Ao
menos uma imagem de Inocente Mordida só
poderia ter saído de um filme de John Landis.
O momento se dá quando a vampira Marie decide
entrar na limousine do mafioso Macetta, fazendo o jogo
dele para depois provar solitária e à
vontade seu prato de "comida italiana". À
indicação de Macetta, o motorista faz
uma curva em toda velocidade. No habitual filme de ação,
haveria a perseguição, o despiste, e o
fim da seqüência. Lógico, nesse filme
também, mas somos brindados com um plano adicional
que só tem a ver com o mundo de John Landis,
com os pequenos detalhes que ele coloca em seus filmes
que fazem com que seus protagonistas ganhem uma carnalidade
completamente diferente, pareçam viver mais do
outro lado da tela junto conosco, espectadores
do que no mundo da ficção. No momento
em que o automóvel é deslocado para fazer
bruscamente a curva, a força centrífuga
joga os personagens do banco de trás de um lado
para outro, no que deve durar apenas um segundo, se
tanto. Tempo suficiente para nos darmos conta de que
as leis da física também valem para personagens
de cinema, ou ao menos para os personagens de John Landis.
O que mais fascina em Landis não é exatamente
a maneira como ele mistura gêneros de cinema (filme
de máfia com filme de vampiro, no caso) nem como
ele consegue manter dois tons funcionando ao mesmo tempo
no filme (mais uma vez no caso, a comédia e a
seriedade da tensão dramática), mas as
miudezas da vida corriqueira que acontecem conosco o
tempo todo e estão quase sempre ausentes dos
filmes, que costumam fazer o personagem existir apenas
à medida em que ele conta uma história.
Os personagens de Landis tendem a ser, ao contrário,
entrópicos, introspectivos, e quase sempre passivos,
espectadores da tragédia que eles próprios
desencadeiam. Em Inocente Mordida, Anthony LaPaglia
basicamente segue uma cadeia de acontecimentos que ele
não consegue nem entender nem parar. Ele simplesmente,
como um policial aplicado, segue Anne Parillaud para
tentar trazer as coisas de volta ao normal. A LaPaglia
também é dado um "momento Landis"
quando ele acorda no quarto de hotel, Parillaud/Marie
dormindo nua na cama, e a primeira coisa que ele faz
é ir ao banheiro checar a jugular para saber
se foi mordido.
Inocente Mordida é geralmente "vendido"
aos iniciados e admiradores do culto de terror como
uma espécie decaída de filme de diretor
que teve uma época áurea (Um Lobisomem
Americano em Londres) e que deseja repetir a fórmula
e restituir o sucesso trazendo algo semelhante
trocando, então, o lobisomem pelo vampiro. Uma
estranha lógica que não vê nenhum
tipo de consistência temática/estilística
em seus filmes, gênero terror ou não (o
que une Três Amigos a Lobisomem,
Um Romance Muito Perigoso e Um Príncipe
em Nova York?), e prefere falar o jogo da indústria
e da bilheteria. Claro, ver números é
mais fácil do que observar imagens e interpretá-las.
Se há necessidade de aproximar Inocente Mordida
a alguma coisa, é aos filmes de terror auto-conscientes
que alguns dos principais diretores do gênero
nos EUA vão fazer dois ou três anos depois
(Wes Craven e O Último Pesadelo de Freddy,
John Carpenter e À Beira da Loucura).
Não, entretanto, pela relação com
a história do cinema fantástico, bastante
presente nos três filmes, mas sobretudo pela nova
relação com a "realidade" em
que os maus da fita atacam, um mundo muito menos fantasiado
do que aquele que estamos acostumados O Último
Pesadelo de Freddy tem como trama Freddy Krueger
atacando os atores e técnicos do filme, inclusive
o ator que interpreta o monstro, À Beira da
Loucura faz um livro de terror à Stephen
King brotar a loucura no mundo "real". Uma
espécie de "efeito-Watchmen", se se
quiser, mais algo que já esteve prefigurado no
cinema de Landis desde Lobisomem. Em Inocente
Mordida, o que acontece é mais uma sistematização
de procedimentos, ou talvez uma maior clareza de proposta
na auto-reflexividade do cinema de gênero (as
infindáveis cenas de pessoas assistindo a filmes
de terror) e na relação entre cinema e
hábitos cotidianos.
Sob esse aspecto, é interessante notar como o
crítico Dan Sallitt modaliza estes pequenos detalhes
na categoria do "mundano"1.
Essa mundanidade dos personagens de Landis está
intimamente ligada com a construção de
uma certa fragilidade em seus protagonistas, com o modo
que Landis tem de isolar cada personagem sozinho no
plano e deixá-lo funcionar sozinho, apenas captando
seus processos de consciência. Podemos pensar
em Anne Parillaud no começo do filme, em seu
quarto rodeado de velas acesas, a pensar em suas próximas
"comidas", ou na cena seguinte à mordida
em Chazz Palminteri: existe uma intimidade partilhada
com o espectador que joga o filme para além do
puro exploit que poderia ser, e faz nascer uma
camada suplementar de compreensão daquilo que
nos está sendo contado. Landis é menos
o mordaz rearranjador de gêneros e brilhante diretor
de comédias de que se fala do que um grande captador
de instantes de intimidade, com recorrência impressionante.
Bill Krohn, certamente pela cena da transformação
dentro do plano em Um Lobisomem Americano em Londres,
atribui ao cinema de Landis o adjetivo "baziniano"
certamente por toda a formulação
de montagem proibida , mas que persiste para além
dos momentos espetaculares e, poderíamos dizer,
adquire seu melhor aproveitamento nas prosaicas e a-narrativas
cenas de personagens entregues a si mesmos.
Essa "camada suplementar" a que nos referimos
acaba povoando a própria camada narrativa, contaminando-a.
Em Inocente Mordida, basta ver todos os movimentos
que Robert Loggia faz à medida que vai descobrindo
no que se tornou. Como um chefe de máfia
falastrão à italiana, pragmático
à americana se comportaria se fosse mordido
e de uma hora para outra se transformasse num vampiro?
Os braços abertos e o rosto sempre excessivamente
sorridente nos explicam muito mais do que qualquer diálogo
no roteiro índice do soberbo trabalho
com atores evidente sempre quando se trata de Landis
na direção. Caráter vicioso e esquisitíssimo
de Macetta/Loggia que passa a dominar cada cena em que
aparece depois que é mordido. Dormir num frigorífico
é relativamente pouco em comparação
à roupa suja de sangue, à selvageria da
comilança de carne congelada na casa de seu advogado,
à forma como ele olha para os capangas de sua
organização que logo se tornarão
vampiros também. Em contraposição
ao comportamento afoito e estupidamente imediatista
do novo vampiro, Anne Parillaud exibe sempre o mesmo
semblante de vampira acostumada com o ofício
de tirar vidas para sobreviver, e essa dimensão
mundana atribuída a um vampiro é apaixonante,
no protocolo dos ataques usar sexo como isca,
morder, sugar, limpar-se, atirar, despistar o vestígios
de sua "atividade" ou abrindo um jornal
e verificando que sua comida foi pela primeira vez a
manchete principal de um jornal. Nada como um dia após
o outro.
Ainda poderíamos aplicar a outra lógica
landisiana, a de personagens que de uma hora para outra
se vêem num outro registro dramático, numa
outra relação entre ficção
e vida real. E esse é Anthony LaPaglia, o policial
infiltrado que sempre achou que ia viver sua vida como
filme policial, e inesperadamente vê que entrou
num filme de vampiros. Inocente Mordida é
menos um filme em que isso acontece do que um
filme sobre isso: como pessoas imediatamente
se vêem num registro fantástico que não
dominam, que os arrasta para fora de seu cotidiano e
que muda completamente sua apreensão da realidade.
Uma poesia que impacta tanto mais quanto seu estilo
visual é inassinalável, sem recorrência
de procedimentos ou tiques, o verdadeiro estilo entrando
sub-repticiamente, às vezes sem mesmo que percebamos
e isso é o que torna o cinema de Landis
ao mesmo tempo tão aparentemente destituído
de "arte" e ao mesmo tempo tão deliciosamente
artístico , através de pequenos
planos inseridos no meio da trama, de alguns segundos
a mais de um plano de ator, de gestos subsumidos ao
corpo do ator, da simples sabedoria de confiar naquilo
que se tem em frente à câmera. Inocente
Mordida, se não a melhor, é uma das
melhores confirmações de tudo isso.
Ruy Gardnier
1. Dan Sallitt in Chemical Imbalance
vol. 2, issue 3. Disponível na internet aqui.
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