que nunca deixam de nos ter como ponto de referência. Esta abordagem é responsável por muito da confusão com que os filmes de Lee são freqüentemente recebidos. Todos os apartamentos de She Hate Me são mobiliados da mesma maneira e quase toda a ação é inverossímil (Anthony Mackie consegue engravidar de primeira cinco mulheres na mesma noite três vezes!), mas os sentimentos de Spike Lee em relação ao seu material nunca deixam de ser concretos. Pouco se menciona, mas Lee é profundamente marcado por jornalismo. Seus filmes sempre se assemelham a um jornal em que é preciso cobrir diversos temas ao mesmo tempo; mesmo as narrativas mais centradas, como Ele Joga Muito e A Última Noite, se beneficiam das digressões e pequenas sub-tramas. Há, aqui, a história sobre a corrupção numa grande corporação e a investigação governamental que se segue, a do homem que engravida lésbicas ricas para manter o padrão de vida e a de um universo de imagens estereotipadas que surgem na mídia. Isto sem contar digressões como as cenas envolvendo as dificuldades do pai (Jim Brown) com diabetes e a inspiradíssima passagem sobre o segurança que fez a ligação de Watergate. A sub-trama em que Mackie engravida lésbicas por dinheiro acaba se tornando o centro do filme (mesmo que a narrativa seja organizada pela parte sobre corporações) porque permite que Lee trate ao mesmo tempo sobre corrupção, família e as tais imagens estereotipadas, o que gera um curioso e conflitante acúmulo de significações.

Ao mesmo tempo, como em todos os outros trabalhos do cineasta, há um mural de discursos diversos, que procuram chamar a atenção para si mesmos, freqüentemente contrastantes. Neste sentido, os filmes de Lee são bastante similares aos que Jean-Luc Godard realizou no fim dos anos 60 e início dos 70: uma série de discursos é apresentada de forma por vezes quase didática (Todos a Bordo é o exemplo máximo disso, já que praticamente se assume como filme-aula). Pode-se até perceber uma maior ou menor simpatia de Lee pelos seus diversos ideólogos, mas o filme jamais assume de vez qualquer ponto de vista, algo muito dado à relação complicada que Lee mantém com a retórica ideológica (que o fascina à mesma medida que o repele). Ao final de She Hate Me, seu protagonista (numa posição rara num filme de Lee) tem a oportunidade de resolver todos os seus problemas, o que o cineasta contrapõe ao realizar o final numa chave fantasiosa e ao embarcar nele tanto suas tendências mais progressistas quanto as mais conservadoras. Ninguém vai, portanto, achar qualquer resposta em She Hate Me; o filme nos dá um painel bem amplo da irritação do seu autor para com muito da História recente do seu país, mas apresenta pouco em termos de conclusão e/ou saída. Lee claramente partiu para o projeto com interesse de irritar. Diz muito sobre isso que, ao contrário dos demais filmes americanos do ano passado que colocavam o panorama político do país em destaque, She Hate Me jogue bombas tanto em republicanos quanto democratas (e chegue no seu clímax numa audiência no Senado onde todos os senadores pareçam idênticos).

O cinema de Spike Lee se constrói nesta encruzilhada entre um variado universo de temas e um ainda mais variado universo de discurso sobre eles. Tudo o que ele diz (e é sempre muito) surge por meio das brechas que se abrem pelo conflito destes elementos todos. Dito tudo isso, She Hate Me é um dos melhores trabalhos do cineasta. Quem mais nos daria uma farsa sexual sobre ganância corporativa? E melhor: ainda fazendo a coisa toda funcionar de forma que cada elemento termine por iluminar os outros. A montagem do filme é especialmente feliz com suas mudanças radicais de tom (é impressionante como Lee parece seguro do que quer aqui; ele deixa narrativa em último plano a ponto de ser visível que certas seqüências no filme foram tiradas da ordem lógica para alcançar um efeito desejado pelo cineasta). No meio do filme há um momento bastante feliz quanto ao tipo de troca entre suas diversas esferas que a abordagem de Lee permite. São três seqüências colocadas em filas:

1) Anthony Mackie conversa com o irmão sobre seu negócio com as lésbicas e, no que será o estopim da posterior crise da consciência do protagonista, recebe um grande puxão de orelhas, especialmente porque o irmão fica horrorizado com a idéia das mulheres serem lésbicas.

2) A primeira (e única) incursão do filme à intimidade da ex-noiva de Mackie (Kerry Washington) e sua atual namorada. Momento privilegiado em que o diretor suprime a farsa e permite que o casal de lésbicas exista sem o exagero com que são pintadas no resto do filme.

3) Mackie acompanha um amigo (Q-Tip) numa visita a uma empresa de inseminação artificial, onde o amigo precisa fazer os testes para descobrir se é ou não um possível doador.

Dentro destas três seqüências passeiam todo um universo de percepções sobre as diferentes temáticas do filme, e Lee as mantém sempre complicadas. Alguém poderia dizer que a cena íntima entre as lésbicas depois dos comentários homofóbicos do irmão estão lá apenas para negá-los, mas são estes mesmos comentários que afetam a maior parte das ações de Mackie a partir daquele ponto, sendo que os comentários do irmão sobre o excesso de mães solteiras na comunidade negra é obviamente levado bastante a sério pelo cineasta. Claro que mães lésbicas que decidiram criar os filhos sozinhas e mães hetero que foram abandonadas pelos parceiros são duas coisas muito distintas, mas a forma como o filme as colide abre espaço para uma ambigüidade vital para o final funcionar.

Não surpreende que alguns dos momentos mais importantes são aqueles em que o filme parece estar simplesmente tomando um desvio. Assim, a seqüência sobre Watergate com seu senso de ultraje e absurdo crescente termina por funcionar como o coração do filme. Da mesma forma como o desvio pela máfia italiana e a imitação de John Turturro do Marlon Brando de O Poderoso Chefão seja o ponto em que o filme deixa mais claro para que veio. Estamos num universo de imagens mercantilizadas, de estereótipos para consumo rápido. Turturro reclama do lado poser dos rappers enquanto ele mesmo está fazendo uma operação mimética que tem menos a ver com gangsteres do que com uma imagem romantizada que o cinema construiu deles. O filme todo é construído sobre figuras clichês do cientista alemão: da imitação de Martha Stewart da Ellen Barkin ao negro bem dotado que funciona como objeto sexual, passando pela parada variada de lésbicas. Que o filme comece com um plano não do jovem executivo negro bem sucedido, mas do seu amigo que aparenta ser alguma espécie de estagiário subalterno indo buscar café para o patrão, certamente não é acidente. As imagens aqui tentam se apresentar sempre dentro de uma calculada banalidade auto-explicativa que simplifica as situações, só que Lee as insere dentro de um contexto que sabota o processo. Se a maior parte dos personagens do Lee acredita – erroneamente – que tudo sabe, aqui eles são ávidos consumidores de imagens que confirmam este estado das coisas: elas ajudam a estabelecer a crise ética e familiar que está no centro das preocupações de Lee ao confirmar um estado de complacência. Estas imagens querem ser donas da narrativa, nos apontar para onde e para o que olhar, mas Lee procede por sabotá-las. Logo no começo, quando o alemão se suicida, vemos ele cair por sobre a barraca de um vendedor de rua; nenhum dos personagens parece notar (e, a julgar pelos artigos que saíram, nenhum dos críticos), mas o corpo morto do vendedor está por baixo dele, o que Lee nos revela num close rápido, e a cena logo depois retorna ao seu andar normal com aquela morte sem importância (afinal, o corpo não pertence a um personagem integrado à narrativa) sendo esquecida. Colocadas no meio do conflito, no tom passional-exagerado que Lee impõe, estas imagens se implodem dando lugar ao filme que existe na intersecção de todos estes elementos.

Filipe Furtado

(DVD/VHS Columbia)