Um
Romance Muito Perigoso poderia muito bem ser uma
espécie de centro secreto da carreira de John
Landis. Centro secreto: aquele filme que geralmente
nunca é tido como um dos principais filmes do
diretor, às vezes é admirado por muitos
mas jamais considerado típico, mas que mesmo
assim consegue iluminar os principais aspectos da carreira
do artista como nenhum outro. E por que este
filme, no meio de tantos outros, ocuparia esse posto?
Uma primeira possibilidade: por ser o filme de Landis
que em seu começo mais parece dissociado de qualquer
experiência com o gênero, um filme entregue
ao macrogênero do drama humano. Quatro imagens
de Jeff Goldblum revelam sua personalidade cindida,
um retrato frio e seco de café da manhã
a dois terminado por um beijo na testa e um "have
a nice day", imagens de desconhecidos tristes ou
enfurecidos tomadas durante um engarrafamento no caminho
para o trabalho, as agruras de permanecer acordado fazendo
tarefas soporíferas ou estando presente em reuniões
com o chefe. Mais liricamente talvez do em que seus
outros filmes, Landis compõe com precisão
e secura, em Um Romance Muito Perigoso, o retrato
da vida no cotidiano do homem comum, indiferenciado,
o personagem recorrente em seu cinema. Todo esse cenário
existencial em que o início do filme nos instala
é algo raro, não só no cinema americano.
Ele nos instala num terreno apenas poucas vezes privilegiado
pela arte, mas disseminado em nossas vidas (um exemplo
anterior na obra de Landis: a passagem da tarde para
a noite antes da transformação em Um
Lobisomem Americano em Londres, espécie de
remake landisiano de Meshes of the Afternoon)
Uma proposta improvável, a de John Landis como
maior poeta do ennui de sua época no cinema
americano?
O título original diz "dentro da noite",
e refere-se à jornada de um insone que vive geralmente
o dia as doze horas das vinte e quatro diárias
em que somos iguais a todas as outras pessoas
e por uma série de coincidências adentra
a noite protegendo uma beldade loira (Michelle Pfeiffer)
de um grupo de gângsters iranianos (entre os quais
o próprio Landis, num papel silencioso e hilariante)
e que lhe acaba abrindo a possibilidade de adotar uma
outra vida completamente diferente da que vivia. Intriga
pra lá do comum, mas que em Landis adquire uma
densidade própria de um poeta do tédio
e da passagem do tédio para a aventura. Curioso
que 1985 tenha sido o ano de mais outro filme com incursões
de coincidências absurdas pela madrugada: Depois
de Horas, de Martin Scorsese. Mas ali onde Scorsese
vê a possibilidade de decantar a tensão
urbana, a geografia da cidade, a tensão crescente
do personagem e do filme, e, no limite, a redenção,
Landis vê nessa poesia da madrugada uma oportunidade
para mudança efetiva de registro, mas com a mesma
manutenção de um olhar impassível,
quase monótono para a progressão dos acontecimentos:
Jeff Goldblum desarma o savak contando a ele a desgraçada
história de sua vida, não apontando armas;
a perseguição à amiga de Diana/Pfeiffer
na praia assumindo uma neutralidade de filmagem em relação
à ação que deriva muito mais da
banalidade de gestos estúpidos e insensatos do
que de algo que faça a marca dos filmes do gênero
o comentário de um vizinho para sua esposa
vindo completar o sentido de algo abrupto e bizarro
que irrompe no cotidiano alheio e provoca uma ausência
de reação.
Qual é o valor de um instante? Como se passa
de um registro de vida, modorrento e tedioso, para outro,
ativo e vibrante? Essa mudança é ela mesma
desejável, ou apenas uma fantasia? O filme não
responde com uma tese, mas antes com diversas amostras
que servem como hipóteses: o Cadillac do irmão
de Diana, que ganha a vida fazendo imitações
de Elvis Presley, em que está escrito "The
King lives" (como ser "normal" dirigindo
um carro desses?); um homem (Don Siegel) saindo constrangido
de uma cabine de banheiro, e uma mulher desavergonhada
(conforme o crédito final do filme) que sai da
mesma uma dezena de segundos depois, diante dos olhos
permanentemente mornos de Goldblum; uma enorme suíte
de hotel aparentemente vazia, fazendo ressoar apenas
o barulho da televisão, e que se revela o cenário
de um banho de sangue entre quadrilhas; o antigo magnata
boa-vida que vive agora estirado numa cama, inválido,
incapacitado de dirigir qualquer um dos maravilhosos
e caríssimos carros que ostenta na garagem. Situações
que não passam de um escalonamento de ocorrências
individuais que ilustram e relativizam o dilema do personagem
central, e como a "mundanidade" de John Landis
adiciona uma camada de pura especulação
sobre a camada de thriller absurdo em que a história
se desenvolve.
Espécie de O Mágico de Oz em que
a personagem de Dorothy seria a exemplificação
da insuficiência existencial de um determinado
modo-de-vida (logo, engajamento social em algum nível,
e isso sempre está de alguma forma presente,
mesmo que de viés em Landis) e da tentativa de
constituição de um outro, Um Romance
Muito Perigoso trabalha o encantamento da madrugada
de uma forma muito curiosa. Nada do mundo encantado
que sai da cabeça de Dorothy, mas um mundo que
não é exatamente o esperado por Ed Okin
desejoso de fugir de uma vida formatada que é
mais aviltante do que a própria traição
da mulher , cujos deslumbres residem unicamente
na maneira que têm de propulsá-lo para
fora de suas expectativas de vida de então. É
nesse sentido que o encontro com David Bowie é
uma espécie de encontro mágico, que só
serve para que alguém de dentro deste novo mundo
entregue a Ed seu passaporte ("Você é
bom nisso"), revele a ele sua vocação,
aparecendo do nada e desaparecendo quando um carro de
polícia se insinua pela avenida. Interlúdio
brilhante que faz o filme confirmar a certeza dos passos
de Ed, ao mesmo tempo que leva o desafio a um segundo
nível: é preciso agora não mais
fugir de sua vida (ou dos savaks), mas negociar seu
lugar dentro do novo território. Uma vez que
o passaporte está na mão, todas as senhas
estão disponíveis. Não foi apenas
um sonho: sua guia voltará para buscá-lo.
Ruy Gardnier
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