Even
better than the real thing
Houve um tempo em que o cinema era o grande parâmetro
para comentários sobre o mundo em que vivemos.
A televisão, com seu contato íntimo com
os espectadores, diário e constante, parece ter
se apossado deste posto, lá em algum momento
da década de 50. Suas encenações
dramatúrgicas of everyday life e os noticiários
que comentam diretamente os acontecimentos "importantes"
do mundo ocuparam o lugar das grandes construções
dramáticas e das informações noticiadas
pelo rádio. Mas alguma coisa a mais deve ter
acontecido aí. A vida parece ter se rarefeito
nas imagens veiculadas por ondas eletromagnéticas.
Quando, ao discutirem sua relação, Max
Schumacher diz a Diana Christensen que "isto não
é seu programa de televisão, isto é
a vida real", talvez seja precisamente isso que
ele esteja dizendo. A televisão, além
da grande maleabilidade e extremas constância
e rapidez concedidas à "manipulação
do real", oferecida a priori por qualquer confecção
de imagem, infiltrou-se a tal ponto na vida das pessoas,
que esta parece ter perdido um pouco de gravidade...
Como num drama barato, as voltas e reviravoltas nunca
ganham ares de serem muito sérias nem muito tristes.
A razão de tudo parece estar em algum lugar além
das pessoas e o que elas experimentam entre si, no seu
dia-a-dia. E é contra isso que se rebela Howard
Beale, nos seus discursos "sem Deus".
A princípio disposto a denunciar em cadeia nacional
a rede de interesses que o demitiu de seu posto de âncora
televisiva, ele, "dirigido" de forma interesseira
por Diana, vai bem além disso. Compreendendo
a lógica e o papel da TV de forma muito mais
ampla que a postura de Diana de promoção
de uma "contracultura" poderia supor, Beale
se entrega à TV para criticá-la, è
incorporado pelo sistema para falar mal deste. Grande
ironia. É exatamente a sede de lucro e poder
que o havia demitido que agora apóia sua revolta.
Sim, porque a revolta é marketing. Mas
não deixa de ser revolta.
Beale, a princípio, serve aos interesses de Diana
e da emissora UBS, mas, fiel a si mesmo, enlouquece,
vai além de seus limites e, sem representar,
deixa autênticas manifestações de
vida acontecerem no palco do seu programa, não
obstante toda a orquestração que o colocou
lá para esbravejar sobre o sistema e suas conspirações
internas. E curioso também é que o cinema,
com sua capacidade de fazer grandes afirmações,
seja o palco "externo" para tal manifesto,
em que Lumet tece sua própria argumentação.
Manifesto que não nega o objeto atacado, que,
ao contrário, alia-se a ele e, por compreendê-lo
tão perfeita e intimamente, é capaz de
corrompê-lo por dentro, de utilizá-lo para
atacá-lo. Mas, que, ao exigir a entrega total,
acaba incorrendo numa fagocitose. Beale é engolido.
O paradoxo profundo do qual ele era o vértice
termina por liquidá-lo. Ele morre no ar, ao vivo,
assassinado por encomenda, prosseguindo, no próprio
acontecimento da sua morte, com o caráter de
desvelamento das obscuras e nefastas organizações
que manipulam a expressão televisiva (e outras
expressões, claro). E talvez seja por isso que,
para funcionar, o manifesto de Lumet seja necessariamente
um filme e não um telefilme ou um programa jornalístico
ou uma série investigativa. Veiculado como um
produto televisivo, ele provavelmente perderia a densidade
e o impacto, dialogaria com outra produção
de saberes, outras possibilidades e condições
de construção de imagem. É da tela
grande, portanto, e apenas dela, que ele pode olhar
tão integramente para a televisão, mesmo
que não seja para demonizá-la, e, sim,
para tentar entendê-la melhor. É dessa
distância dada, das diferenças intrínsecas
entre os dois meios, que Lumet parte para tecer sua
rede de sutis paradoxos lógicos.
E talvez a lógica de todos eles esteja concentrada
no personagem de Max. Contrapartida humana do espetáculo
que Howard Beale protagoniza e do ideal de empreendedorismo
televisivo que encarna Diana, ele chama a atenção
para a "decência" e para a "realidade"
humanas, para a dor e o amor, que ele pode sentir,
para todo um espectro de matizes das atuações
humanas, distante dos roteiros, das dramaturgias e encenações
previsíveis, das esquematizações
e dos estereótipos que pautam mais comumente
a retratação dos dramas dos homens. Max
aponta para o cinema e para o papel que este definitivamente
assumiu nas décadas de 60 e 70: a atenção
às nuances de comportamentos, às sutilezas
dos sentimentos, à sensibilidade das escolhas,
à lógica de uma atuação
original e inteligente frente ao mundo. Deixa para Diana
a televisão e seus esquematismos e para Howard,
o espetáculo e sua glória, ambos refletidos
também em um certo "cinema de massas".
Desta forma, Lumet também escapa de um determinado
modelo de "filme de denúncia". Rede
de Intrigas não possui como princípio
organizador a necessidade de apontar o dedo para a televisão
e descortinar seu modus operandi sujo, embora
acabe fazendo isso em alguma medida, mas traçar
um mapa de relações humanas dentro de
um organismo, uma rede de televisão, e marcar
possíveis posicionamentos diante das problemáticas
nele surgidas.
Intrincado e pouco óbvio, o filme traça
um percurso delicado em meio às mais diversas
questões que ele articula ou apenas tangencia.
E a sensação com que ele nos deixa é
que, em relação a imagens construídas
a partir do real, a televisão é uma fantástica
fábrica de espectros que vivem tanto quanto qualquer
ser vivo e que o cinema é produtor de uma materialidade
pulsante um tanto misteriosa, por mais que nos detenhamos
em análises...
Tatiana Monassa
(VHS:
Warner)
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