A primeira fase da carreira de Sidney Lumet foi marcada
por determinar a junção de três
meios de expressão: cinema, TV (onde ele começou
sua carreira) e teatro (origem dos roteiros da maioria
dos filmes). Na elogiada estréia com 12 Homens
e uma Sentença (1957), Lumet trabalha uma
peça de teleteatro, vencendo com sobriedade as
limitações de um cenário único
e claustrofóbico: uma sala de discussão
onde confronta-se o grupo de jurados. Aos poucos, seus
filmes foram ganhando em ambição, e Lumet
passa a trabalhar textos de autores consagrados como
Tennessee Williams (That Fugitive Kind, de 1959)
e Arthur Miller (View From the Bridge, de 1961),
ambos de repercussão modesta. Restava Eugene
O’Neill – que junto aos outros dois constitui o trio
dos mais importantes dramaturgos norte-americanos do
século XX. Ao transpor para o cinema Longa
Jornada Noite Adentro, peça assumidamente
autobiográfica em que O’Neill explora o drama
de sua família em uma das suas mais celebradas
obras-primas, Lumet se depara com o maior desafio de
sua carreira até então.
Aproveitando toda sua experiência anterior, tanto
para a tela grande como para a tela pequena, Lumet sai
vitorioso na luta contra um texto denso e tortuoso,
que conta um dia na vida da família Tyrone: o
pai, James, a mãe, Mary e os filhos James Jr.
e Edmund (alter-ego de Eugene). Ele parte da
arriscada opção de transpor o texto em
sua íntegra, sem um roteiro que a adaptasse a
um ritmo cinematográfico. E consegue concretizar
não somente o melhor filme baseado em peça
teatral de sua carreira, como também um dos melhores
de todos os tempos no gênero.
Lumet logra o êxito de fugir das duas mais intensas
armadilhas às quais estão sujeitos diretores
ao transpor peças ao cinema. Estes, de um modo
geral, ou optam por uma direção preguiçosa,
restrita aos limites das convenções teatrais
– aquilo que nos acostumamos a chamar "teatro filmado"
– ou partem, na tentativa de querer superar as limitações
impostas pelo texto, para uma mise-en-scène
demasiado virtuosa, que acaba por desviar além
da conta as atenções quanto ao original.
Lumet atinge um raro equilíbrio em que cada enquadramento,
cada movimento de câmera, mostra estar a serviço
do texto, respeitando seu fluxo dramático e acentuando,
sem sobrepujá-las, todas as linhas pronunciadas
pelas personagens. E sim, faz uso, quando necessário,
de composições de imagem características
de uma "linguagem televisiva", mas, como artesão
de talento, não se permite deixar que estas funcionem
como amarras às quais o filme permaneça
submisso.
Também não devemos deixar de destacar
a importância do fotógrafo Boris Kaufman
para que Longa Jornada Noite Adentro atinja toda
sua plenitude. Partindo das primeiras seqüências
pela manhã, nos jardins da residência dos
Tyrone, e caminhando gradativamente para o interior
da casa à medida que o dia transcorre e noite
e madrugada chegam, Kaufman vai manipulando com maestria
a luz dos poucos ambientes, que, assim como nos conflitos
e relações entre a família, vai
se tornando mais escura e sombria à medida que
se desenvolve a ação dramática.
Sidney Lumet, como não podia deixar de ser no
caso de um texto tão genial como o de Longa
Jornada Noite Adentro, conduz seu elenco para atuações
no mínimo impecáveis. A começar
por Ralph Richardson, como o sovina e egoísta
chefe de família, que atua com gestos e entonações
vocais que refletem as características profissionais
de sua personagem: um veterano ator canastrão.
Como os filhos, Jason Robards Jr. compõe o alcoólatra
James Jr. alternando toda uma fúria patente e
uma doçura reprimida, enquanto Dean Stockwell
ressalta cada tom da fragilidade de Edmund, um jovem
sensível que se descobre tuberculoso. Mas não
há como negar que o centro das atenções
é mesmo Katherine Hepburn, num trabalho insuperável
como a mãe Mary, que não consegue se livrar
do vício em morfina. Hepburn, mais que uma grande
atriz, uma estrela de cinema na mais completa essência
do conceito, sempre foi uma intérprete carregada
de marcantes maneirismos, que, por vezes, podiam se
mostrar inadequados a um contexto. Em Longa Jornada
Noite Adentro, sob a condução eficiente
de Lumet, ela consegue adaptar todos esses maneirismos
em favor de sua personagem e do conjunto, numa atuação
que pode ser indiscutivelmente listada entre as melhores
da história do cinema.
Gilberto Silva Jr.
(VHS:
Republic Pictures)
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