INOCENTE MORDIDA
John Landis, Innocent Blood, EUA, 1992

Ao menos uma imagem de Inocente Mordida só poderia ter saído de um filme de John Landis. O momento se dá quando a vampira Marie decide entrar na limousine do mafioso Macetta, fazendo o jogo dele para depois provar solitária e à vontade seu prato de "comida italiana". À indicação de Macetta, o motorista faz uma curva em toda velocidade. No habitual filme de ação, haveria a perseguição, o despiste, e o fim da seqüência. Lógico, nesse filme também, mas somos brindados com um plano adicional que só tem a ver com o mundo de John Landis, com os pequenos detalhes que ele coloca em seus filmes que fazem com que seus protagonistas ganhem uma carnalidade completamente diferente, pareçam viver mais do outro lado da tela – junto conosco, espectadores – do que no mundo da ficção. No momento em que o automóvel é deslocado para fazer bruscamente a curva, a força centrífuga joga os personagens do banco de trás de um lado para outro, no que deve durar apenas um segundo, se tanto. Tempo suficiente para nos darmos conta de que as leis da física também valem para personagens de cinema, ou ao menos para os personagens de John Landis. O que mais fascina em Landis não é exatamente a maneira como ele mistura gêneros de cinema (filme de máfia com filme de vampiro, no caso) nem como ele consegue manter dois tons funcionando ao mesmo tempo no filme (mais uma vez no caso, a comédia e a seriedade da tensão dramática), mas as miudezas da vida corriqueira que acontecem conosco o tempo todo e estão quase sempre ausentes dos filmes, que costumam fazer o personagem existir apenas à medida em que ele conta uma história. Os personagens de Landis tendem a ser, ao contrário, entrópicos, introspectivos, e quase sempre passivos, espectadores da tragédia que eles próprios desencadeiam. Em Inocente Mordida, Anthony LaPaglia basicamente segue uma cadeia de acontecimentos que ele não consegue nem entender nem parar. Ele simplesmente, como um policial aplicado, segue Anne Parillaud para tentar trazer as coisas de volta ao normal. A LaPaglia também é dado um "momento Landis" quando ele acorda no quarto de hotel, Parillaud/Marie dormindo nua na cama, e a primeira coisa que ele faz é ir ao banheiro checar a jugular para saber se foi mordido.

Inocente Mordida é geralmente "vendido" aos iniciados e admiradores do culto de terror como uma espécie decaída de filme de diretor que teve uma época áurea (Um Lobisomem Americano em Londres) e que deseja repetir a fórmula e restituir o sucesso trazendo algo semelhante – trocando, então, o lobisomem pelo vampiro. Uma estranha lógica que não vê nenhum tipo de consistência temática/estilística em seus filmes, gênero terror ou não (o que une Três Amigos a Lobisomem, Um Romance Muito Perigoso e Um Príncipe em Nova York?), e prefere falar o jogo da indústria e da bilheteria. Claro, ver números é mais fácil do que observar imagens e interpretá-las. Se há necessidade de aproximar Inocente Mordida a alguma coisa, é aos filmes de terror auto-conscientes que alguns dos principais diretores do gênero nos EUA vão fazer dois ou três anos depois (Wes Craven e O Último Pesadelo de Freddy, John Carpenter e À Beira da Loucura). Não, entretanto, pela relação com a história do cinema fantástico, bastante presente nos três filmes, mas sobretudo pela nova relação com a "realidade" em que os maus da fita atacam, um mundo muito menos fantasiado do que aquele que estamos acostumados – O Último Pesadelo de Freddy tem como trama Freddy Krueger atacando os atores e técnicos do filme, inclusive o ator que interpreta o monstro, À Beira da Loucura faz um livro de terror à Stephen King brotar a loucura no mundo "real". Uma espécie de "efeito-Watchmen", se se quiser, mais algo que já esteve prefigurado no cinema de Landis desde Lobisomem. Em Inocente Mordida, o que acontece é mais uma sistematização de procedimentos, ou talvez uma maior clareza de proposta na auto-reflexividade do cinema de gênero (as infindáveis cenas de pessoas assistindo a filmes de terror) e na relação entre cinema e hábitos cotidianos.

Sob esse aspecto, é interessante notar como o crítico Dan Sallitt modaliza estes pequenos detalhes na categoria do "mundano"1. Essa mundanidade dos personagens de Landis está intimamente ligada com a construção de uma certa fragilidade em seus protagonistas, com o modo que Landis tem de isolar cada personagem sozinho no plano e deixá-lo funcionar sozinho, apenas captando seus processos de consciência. Podemos pensar em Anne Parillaud no começo do filme, em seu quarto rodeado de velas acesas, a pensar em suas próximas "comidas", ou na cena seguinte à mordida em Chazz Palminteri: existe uma intimidade partilhada com o espectador que joga o filme para além do puro exploit que poderia ser, e faz nascer uma camada suplementar de compreensão daquilo que nos está sendo contado. Landis é menos o mordaz rearranjador de gêneros e brilhante diretor de comédias de que se fala do que um grande captador de instantes de intimidade, com recorrência impressionante. Bill Krohn, certamente pela cena da transformação dentro do plano em Um Lobisomem Americano em Londres, atribui ao cinema de Landis o adjetivo "baziniano" – certamente por toda a formulação de montagem proibida –, mas que persiste para além dos momentos espetaculares e, poderíamos dizer, adquire seu melhor aproveitamento nas prosaicas e a-narrativas cenas de personagens entregues a si mesmos.

Essa "camada suplementar" a que nos referimos acaba povoando a própria camada narrativa, contaminando-a. Em Inocente Mordida, basta ver todos os movimentos que Robert Loggia faz à medida que vai descobrindo no que se tornou. Como um chefe de máfia – falastrão à italiana, pragmático à americana – se comportaria se fosse mordido e de uma hora para outra se transformasse num vampiro? Os braços abertos e o rosto sempre excessivamente sorridente nos explicam muito mais do que qualquer diálogo no roteiro – índice do soberbo trabalho com atores evidente sempre quando se trata de Landis na direção. Caráter vicioso e esquisitíssimo de Macetta/Loggia que passa a dominar cada cena em que aparece depois que é mordido. Dormir num frigorífico é relativamente pouco em comparação à roupa suja de sangue, à selvageria da comilança de carne congelada na casa de seu advogado, à forma como ele olha para os capangas de sua organização que logo se tornarão vampiros também. Em contraposição ao comportamento afoito e estupidamente imediatista do novo vampiro, Anne Parillaud exibe sempre o mesmo semblante de vampira acostumada com o ofício de tirar vidas para sobreviver, e essa dimensão mundana atribuída a um vampiro é apaixonante, no protocolo dos ataques – usar sexo como isca, morder, sugar, limpar-se, atirar, despistar o vestígios de sua "atividade" – ou abrindo um jornal e verificando que sua comida foi pela primeira vez a manchete principal de um jornal. Nada como um dia após o outro.

Ainda poderíamos aplicar a outra lógica landisiana, a de personagens que de uma hora para outra se vêem num outro registro dramático, numa outra relação entre ficção e vida real. E esse é Anthony LaPaglia, o policial infiltrado que sempre achou que ia viver sua vida como filme policial, e inesperadamente vê que entrou num filme de vampiros. Inocente Mordida é menos um filme em que isso acontece do que um filme sobre isso: como pessoas imediatamente se vêem num registro fantástico que não dominam, que os arrasta para fora de seu cotidiano e que muda completamente sua apreensão da realidade. Uma poesia que impacta tanto mais quanto seu estilo visual é inassinalável, sem recorrência de procedimentos ou tiques, o verdadeiro estilo entrando sub-repticiamente, às vezes sem mesmo que percebamos – e isso é o que torna o cinema de Landis ao mesmo tempo tão aparentemente destituído de "arte" e ao mesmo tempo tão deliciosamente artístico –, através de pequenos planos inseridos no meio da trama, de alguns segundos a mais de um plano de ator, de gestos subsumidos ao corpo do ator, da simples sabedoria de confiar naquilo que se tem em frente à câmera. Inocente Mordida, se não a melhor, é uma das melhores confirmações de tudo isso.

Ruy Gardnier

1. Dan Sallitt in Chemical Imbalance vol. 2, issue 3. Disponível na internet aqui.

 

 





Anne Parillaud estupefata em Inocente Mordida (1992)