Talvez a grande imagem do cinema de John Landis seja
a noite. Em outras palavras, aquilo que produz, questiona,
provoca e tenciona imagens, que põe em questão
os limites de uma imagem (como se fotografa a noite
senão tirando dela um pouco de seu mistério?),
que força a representação (Lobisomem
Americano), a encenação (Trocando
as Bolas), o arquifalso até (Into the
Night). Mas que por si só não é
uma imagem.
O que é a noite? John Landis não se preocupa
tanto em responder a pergunta como em complicá-la,
estendê-la, torná-la questão moral,
de travelling ou o que seja. O que de fato importa
é que quando falamos em noite pensamos menos
nas perseguições noturnas de Os Irmãos
Cara de Pau ou no universo sensual de Um Romance
Muito Perigoso que em Jenny Agutter, Anne Parillaud,
Michelle Pfeiffer, Jamie Lee Curtis, Vanessa Angel.
São esses os mistérios que põem
em choque a tropa de schmucks que povoam o universo
Landis: Dan Aykroyd, David Naughton, Jeff Goldblum,
Eddie Murphy em Um Príncipe em Nova York,
Anthony LaPaglia, Steve Martin. A noite é aquilo
que envolve, excita, gets you horny. Como imagem
de cinema, como algo que a noite só pode ser
quando imagem de cinema, talvez Landis pense,
como Godard, que aquilo que a noite submerge repercute
no invisível o que mergulha na luz. É
um tema que afeta de maneira decisiva pelo menos dois
de seus filmes mais importantes, Um Lobisomem Americano
em Londres e Um Romance Muito Perigoso.
Da elegância
O que traz à mente a menção do
nome e a conseqüente lembrança dos filmes
de John Landis? Espeluncas de beira de estrada, lojas
de conveniência, quartos de hospital, botecos,
conversas de banco de carro, bares de alta classe, engarrafamentos
causadores de desconforto, pessoas que esperam por algo,
abastecer o carro num posto de gasolina, personagens
sentados no meio-fio, carros se batendo uns contra os
outros. Estes ambientes tão privilegiados, sempre
aconchegantes, desejáveis (tudo que Landis filma
possui essa característica, seja um apartamento
repleto de miscelâneas relacionadas a Elvis ou
um bar country povoado por selvagens), é
neles que Landis tira algum tipo de psique ou de conteúdo
dos seus personagens. A sofisticação é
absoluta, o artesanato impecável. Mas o que Landis
faz com isso?
A comédia – ou ao menos o que Landis nos
faz enxergar como comédia – está mais
na completa inadequação de certos (e é
bastante importante que sejam "certos") corpos a certos
tipos de ambientes que no gigantismo de um décor
ou no que há de histriônico em um intérprete.
É o que a princípio ocorre com o personagem
de Eddie Murphy em Trocando as Bolas (o mendigo
tornado acionista numa enorme e antiqüíssima
firma), é o que acontece com o lobisomem adolescente
americano em Londres ou com Chevy Chase e Dan Aykroyd
perdidos no meio do deserto árabe. É interessante
esse fenômeno, diz muito do homem enquanto realizador
eficaz e bom diretor de comédias, mas há
alguma coisa nisso tudo que sugere um aspecto pouco
discutido do autor Landis: estes lugares enormes,
a amplitude e a horizontalidade, os corpos atrapalhados
ou simplesmente equivocados, mal distribuídos
ou desacomodados, o que isso traz à comédia?
O que isso tira da comédia?
É neste momento que uma ferida parece abrir-se
na percepção da obra de Landis: há
uma impressão profunda de um homem que viveu
os 80, que pensou muito durante esse período,
que enxergou as coisas de uma maneira bastante clara
e as queimou no celulóide. Esta necessidade do
décor e do hipertextual, daquilo que preexiste,
dos estúdios da Universal ("ask for Babs")
e de toda a sorte de ambientes que tenham algum tipo
vida, de passado; e a necessidade ainda maior de hiperpovoar
(o bar mexicano de Três Amigos, o Slaughtered
Lamb em Lobisomem Americano) estes lugares
com os tipos mais inadequados, tudo isso parece apontar
para Landis como um possível cartógrafo
daquilo que foi visto e sentido nos 80.
Há outros na Norte América, como Jim Jarmusch
e Wenders, que realizaram trabalho semelhante, mas nenhum
destes dois realizadores parecem tão imersos
no universo retratado pelos filmes que realizaram neste
período quanto Landis.
Saturday Night Live e além
Algo que certamente torna um pouco mais forte essa impressão
de que Landis manteve durante os 80 essa preocupação
em realizar o registro e documento de algo que lhe encantava
e lhe afetava diretamente é a presença
constante de comediantes do humorístico Saturday
Night Live. É uma longa história,
começa com a invenção do gênio
cômico de John Belushi e passa pelo trabalho junto
a diversos nomes célebres como Eddie Murphy,
Dan Aykroyd, Chevy Chase, Martin Short, Al Franken,
Jim Belushi, Rob Schneider, Jon Lovitz, Phil Hartman
e outros. Pois se um diretor de comédias se vê
realizando filmes na década de 80 e tem à
sua disposição uma gama de personagens
e personalidades célebres do período,
por que não usá-las? Há um tipo
de encantamento na maneira como Landis enxerga a criação
da comédia – o instante em que ela é criada
e as repercussões dela para uma cena, uma situação,
um entrecho – que lembra muito algo indistinto do cinema
mudo (a ver as primeiras cenas com Murphy em Trocando
as Bolas ou a presença tresloucada de Belushi
durante o todo de O Clube dos Cafajestes). A
valorização da performance (em oposição
ao trabalho de atuação e composição
de personagens que vemos nos trabalhos com David Naughton,
Jeff Goldblum e mesmo Dan Aykroyd), dos problemas que
uma determinada performance posa para um diretor e do
divertimento que ela pode proporcionar, este é
todo o interesse de Landis pela figura bastante particular
do comediante, do performer. Se afinal de contas
a grande imagem do cinema de Landis de fato é
a noite, como sugerido no início deste texto,
não há uma lógica perfeita por
esta preferência pelos comediantes do Saturday
Night?
Abbott & Costello, Aykroyd & Belushi,
Welles & Kubrick
As grandes duplas cômicas, é provável.
O gosto pela pompa, mesmo nos locais mais improváveis
(a nojenta animal house é um maravilhoso
pedaço de direção de arte antes
de ser o reduto caudaloso de baderneiros e anarquistas);
a atenção dada à gestualidade mais
exagerara, sem controle, irreal; um enorme zelo para
com as reações a serem provocadas pelas
gags, para com aquilo que a comédia significa
em relação ao objeto satirizado (política,
costumes, culturas). Uma sofisticação
incomparável na comédia norte-americana
dos últimos 25 anos para retratar o mais absurdamente
grosseiro, fora do normal e dantesco. Se há algum
cineasta da sua geração ao qual podemos
compará-lo nestes termos este seria David Cronenberg,
e a semelhança dos personagens que Jeff Goldblum
interpreta num filme assinado Landis (Um Romance
Muito Perigoso, no qual Cronenberg interpretou seu
patrão) e em A Mosca apenas torna mais
forte essa impressão.
Um verdadeiro apelo épico da comédia é
restituído nos filmes de Landis, e de repente
nos vemos como naqueles filmes feitos em 1910 ou 20
(e a julgar por um filme como Três Amigos,
Landis tem plena consciência destas raízes,
desta herança) onde tudo é tentado pela
primeira vez: as exacerbadas corridas de carro, os saguões
gigantescos, uma preferência aguda pela precisão.
Estamos de repente num território mais próximo
de Tati e do Kubrick de Dr. Fantástico
que do tipo de comédia grosseira à qual
Landis é freqüentemente associado, mas algo
particulariza a sua tentativa de uma comédia
"épica", e nesse sentido Um Romance Muito
Perigoso é provavelmente o filme que melhor
sustenta todas as idiossincrasias de sua obra: há
uma gama enorme de personagens, participações
especiais de vários famosos, cenas de ação,
perseguições de carro, suspense... Mas
o que basicamente interessa a Landis – e o que o faz
manter tudo o que o filme tem de grandioso à
margem – é a relação entre
dois personagens: os pequenos momentos, as nuances,
as diferenças de comportamento, os universos
antagonistas que representam... Nada menos genérico
e mais peculiar que filmes como Um Lobisomem Americano
em Londres, Inocente Mordida e Os Babacas,
todos obras de um cineasta com uma sensibilidade muito
especial.
Niilismo pop
A vida pessoal e a carreira de Landis foram marcadas
por uma enorme (e bastante famosa) tragédia,
ocorrida durante as filmagens do episódio que
dirigiu para a versão cinematográfica
da série Além da Imaginação.
Nada estranho em se pensar que Um Romance Muito Perigoso
funciona principalmente como o filme deste
sentimento estranho, desta inércia que tanto
envolve os Blues Brothers, o quase-diplomata
e o técnico em decodificação tornados
espiões em Os Espiões Que Entraram
Numa Fria, e especialmente o protagonista de Um
Romance Muito Perigoso. Por mais que o registro
cômico impere, Landis abre uma pequena brecha
para um sentimento de tristeza que perpassa toda a sua
obra. Jamais uma tristeza dos belos sentimentos, de
um pobre coitado afetado pelas mazelas do mundo, e sim
uma espécie de preguiça, de desencanto
com um mundo que já carrega muitos fantasmas,
um mundo substancialmente composto por fantasmas e projeções.
A graça, a comicidade, o humor, todos surgem
como a única resposta possível a um mundo
repleto de comportamentos pré-estabelecidos,
adequados e/ou resignados. O riso não é
realmente um ato político por aquilo que simboliza
(afinal de contas símbolos pouco tem a ver com
política, como Landis brilhantemente mostra em
Os Espiões Que Entraram Numa Fria) mas
sim por aquilo que externa, que torna visível.
A rebelião individual e social, que Landis tanto
valoriza, não surge apenas do riso provocado
no espectador mas também dos indícios
de cansaço, de indiferença, de descaso
total e completo por parte de seus personagens – ou
ao menos dos personagens que o interessam. Daí
o fracasso de Um Tira da Pesada III ou a incompreensão
generalizada com a qual um filme como Os Babacas
é recebido: este homem realmente nos pede para
rir de comportamentos excessivos, de uma agressividade
e boçalidade ímpares em quase tudo que
se vê em cinema? Bem, é exatamente isso.
Where is he now?
Uma coisa que certamente atrapalha Landis a levantar
projetos que melhor correspondam às suas ambições
é muito daquilo que faz com que o último
filme de John Carpenter date de 2001, ou que o último
Cronenberg date de 2002. Aqui estão diretores
que não podiam se preocupar menos com auto-congratulações,
com falsas bajulações a um sistema que
sempre criticaram, com o senso comum de que já
passou o tempo em que ainda tinham algo a falar. Talvez
seja um reflexo dos nossos tempos que num momento onde
a década de 80 é tão discutida
e relembrada exista um interesse maior por emulações
anódinas e francamente desinteressantes daquilo
que essa época representou que pela coisa de
verdade (a qual Landis certamente representa com enorme
força).
Não, não é de forma alguma triste
ver Landis dirigindo um documentário para a TV
sobre um vendedor de carros usados ou um extra para
o DVD do filme que o catapultou à fama. Ele ainda
está de certa forma respondendo a um impulso
que sempre esteve presente no interior do seu cinema
e de suas criações: a de comentarista
– e mesmo documentarista – dos nossos tempos, de todos
os índices e sinais, de tudo o que produz e povoa
os imaginários do contemporâneo. A essa
vocação Landis vem dispensando a maior
parte de seu tempo e talento. Mas não é
verdade que nos seus maiores filmes também foi,
na medida do possível, essa vocação
que ele desenvolveu admiravelmente?
Bruno Andrade
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