O
lado b do mesmo filme
Se a maior parte da filmografia de Sidney Lumet é
escorada em conflitos éticos, vivido por personagens
com senso do "certo" e corajosos o suficiente
para se arriscar por esse senso de correção,
Negócios de Família aparenta a
princípio mostrar o lado B do universo lumetiano,
mas apenas para reafirmar de outra forma e em outra
perpectiva as mesmas obsessões autorais de outras
obras suas. Temos três gerações
protagonizando um filme de assalto e um drama de acertos
familiares. Pais e filhos de duas gerações
entram em atrito por conta da diferença entre
ilegalidade e imoralidade.
Não temos mais em cena os defensores da lei contra
os sabotadores do programa civilizatório (como
em Sérpico, Q & A, Culpado
por Suspeita), mas, sim, um pensador e militante
do crime em sua atitude política contra o capitalismo
formatador de escolhas. Por que seguir as leis se essas
defendem algo com o qual não se concorda?
Essa é a posição de Jessie (Sean
Connery), ladrão veterano, romântico e
idealista em sua marginalidade (como são os heróis
lumetianos em relação à legalidade),
que se orgulha de ser bandido e, na obra de Lumet, teria
contatos, tênues que seja, com O Príncipe
da Cidade e O Peso do Pessado. O avesso do
crime, segundo a lógica de Jessie, seria a hipocrisia
– condição de seu filho, Vito (Dustin
Hoffman), pai de Adam (Matthew Broderick), que era ladrão,
mas virou comerciante de carnes.
Temos um golpe que unirá e separará o
trio. O avô Jessie e o neto Adam planejam um roubo
de um milhão de dólares – no qual não
ferirão ninguém e ainda farão um
bem à ciência. Precisam convencer Vito
a entrar na jogada. O que está em jogo, a rigor,
não é o dinheiro. Importa mais a luta
de Jessie e Vito pela paternidade e formação
de Adam. A vantagem é do avô trambiqueiro.
Ele aproveita a crise do neto, que largou estudos de
biologia molecular para se descobrir, ou, em outras
palavras, para romper com o projeto de vida programada
– pelo pai.
De nada adiantará as palavras de alerta de seu
pai em relação à má influência
de Jessie. Quando esse entra em cena, em um tribunal,
já ouvimos sobre sua má fama. Isso não
impedirá o filme de construir a imagem do personagem
como a de um libertário não domesticado,
às vezes inconseqüente, outras um tanto
infantil, mas sempre convicto de estar fazendo a coisa
certa, sem vergonha alguma de suas opções.
Jessie é parente próximo do Ralley Sain
Clair de Os Excêntricos Tenenbaums.
A convicção de Vito, a princípio
ameaçada pelo conflito de quem está dividido
entre cumprir o que se espera de um homem de bem ou
fazer o que o filho e o pai esperam dele (ou entre sua
origem familiar escocesa-siciliana, ligada ao crime,
e os valores morais da esposa judia, ligada à
religião), também se faz notar. Em nome
do filho, ele irá ao roubo (para protegê-lo
da inexperiência), depois entregará o pai
à polícia, assim como a si mesmo.
Não é a mais honrosa das atitudes, mas,
naquela circunstância, a ação mais
correta a ser tomada, ao menos para seus valores paternos.
Não cabe ao filme julgar se os personagens fazem
o certo e o errado, mas mostrar como a decisão
deles têm conseqüências negativas e
como eles terão de superar isso. Não é
por acaso que tudo começa e termina no Pessach,
a páscoa judaica, porque estamos em uma processo
de continuidade e renovação de um ciclo
(tradição e mudanças).
Parece claro pela composição corporal,
facial e verbal dos três atores que o filme faz
a opção pela rebeldia coerente de Jessie,
expressa por um personagem de ar zombeteiro, sempre
com uma piada mordaz na ponta da língua. Essa
opção é explicitada ao final, com
um ritual de despedida em cima de um prédio,
de onde é jogada seu corpo reduzido a pó.
A seqüência última, com a câmera
saindo do pó que ficou na mureta do prédio,
enquadrando o asfalto (onde se lê Fire), antes
de mover-se para a direita percorrendo os prédios,
é exatamente a inversão do movimento da
seqüência inicial – portanto, o filme começa
pelo fim, embora não saibamos disso.
Mais um movimento a reproduzir o ciclo e a renovação
do ciclo. Renovação porque, quando o rebelde
é homenageado, a razão de Vito está
sedimentada. E assim o jovem Adam, antes fã do
ídolo Jessie, terá aprendido algo no processo,
desfazendo dessa forma a aparente opção
incondicional pelo avô rebelde, sem com isso desligitimá-lo
em nada.
Lumet parece dirigir para os atores, impressão
resultante de sua câmera sempre discreta nos planos
imóveis e nos travellings lentos, mas segue uma
decupagem nunca óbvia em sua narratividade, porém
muito longe de rasgar os manuais todos de encenação.
Nos planos externos, a câmera sempre se mantém
à distância quando os atores se movem,
às vezes do outro lado da rua, de modo a valorizar
a imagem do ambiente (mesmo protegendo-se dele ao filmar,
como se os lugares públicos fossem de estúdio).
Já nas freqüentes conversas em torno da
mesa seu interesse está nas expressões
faciais dos atores, filmadas sem muita inventividade,
mas com economia de planos e cortes para dar conta das
cenas.
Um dos pontos fortes de Lumet é a orquestração
dos diálogos. Não se trata de dar ritmo
quase matemático à troca de palavras,
como David Mamet, mas de criar um ritmo ensaiado sem
assim parecer, com o final de uma frase de um ator já
colando no início de outra, criando-se assim
uma impressão de (quase) simultaneidade de acontecimentos
verbais. Essas operações, tanto as de
câmera como as dos diálogos, são
sempre sutis.
Lumet evita o impacto dramático, as soluções
de causar sensação na forma de dirigir
e qualquer apelo sentimental. Mesmo seu humor é
dado a sorrisos e não a gargalhadas. Vemos um
diretor controlado, certamente, mas aberto a demonstrar
afeto pelos personagens, sem nenhuma vergonha disso,
porém sem arroubos para deixar isso escancarado.
Cléber Eduardo
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