That
80’s Show
... e só se fala nos anos 80. Curioso, porque
repete o velho ciclo da nostalgia: após ser trucidada
e recusada sub-repticiamente durante os anos que lhe
seguiram, a década de 80 ressurge como o último
oásis da rebeldia (ainda que traduzida para uma
linguagem menos reivindicatória e mais hedonista)
e da possibilidade de uma visão idílica
sobre a indústria do entretenimento. Olhando
para trás, percebeu-se que havia um lado muito
lúdico na proliferação dos parques
temáticos (quando o desejo de miniaturização
é definitivamente preterido pela escala 1:1),
nas "inutilidades domésticas" que buscavam
atender às demandas do hiper-consumismo (objetos
de consumo cuja verdadeira finalidade não está
no uso que deles se pode fazer, mas sim no próprio
consumo), na naturalização, em nosso cotidiano,
dos signos do capitalismo corporativo, que não
mais clamavam por atenção, mas simplesmente
se imiscuíam no espaço que habitamos (usar
uma camisa da Coca-Cola não é fazer propaganda,
pois já não se trata de uma "marca",
e sim de um objeto estético como outro
qualquer).
O cinema americano acompanha de perto essa epidemia
oitentista, produzindo filmes que dialogam com explícitas
referências daquela que já foi tida como
a "década perdida" (de Pânico
na Floresta a Um Show de Vizinha, os exemplos
variam muito – principalmente em relação
à qualidade). Mas, cruel contradição,
não é John Landis quem está fazendo
o público se reencontrar com esse cinema. Nem
Joe Dante, ou John Carpenter. Muito pelo contrário,
eles pouco filmam ultimamente. Os anos 80 não
voltam ao cinema através de seus maiores representantes/críticos:
é antes um revival expresso nas paródias
e nas reciclagens. Ou seja, atrai mais observar aquilo
tudo com distanciamento, no formato seguro de uma doce
lembrança, do que voltar a dar voz aos artistas
do período – o que implica a viabilidade de um
envolvimento mais visceral. Há possivelmente
um medo por trás disso: ver/ouvir o que têm
agora a dizer os artistas que realmente estavam em atividade
nos anos 80 – mais até do que se debruçar
sobre a obra que eles então construíam
– é justamente o que pode acusar a passagem do
tempo.
Landis # 1
A fossilização de John Landis, cineasta
cujo "reinado" em hipótese alguma se
dissocia daquela época em que o cinema pôde
desfrutar, pela última vez, o sobrenome "a
maior diversão", vem a calhar com as mudanças
que o universo do cinema sofreu a partir do início
dos anos 90. De uma hora para outra (ou de uma década
para outra), assistir a uma colisão simultânea
de dezenas de automóveis já não
tem tanta graça assim. Por quê? Foi o próprio
cinema que acostumou o público a cada vez mais
rir de tiradas irônicas (que sempre existiram,
obviamente) e perder a fascinação pelo
humor direto, a piada que nem precisa chegar ao cérebro
para ser engraçada, o slapstick, o bufão,
o humor idiota? É sintomático que as comédias
dos irmãos Coen tenham ganhado espaço
à justa medida que demonstraram um conhecimento
quase científico da estrutura das gags
e dos subgêneros a que se referiam. Landis tem
esse mesmo conhecimento, mas sempre soube filmar encontrando
um outro motivo para a cena que não fosse a atualização
de inteligências narrativas, ou a preciosidade
plástica, ou a imbricação de gêneros
(todos elementos presentes em seu trabalho). Os filmes
de Landis extrapolam a práxis do cinema quando
precisam se encher de uma vida ainda-não-cinema.
Clube dos Cafajestes (Animal House, 1978)
é o grande filme que é por conta do que
mostra sobre a juventude na virada dos anos 70 para
os 80 (época de realização do filme),
e não por conta do conjunto de referências
que busca na história da comédia americana
até o início dos anos 60 (época
em que o filme se passa). É definitivo menos
pela lição de moral que impõe aos
almofadinhas protonazistas da fraternidade Omega do
que pela cena de John Belushi quebrando um violão
na parede, após tirá-lo das mãos
do esboço de hippie que tocava um folk
dos mais fajutos. Clube dos Cafajestes é
como uma plataforma de lançamento, pois foi o
primeiro trabalho para estúdio das pessoas envolvidas,
e foi um grande sucesso que chamou a atenção
para os nomes que estavam nos créditos: além
de Landis e Belushi, tinha Harold Ramis (roteirista,
que em 1980 dirigiria Clube dos Pilantras), Ivan
Reitman (produtor, que logo depois dirigiria Os Almôndegas),
Matty Simmons (também produtor de boa parte dos
outros filmes do National Lampoon).
Landis e seus comparsas deixaram para a geração
seguinte duas coisas muito especiais: 1) o sentido de
turma, de patota que se reúne para fazer filmes
engraçados não importa como (é
extremamente aconselhável o documentário
The Yearbook, que vem de extra no DVD de Clube
dos Cafajestes), e 2) a prática de não
estabelecer em que ponto uma gag – e de preferência
a mais boçal de todas – deixa de ser motivo de
riso frouxo e passa a ser atitude política. Com
essa estratégia de indistinção,
Landis polariza a passagem que um humor tipicamente
americano – e que sempre fora profundamente auto-crítico
em relação à sociedade de que era
produto – realiza dos pequenos palcos (como o de Saturday
Night Live) em direção às proporções
épicas de filmes como Os Irmãos Cara-de-Pau
e Os Espiões que Entraram numa Fria.
Os ápices de caricatura conseguem quase que por
milagre ocupar um lugar de registro semidocumental (a
ação das tropas de choque no final de
Os Irmãos Cara-de-Pau, a bolsa de valores
em Trocando as Bolas, o fim de semana da consciência
negra em Um Príncipe em Nova York, o workshop
de armas em Um Tira da Pesada III), o que só
vale dentro daquele filme a que estamos assistindo;
em qualquer lugar fora dali, a cena dificilmente esconde
sua essência caricatural, torna-se um esquete
solto (talvez por isso Kentucky Fried Movie não
tenha ainda a mesma força dos filmes posteriores,
alternando altos e baixos – ou seja, bons e maus esquetes).
Toga! Toga!
Refletindo e distorcendo a tal visão lúdica
dos hábitos de consumo pós-modernos, que
ali viviam sua infância e já eram ridicularizados,
os filmes com o "selo" National Lampoon instauram
um novo paradigma para a representação
do americano médio. A típica família
americana que John Hughes (roteirista) e Harold Ramis
(diretor) apresentam ao mundo é a dos Griswold
(Férias Frustradas, de 1983). O pai de
família que essa geração adota
é ninguém menos que Chevy Chase, e o passeio
que eles fazem à Europa (em Férias
Frustradas II, mais uma vez roteirizado por John
Hughes, mas dessa vez dirigido por Amy Heckerling),
como prêmio após – fantasiados de porquinhos
– derrotarem a família nerd num show televisivo
de perguntas e respostas, reforça a idéia
de uma América que já não esconde
mais sua estupidez (ao contrário, põe-na
a triunfar), que vai ao berço da civilização
e apaga as marcas daquilo que desconhece, ou seja, a
História (lembrar da desastrosa marcha ré
que desencadeia um dominó nas pedras de Stone
Henge na Inglaterra, um dos mais famosos monumentos
pré-históricos, a primeira atração
turística que os Griswold visitam). No filme
anterior, a cena central havia sido aquela em que Chevy
Chase se acha perdido – já totalmente fracassado
na viagem de férias que tanto planejara – em
meio às icônicas formações
rochosas do Monument Valley. A mesma paisagem que antes
abrigara a excelência do herói individualista
do western era ressignificada de forma simples
e brilhante. Estava consolidada a matiz cinicamente
grandiloqüente com que o presente imediato seria
filtrado por essa turma.
Kent Jones tem lá sua razão ao dizer que
filmes como Clube dos Cafajestes e Clube dos
Pilantras (Caddyshack), por mais adoráveis
que sejam, acabam levando a comédia americana
a permitir o surgimento de um mundo entregue aos caprichos
de smart-asses. Em Trocando as Bolas,
que pode ser visto como o filme mais emblemático
dentro dessa lógica, a fabricação
de uma posição social enreda um esquema
bem sucedido de enriquecimento instantâneo. Basta
uma jogada, uma tacada correta para fisgar o queijo
e escapar da ratoeira. Fomenta-se todo um universo de
personagens que planejam, farsantes incorrigíveis
(Frank Oz, que via de regra faz participações
nos filmes de Landis, dirigiu seu melhor filme justamente
focando uma dupla de golpistas, em Os Safados).
O próprio Clube dos Cafajestes é
o triunfo de uma escória com uma tecnologia muito
particular de pensamento. O que faz a diferença,
mais uma vez, é John Belushi cuspindo pavê
na cara do inimigo, e iniciando uma guerra de comida
que se alastra por todo o refeitório. De forma
parecida, no final de Trocando as Bolas o que
importa para os personagens de Aykroyd e Murphy, uma
vez ganhada a batalha na bolsa de valores, é
aproveitar o paraíso tropical em que se encontram.
Sombra e água-fresca – o filme, de 1983, tem
um quê de manifesto contra a euforia workaholic
dos yuppies. Declarada a guerra, vale tudo: toda
moral é relativizada, ninguém é
bonzinho no final das contas (bancárias?). Se
Landis jamais poupou seus vilões de finais ridículos
e torturantes, existiria punição maior
para o capanga dos Dukes do que terminar como "esposa"
de um gorila? Existiria forma mais clara do filme ratificar
sua falta de paciência com a imbecilidade que
o rodeia?
Trata-se mesmo de uma declaração de guerra:
duas cenas de Clube dos Cafajestes dão
o preciso tom da comédia de Landis, as duas com
John Belushi. A primeira é quando ele vai para
o meio da sala e inicia seu discurso à la
chefe de nação, com a música de
Elmer Bernstein ensaiando uma melodia épica ao
fundo, e Belushi termina gritando aos quatro ventos
seu profundo conhecimento histórico: "O
que fizemos quando os alemães atacaram Pearl
Harbor?!" (no documentário Onde Eles
Estão Agora?, dirigido pelo próprio
Landis, dessa pergunta corta para a imagem da Casa Branca...).
A outra cena é aquela em que os Deltas estão
em sua pior situação dentro do filme,
pois o reitor da universidade ameaça fechar a
fraternidade, e a quebra do clima ruim proposta pelo
personagem de Tim Matheson é uma Toga Party,
o máximo de baderna que pode haver num campus
universitário. A resposta de Bluto/Belushi? "Toga!
Toga!".
Zero em Comportamento
O espaço que alguns comediantes encontram
em certos filmes contemporâneos é algo
que tem uma semelhança muito forte com Landis,
em cujo cinema, desde o início, já existia
uma "política dos atores", uma defesa
da capacidade individual de cada comediante, um incomensurável
prazer em mostrar atores experimentando a liberdade
de atuação pura, sem subtexto, a motivação
importando muito menos do que a entrega do corpo à
idéia proposta pela cena, a exteriorização
de um ânimo criado dentro do set. E é interessante
que a turma que dá prosseguimento a suas característica
seja mapeável muito mais através dos atores
do que dos diretores. Will Ferrell, Vince Vaughn, Ben
Stiller, irmãos Wilson: a própria passagem
de alguns pelo Saturday Night Live não
esconde a semelhança de trajetórias.
Se há uma herança John Landis na comédia
americana contemporânea, é somente numa
geração mais nova (que, esperamos, ainda
fará muitos filmes divertidos), surgida de poucos
anos para cá, que as características de
seu humor e de sua visão de mundo encontram ressonâncias
mais fortes. Dois lados dessa influência devem
ser destacados. O primeiro é aquele tipo particular
de mau-gosto, que não dialoga nem com a acidez
de uma platéia "descolada" afeita a
incorreções políticas (desde que
estas estejam num formato cool) nem com uma platéia
mais conservadora que prescreve limites para o desnudamento
da situação cômica. Esse mau-gosto
está presente em filmes como Dias Incríveis
(Old School, de Todd Philips, 2003), O Âncora
(Anchorman: The Legend of Ron Burgundy, Adam
McKay, 2004) e Com a Bola Toda (Dodgeball:
A True Underdog Story, de Rawson Marshall Thurber,
2004), embora suas arestas estejam claramente aparadas
– os filmes vão até um certo ponto, mas
não chegam à perda de estribeiras singularizada
na cena do desfile no final de Clube dos Cafajestes.
O outro lado da influência Landis, que seria a
percepção do presente, a radiografia ao
mesmo tempo crítica e caricatural dos fenômenos
que ocorrem na sociedade, aparece de uma forma indireta,
pois a verdadeira "percepção do presente"
que desponta nos filmes aqui em questão é
a de uma nostalgia, um resgate de atmosferas que resulta
num resgate de procedimentos narrativos e cômicos.
Um filme como A Inveja Mata (Envy, 2004),
de Barry Levinson, faz uma leitura do sonho americano
que, ao colocar um sentimento em nada nobre no cerne
da sua construção, lembra bastante o esquema
landiano do "enriquecer e prosperar na América".
O produto que o personagem de Jack Black inventa e que
vira sucesso de venda no mercado (para o ódio
de seu vizinho que a princípio não quis
entrar como sócio, interpretado por Ben Stiller)
é um vaporizador de fezes caninas, o "Vapoorizer",
cujos comerciais televisivos remetem ao humor que movimenta
Kentucky Fried Movie. A mesma fórmula
que coloca o desleixo e o "fracasso" num ponto
de contato muito estreito com a esperteza e a vitória
é o que constitui a narrativa de Com a Bola
Toda. No final, assiste-se à derrota da arrogância
(como em muitos filmes de Landis).
Dias Incríveis é possivelmente
o filme mais diretamente decalcado de Clube dos Cafajestes,
chegando a repetir a estrutura e até algumas
cenas do filme de 1978, e por isso serve de exemplo
perfeito para estabelecer a diferença crucial
entre Landis e a nova geração. As diferentes
condições em que o filme de Todd Philips
é feito anestesiam o que Landis tinha de mais
extraordinário, que era o assustador potencial
energizante de suas cenas. Grosso modo, seria dizer
que Landis fez um filme para alunos que tiravam zero
em comportamento, enquanto Philips (cujo filme, é
preciso notar, é bem simpático e divertido)
encenou a festa de rapazes que já atingiram uma
suficiente maturidade para reconhecer limites. O que
falta nas boas comédias contemporâneas,
para que elas tenham o mesmo poder de Cube dos Cafajestes?
John Belushi para gritar "Toga! Toga!". E
John Landis ensandecido no set de filmagem, gritando
no alto-falante, cativando desde o ator protagonista
até o último figurante que compõe
a cena.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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