UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES
John Landis, An American Werewolf in London, EUA/Inglaterra, 1981

- Life mocks me even in death!

Entre todos os trabalhos de John Landis, e vale ressaltar tratar-se de uma carreira que prima por um certo frescor de idéias, Um Lobisomem Americano em Londres ressoa o mais "jovem", essa expressão sendo empregada nas mais variadas possibilidades. Um momento em que tudo parece dar certo, das escolhas mais relevantes às menos relevantes, mas acima de tudo um trabalho complicadíssimo em exercício. Landis costuma comentar que teve dificuldade ao longo da década de 70 em convencer alguém de que poderia conciliar a comédia e o horror de forma satisfatória, e por mais que diante do resultado final (e de todo uma filmografia que a seguiu) pareça um absurdo tal questionamento, é bastante pertinente o ponto de interrogação lhe imposto, e de certa forma como Landis transforma o próprio filme na resposta perfeita. Tanto a comédia quanto o horror são gêneros que exigem particularidades muito diretas, conciliar ambos da forma como Landis pretendia era uma tarefa mais do que árdua, especialmente tendo em conta que o filme alterna os mais variados do tons, do surreal (nos sonhos de David) ao autenticamente engraçado (David correndo nu por Londres), do desesperador (a despedida de David e Alex) ao horror (perseguição no metrô). As formas como Landis consegue conciliar tantos gêneros e possibilidades de cinema com tamanho equilíbrio são realmente impressionantes, tendo em conta que o entrelaçamento de tudo é tão bem encaixado que nada soa ultra controlado ao ponto de perder a força. O controle de tempo das cenas, o momento do corte, a cadência perfeita para o filme.

As opções de montagem são bastante curiosas, com Landis optando por fugir de uma idéia mais básica de horror-comédia, misturando seus tradicionais cortes pouco sutis à um certo tipo de montagem quase surrealista. As seqüências com David no hospital são bastante impressionantes neste sentido, com encaixe entre os primeiros contatos de David com Alex e o Dr. Hirsch e as descobertas aos poucos do que estava acontecendo, e sonhos onde David vai aos poucos assimilando instintivamente suas novas tendências: as de um lobo. Ainda há espaço para pesadelos angustiantes com monstros nazistas (o personagem é um judeu), além de diversos jogos de gênero, como quando David repentinamente se transforma em um monstro, cena que só funciona porque Landis corta no momento exato em que aquilo poderia se tornar simplesmente bobo. Algumas das seqüências de sonhos são por si só impecáveis, David caçando como um lobo, a cama do hospital no meio da mata, o passeio da câmera pela mata como se fosse o animal correndo. No momento em que David já não mais tinha discernimento entre sonho e realidade, é que ele enfim está pronto para receber a visita de seu amigo Jack, que não deixa de continuar sendo uma ilusão visto que somente ele consegue travar este contato. O timing entre os sonhos surreais, com ápice na aparição dos monstros, e o momento em que enfim real e surreal tem de caminhar juntos – o encontro com Jack – é perfeito, tão pouco o contato é travado mais diretamente e o filme já se sente livre para retirar David do ambiente do hospital.

O trabalho de Landis com as locações também parece encontrar um momento perfeito, com o cineasta encontrando em cada um destes locais as melhores opções. Dos planos extremamente abertos nos campos rurais às grandes avenidas e praças, Landis sempre busca uma forma bastante aberta de captar as paisagens urbanas londrinas. As cenas no Piccadilly Center, onde fica o cinema em que David conversa pela última vez com Jack (e agora também com suas vitímas) e acaba se soltando em meio a noite movimentada, foram possivelmente das mais trabalhosas, e fica bastante claro as diferenças de tons entre o momento que é dia, antes de David entrar no cinema para falar com Jack, e após já ter se tornado lobisomem, quando os planos deixam de ser abertos e de captarem uma certa expansividade do local e passam a ser fechados e caóticos, com cortes rápidos, e toda uma construção de bagunça digna de quem realizou a passeata final de Animal House, com direito a diversas batidas de carro, pessoas sendo atropeladas, o lobisomem arrancando cabeças – há muito, muito mesmo em comum na construção deste ato final de Lobisomem Americano com o ato final de Animal House, quase que como se Landis aperfeiçoasse aqui ainda mais estruturalmente aquilo. Em Lobisomem tudo ganha tons mais passionais, a chegada dos policiais, Alex correndo para chegar há tempo de salvar David, e há menos uma idéia artesanal de um plano a ser executado como o que ocorre em Animal House, são conceitos diferentes, ainda que os dispositivos de Landis para alcançar esse caos completo em ambas as cenas sejam muito parecidos.

Entre todos os usos magníficos de locações, embora no Piccadilly Circus haja trabalho incrível de entrecortes, é na seqüência da estação de metrô que Landis encontra sua locação perfeita. Abandonando a idéia de se mostrar o lobisomem, naquele momento já mostrado várias vezes e posteriormente muitas outras, em troca de um efeito lúdico em que a câmera toma o ponto de vista do animal. A estação vazia é explorada de todas as formas, com um incrível trabalho de profundidade nos planos, sempre durando o tempo certo, em que o homem é perseguido pelo lobisomem. Landis fecha a seqüência primordialmente onde abrindo levemente o plano diante do homem no pé da escada rolante, constrói o olhar do lobisomem e dá toda a idéia do tamanho absurdo que a criatura teria. Não é preciso mostrar mais nada, o corte surgindo no momento exato.

As opções de elenco também traçam desafios interessantes à Landis. O cineasta literalmente recusa a oferta de ter em mãos autênticos comediantes (e amigos pessoais) como Dan Aykroyd e John Belushi e opta por usar atores bem mais econômicos e contidos, abrindo espaço para o estudo dos gêneros sem tender tanto para nenhum lado. Não é como se David Naughton, Griffin Dunne, Jenny Agutter e John Woodvine não fossem expressivos, mas o tipo de liberdade que eles permitem abria espaços bem mais interessantes a este filme. Um performer como Belushi, por mais genial que o fosse (e era um absolutamente genial), tiraria a atenção necessária de certos focos que careciam mais aqui em importância. Landis trabalha muito este aspecto de economia com os atores, como na cena onde após expulsar David e Jack do pub, os olhares dos dois homens que os expulsaram se auto-condenavam mais do que qualquer palavra. Ajuda muito também que Naughton e Agutter tenham estabelecido uma química forte, o que dá um equilíbrio entre intimidade e desconforto de uma relação recém iniciada – mas que acima de tudo servem ao filme na medida em que funcionam em todos os focos do filme.

O trabalho com os laços emocionais dos personagens tal qual em seus filmes mais pessoais como Um Romance Muito Perigoso e Inocente Mordida é um tanto trabalhado, com a amizade de David e Jack sendo mais explorada até mesmo após o encontro com o lobisomem. A insistência em retornar para prevenir David – a cena do espelho chega a ser lugar comum, mas também é um primor de encenação – ou quando defende David diante dos outros mortos-vivos para que não corra o risco de sofrer no ato do suicídio (do you mind? He’s a friend of mine). David se despedindo de Alex em praça pública e acima de tudo uma cena bastante forte com ele ligando para os EUA em busca de informar a família que os ama antes de tentar em vão se suicidar pela primeira vez, são algumas das cenas fortes envolvendo o protagonista. Nesse sentido, David vai se assemelhar em muito com a protagonista de Inocente Mordida.

Landis defende a divertida tese de que o lobisomem é o verdadeiro bobão – o cara que não tem como ganhar, destinado ao fracasso. David Naughton parece perfeito nesse sentido, encarnando todos os aspectos mais atrapalhados para um sujeito que se mete na pior situação que alguém poderia se meter. Ele é um herói que precisa fazer apenas um ato, descobrir ele mesmo que tem de morrer (e que isso inclui abandonar aquilo que tem demais valioso – Alex). É claro que a situação é muito mais complicada que o mero fato de se ser o "bobão", mas não é difícil ver como as coordenadas de Landis para Naughton sempre apontavam para este lado. Não é a toa que ele e Jack começam o filme em meio há um caminhão cheio de ovelhas. Landis não é sutil e não se interessa pela sutileza por ela mesma – embora seu trabalho com cortes e cuidado com tempo seja dos mais sutis, eles não apontam para algo necessariamente sutil. Quando David pergunta a Alex como ela faz para se virar com pouco dinheiro, um corte seco nos leva ao ônibus abarrotado de punks coloridos, com David como o bobão (sempre).

Há ainda a seqüência no cinema pornô, uma verdadeira pérola com Jack introduzindo a David suas vítimas da noite passada. Uma das seqüências mais genuinamente engraçadas, em autenticíssimo território Landis, ainda conta com as seqüências mais inacreditáveis do filme pornô. A chegada do guarda mais tarde para conferir estava acontecendo gera no mínimo um plano muito bom que o coloca com o filme cobrindo todo o fundo, e o corte perfeito para um dos momentos em que o lobisomem de Rick Baker mais parece realista como o único contraplano possível. Outra seqüência nesta linha é ainda no pub no começo do filme, quando já animados os freqüentadores começam uma piada, a pior piada do mundo, sobre o Álamo, e a única reação possível se torna a pergunta de Jack sobre as velas e a estrela de cinco pontas. São incontáveis as seqüências em que a montagem-encenação de Landis nos brinda com as respostas-questões perfeitas para o que lhe é imposto.

Em última instância, retornando mais uma vez as locações, Landis vai aos poucos trazendo o filme das regiões rurais, com os longos campos e estradas, os belos planos abertos quase irônicos ao som de Blue Moon que abrem espaço para que nossos protagonistas adentrem a cena, até que as poucos vai se urbanizando. No hospital existe o ambiente fechado com alguns lapsos ainda do campo, e logo o filme vai se abrindo para as avenidas e praças londrinas. Começam a surgir néons coloridos e chamativos, completamente opostos às paisagens que abrem o filme. O caos passa a imperar, e o filme vai se encerrar em um beco sem saída. Um corte no exato momento em que o que interessa ao filme cessa. Blue Moon de novo. Final perfeito para este que é um dos grande estudos das possibilidades do gênero como cinema, e do cinema como gênero. Alias, um dos grandes do cinema.


Guilherme Martins