LONGA JORNADA NOITE ADENTRO
Sidney Lumet, Long Day’s Journey Into Night, EUA, 1962

A primeira fase da carreira de Sidney Lumet foi marcada por determinar a junção de três meios de expressão: cinema, TV (onde ele começou sua carreira) e teatro (origem dos roteiros da maioria dos filmes). Na elogiada estréia com 12 Homens e uma Sentença (1957), Lumet trabalha uma peça de teleteatro, vencendo com sobriedade as limitações de um cenário único e claustrofóbico: uma sala de discussão onde confronta-se o grupo de jurados. Aos poucos, seus filmes foram ganhando em ambição, e Lumet passa a trabalhar textos de autores consagrados como Tennessee Williams (That Fugitive Kind, de 1959) e Arthur Miller (View From the Bridge, de 1961), ambos de repercussão modesta. Restava Eugene O’Neill – que junto aos outros dois constitui o trio dos mais importantes dramaturgos norte-americanos do século XX. Ao transpor para o cinema Longa Jornada Noite Adentro, peça assumidamente autobiográfica em que O’Neill explora o drama de sua família em uma das suas mais celebradas obras-primas, Lumet se depara com o maior desafio de sua carreira até então.

Aproveitando toda sua experiência anterior, tanto para a tela grande como para a tela pequena, Lumet sai vitorioso na luta contra um texto denso e tortuoso, que conta um dia na vida da família Tyrone: o pai, James, a mãe, Mary e os filhos James Jr. e Edmund (alter-ego de Eugene). Ele parte da arriscada opção de transpor o texto em sua íntegra, sem um roteiro que a adaptasse a um ritmo cinematográfico. E consegue concretizar não somente o melhor filme baseado em peça teatral de sua carreira, como também um dos melhores de todos os tempos no gênero.

Lumet logra o êxito de fugir das duas mais intensas armadilhas às quais estão sujeitos diretores ao transpor peças ao cinema. Estes, de um modo geral, ou optam por uma direção preguiçosa, restrita aos limites das convenções teatrais – aquilo que nos acostumamos a chamar "teatro filmado" – ou partem, na tentativa de querer superar as limitações impostas pelo texto, para uma mise-en-scène demasiado virtuosa, que acaba por desviar além da conta as atenções quanto ao original. Lumet atinge um raro equilíbrio em que cada enquadramento, cada movimento de câmera, mostra estar a serviço do texto, respeitando seu fluxo dramático e acentuando, sem sobrepujá-las, todas as linhas pronunciadas pelas personagens. E sim, faz uso, quando necessário, de composições de imagem características de uma "linguagem televisiva", mas, como artesão de talento, não se permite deixar que estas funcionem como amarras às quais o filme permaneça submisso.

Também não devemos deixar de destacar a importância do fotógrafo Boris Kaufman para que Longa Jornada Noite Adentro atinja toda sua plenitude. Partindo das primeiras seqüências pela manhã, nos jardins da residência dos Tyrone, e caminhando gradativamente para o interior da casa à medida que o dia transcorre e noite e madrugada chegam, Kaufman vai manipulando com maestria a luz dos poucos ambientes, que, assim como nos conflitos e relações entre a família, vai se tornando mais escura e sombria à medida que se desenvolve a ação dramática.

Sidney Lumet, como não podia deixar de ser no caso de um texto tão genial como o de Longa Jornada Noite Adentro, conduz seu elenco para atuações no mínimo impecáveis. A começar por Ralph Richardson, como o sovina e egoísta chefe de família, que atua com gestos e entonações vocais que refletem as características profissionais de sua personagem: um veterano ator canastrão. Como os filhos, Jason Robards Jr. compõe o alcoólatra James Jr. alternando toda uma fúria patente e uma doçura reprimida, enquanto Dean Stockwell ressalta cada tom da fragilidade de Edmund, um jovem sensível que se descobre tuberculoso. Mas não há como negar que o centro das atenções é mesmo Katherine Hepburn, num trabalho insuperável como a mãe Mary, que não consegue se livrar do vício em morfina. Hepburn, mais que uma grande atriz, uma estrela de cinema na mais completa essência do conceito, sempre foi uma intérprete carregada de marcantes maneirismos, que, por vezes, podiam se mostrar inadequados a um contexto. Em Longa Jornada Noite Adentro, sob a condução eficiente de Lumet, ela consegue adaptar todos esses maneirismos em favor de sua personagem e do conjunto, numa atuação que pode ser indiscutivelmente listada entre as melhores da história do cinema.

Gilberto Silva Jr.

(VHS: Republic Pictures)