Eles
e Lumet
O essencial sobre O Peso de um Passado é
o fato de o filme começar e terminar da mesma
forma. Aliás, quase da mesma forma. O que há
no começo e no fim é um movimento tático.
Um programa, acredita-se já há muito formatado,
de mobilização coordenada para a desocupação
e para a fuga. Observamos nos dois momentos, e sobretudo
no primeiro, uma certa coreografia do fugir. E quem
está fugindo é uma família: temos
um pai, uma mãe, um filho adolescente e um outro,
pirralho. "Fogem de quem, do quê?": seria a pergunta
apropriada. Na primeira fuga, são dadas para
nós as imagens que resolvem a questão.
Contornando silenciosamente o quarteirão da casa
dos McNally, alguns carros pretos. São objetos
motorizados meio fantasmagóricos. Os rostos dos
condutores são incertos, borrados, ou simplesmente
não aparecem. A família quase militarmente
monta e executa sua estratégia de fuga e dá
no pé.
Somos informados, ao longo da narrativa, que se trata
de uma família infratora, aliás, de pai
e mãe infratores. Engajados no início
da década de 70 em grupos radicais de esquerda
contra a guerra do Vietnã, colocaram um artefato
de sabotagem ou explosão em algum lugar. Ele,
judeu do Brooklyn, ela, filha de um industrial poderosíssimo,
tinham já o primeiro filho no colo, mudaram de
nome e continuaram a vida mais ou menos ligados a certas
causas, mas acima de tudo existindo como família.
Sempre fugindo "wanted" pelos Estados Unidos, em disfarces
que se modificavam sempre.
Mas voltando à conexão entre as imagens
inaugurais e aquelas que encerram O Peso de um Passado,
já no fim do filme, em que ocorre o mesmo
tipo de organização tática, não
temos a imagem sombria do perseguidor. Não temos
mais espectros negros motorizados. A família
se mobiliza sem essa, diríamos, injeção
visual do medo. Aliás, a imagem da instância
da lei, essa instância graficamente amedrontadora
e sugestiva que acossa a tal família e, supomos,
a persegue por onde vai, é abandonada pelo filme
desde a primeira fuga, desde o passeio mórbido
dos carros em torno da casa, quando é, importante
registrar, vista pelos filhos menores (e só por
eles, mas por nós também, através
de planos meio "sussurrados", como se estivéssemos,
nós mesmos, ameaçados). Nunca mais a vimos.
Mas é aí que a pergunta mais apropriada
muda. De "fogem de quem, do quê" para "Fogem com
quem?". Fogem com o gestor da imagem, com Sydney Lumet.
Porque para Lumet, no filme, não haverá
procedimento mais importante do que este. Se fechar
com câmera no regime familiar, ou em suas variações
fora da casa. Construir através do exercício
cênico o sentido de "acompanhar", em qualquer
circunstância, essa família, se limitando
ao espaço de visualização e ação
acessíveis a essas pessoas. Se a imagem da instância
que persegue nunca mais aparecerá, estará
excluída do filme, é porque Lumet entrou
nesse regime familiar e, tão acossado quanto,
tão amedrontado quanto, não saiu mais.
O fato desses agentes nunca mais aparecerem nos mostra,
ao final, que a câmera sempre esteve soldada nos
personagens em seus percursos e em seus ambientes. A
diferença do que aparece nos planos do início
e do final nos fazem compreender aonde sempre esteve
o olhar de Lumet.
Está bem claro: se o filme e a câmera começam
externamente, na observação por vezes
até meio "técnica", fria, do movimento
tático de fuga da família, O Peso de
um Passado será sobre o ato de entrar em
casa, se internar. Entrar na nova casa dessa família
– nem chegamos a conhecer a original, o lugar que os
McNally habitavam no momento em que os reconhecemos,
na partida, como personagens cuja "base" foi descoberta
em algum ponto dos EUA (aliás, não serão
mais McNally, existirão agora como os Manfield,
em uma outra cidade); entrar na nova casa e se internar
também em seu novo planejamento e fluxo de movimentos
cotidianos, pactos coletivos ou institucionais: seja
com o trabalho, com o colégio. Ou seja, O
Peso de um Passado nunca está no domínio
da "grande" história americana (sabotagem e militância
de esquerda perpetuada desde a Guerra do Vietnã),
que marca toda o esqueleto do enredo que se forma em
torno dos personagens, ou de qualquer um de seus agentes.
Se tornará uma história de vizinhança,
de província e de cotidiano familiar, escancarada
justamente pela opção de se filmar apenas
essas esferas, em seus limites.
Nesse sentido, uma das tarefas desse gestor da imagem
da família (Lumet), uma tarefa primordial, é
a captação da ambiência que se forma
no novo mundo dessas pessoas. Uma cidade perto do mar,
mas com tons verdes de bosques e pequenos recantos campestres.
Perto do raio metropolitano, mas ainda assim provinciana.
Mais perto do complexo "funcional" da cidade, o colégio,
com paredes e "olhar" (ao qual é submetido) bem
anos 80, pelo qual transitará o personagem principal
do filme, o filho mais velho, vivido por River Phoenix.
Se a mise en scène é estruturada
primeiramente na idéia de infiltração,
alienada do resto do mundo, no ciclo de convivência
e interação da família com um novo
lugar, que se registre este lugar. Que entendamos que
novo lugar é este que cerca a família,
em sua pele, em suas locações e mesmo
em sua face de engenharia cenográfica (a parte
verde, sobretudo).
Tão importante quanto o aspecto de situação
e de interação, há outro, também
fortemente nutrido por essa ambiência e pelo trânsito
de Lumet por ela. O cuidado na composição
e no contato com essa ambiência vai fazer florescer
um dos pontos mais especiais do filme, que é
o romantismo adolescente. Em chave quase Mulliganiana
(aliás, Robert Mulligan faria anos depois seu
último filme, No Mundo da Lua, que guarda
algumas semelhanças com este de Lumet), Lumet
constrói, em 1988, uma história de amor
cujo romantismo é provinciano - colorizado e
projetado por essa ambiência meio híbrida,
meio folk-paradisíaca - e também anacrônico:
tanto pela conjugação dos cenários
"abertos", nitidamente herdada de um imaginário
"antigo" de paisagens do cinema americano, incluindo
o aparato de luz que a faz se manifestar, quanto pela
inserção deste romantismo no tempo.
É um romantismo – de idilismo, doação
e convicção extremados, com uma porção
de rebeldia indômita e purificada pela leitura
de Lumet sobre os personagens de River Phoenix e da
filha de seu professor de música no colégio
- que remete certamente a "cinemas velhos"; um romantismo
que sobretudo propõe uma dimensão sentimental,
corporal e cênica desviada de "1988". Lumet parece
querer nos guiar anacronicamente, numa espécie
de "reartesanato", e, para que esse sentido
tenha função na tela, a metodologia de
processamento da ambiência, nas suas trocas com
a expressão afetiva e lírica dos personagens,
será chave.
Um grande tema aqui é exatamente o das existências
provisórias. A existência Manfield, por
exemplo. Expliquemos: ao longo de uma existência
maior, a própria vida, que pressupõe fatores
de identidade que não podem ser ludibriados intimamente,
algumas existências menores, provisórias
- engendradas exatamente para ludibriar os mecanismos
de controle sociais. A família, há anos,
cumpre o mesmo ritual, de tempos em tempos: fuga, pesquisa
em obituários, troca de nome; encontros secretos
para obtenção de novos "veículos
da família", novos documentos, roupas, nova casa,
novo animal de estimação, novo emprego;
nova formação universitária ou
colegial (um dia acorda-se como jornalista ou professor,
no outro como cozinheiro); novo cabelo, novos olhos,
novo nome.
Aqui, nesse jogo das existências o projeto de
Lumet e do roteiro trata menos da exploração
do tema da flutuação, da migração,
de identidades e muito mais do peso de se lidar e se
naturalizar com a idéia de construção,
para efeito oficial, de uma nova identidade. O filme
talvez verse sobre isso, a relação das
pessoas com esses seres novos (elas mesmas, no mais),
protocolares, sem história, mas abraçados
como portadores de alguma história a partir desse
momento; a fragilidade das pessoas (as matrizes, diríamos)
submetidas aos expedientes, duros, que envolvem essa
continuada reconstrução.
Nessa via da fragilidade e do fardo silencioso da reconstrução
da identidade, outro mérito do diretor será
o de capturar a delicadeza que envolve a idéia
de esconderijo e sobretudo a de um certo teatro do esconderijo.
Um teatro baseado em um nomadismo das relações
de vizinhança e dos laços, fadados a artificialidade,
com os estatutos da comunidade, já que há
um prazo, indeterminado, mas impreterível, envolvendo
tais laços e relações.
Assim, a dramaturgia, sobretudo aquela estabelecida
dentro da casa em que passam a viver os Manfield, se
apóia geralmente na fragilidade dos disfarces,
na fragilidade dos corpos submetidos a uma agenda de
transformações abruptas (barba, vestuário,
acessórios, como lentes ou tintas de cabelo)
e na fragilidade existencial que se origina a partir
daqui. Uma dramaturgia que parece radar de uma adaptação
constante, nunca completada. Por isso mesmo, dolorosa.
Uma dramaturgia da dor coberta (principalmente) e do
desconforto. Porém, quando bem observada, também
uma dramaturgia regulada por sentido quase otimista
de união (união quase regimentar, afinal
tem-se nela o princípio de sustentação
dessa edificação chamada família),
uma união do "ir levando juntos do jeito que
der", que no mais forma os vínculos dessa família.
E temos de notar: uma união tão sutilmente
colocada no jogo por Lumet. Pois se ela á a regulagem
da vida das pessoas na casa e do próprio jogo
dramático, é ela também geradora
do conflito maior. É o dilema de seguir junto
ou seguir com a própria vida (havendo condições
para tanto): o dilema do personagem de River Phoenix.
River Phoenix respeita o vínculo, respeita acima
de tudo a necessidade de seu papel na prolongada farsa
que rege a vida de sua família. Mas também
sente a necessidade de se fixar, criar raízes
longe da raiz, a família que depende do constante
"desenraizamento" para sobreviver.
Daí é que percebemos que nessa complicada
safra de sua carreira (certamente o período mais
baixo do diretor), Lumet estava trafegando num mesmo
terreno.
O Peso de Um Passado e Negócios de
Família, lançado um ano depois, dialogam
através da idéia da constituição
familiar "alternativa", ou anômala, não
só como modeladora dos jovens membros, mas como
destino que vai (pode) levá-los a algum tipo
de aprisionamento. São os dois filmes de Lumet
que se sustentam a partir da "história familiar",
da fidelidade ou da piedade dos mais jovens em relação
a essa história, e do preço do vínculo.
A diferença é que a engenharia de O
Peso de um Passado, embora seja inconfundivelmente
Lumet (até naquilo que há de pesado em
sua batuta), parece ter algo de especial, talvez pelo
sentimento aparente de se estar andando e fugindo por
aí com esses personagens. No caso do próprio
diretor. É, dentro de sua carreira, um dos filmes
mais ferrenhamente devotados aos personagens, ao universo
cênico e às operações dramatúrgicas
que propõe; um dos filmes mais cúmplices
de seus possíveis exageros também (uma
cena em que a família canta e dança, vestida
à caráter para uma festinha de aniversário,
James Taylor - a canção é Fire
and Rain - é de um radicalismo da ternura
quase constrangedor de tão belo) e muito provavelmente
um dos grandes filmes feitos nos Estados Unidos em 1988.
Claudio Szynkier
(DVD/VHS:
Warner)
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