Poucas coisas se podem concatenar ao término
da projeção de um filme como Hiroshima,
Mon Amour. Mas para qualquer um que tenha assistido
à obra-prima de Alain Resnais, ficou a certeza
de que a voz de Emmanuelle Riva jamais abandonaria o
cinema e seus freqüentadores. Não importa
em que época, em que circunstância, em
que estágio da modernização dos
sentidos, sempre chegará o momento em que aqueles
versos (pois é de poesia que estamos falando)
recitados no início do filme retornarão
aos nossos ouvidos. E será sem demora, também,
que a conhecida resposta se reativará na consciência:
não vimos nada em Hiroshima. Porque já
não era o caso de ir ao cinema para ver. Enquanto,
sob as cinzas remexidas do pós-guerra, a Nouvelle
Vague tinha dado seu pontapé inicial através
da revelação de uma potência de
imagem até então desconhecida, o cinema
como um todo descobria seu ponto morto, o recanto de
obscuridade em que a visão no seu uso historicamente
condicionado se tornava um sentido impotente. O mais
curioso dessa evidência crucial (de que nada vemos,
no fim das contas) é que, para se articular como
enunciado, ela precisou esperar pelo cinema moderno,
pela famosa associação entre os travellings
e a moral de quem os executa. O cinema precisou esperar
por Resnais, e este precisou esperar pela bomba atômica.
Tomando a lição de 1958 pelo avesso, uma
boa parcela dos cinemas novos passaria a década
seguinte ora tentando suprir um suposto déficit
de atenção donde se outorga a prática
de ler as imagens , ora desenvolvendo técnicas
de representação do "nada visto",
do tal "rien vu". Por mais que Godard, a partir
de então, soubesse que a tela de cinema havia
se tornado uma lacuna que se preenche à mesma
proporção que se esvazia, um espaço
em branco para ser tingido com o primeiro enunciado
que lhe caísse em mãos, todos (ou quase
todos) continuariam empenhados no firme propósito
de uma visão-esclarecimento, de uma experiência
de apreensão produtiva (ainda que o lugar da
informação não seja o cinema...),
de um ver que equivale a verificar e assimilar mensagens.
No desenrolar do processo, dois elementos saíram
profundamente lesados: a insignificância da imagem
e a câmera. Em uma palavra, a poesia.
Quando Méliès assistiu à breve
filmagem que mostrava uma família almoçando,
típico curta-metragem do hoje chamado (impropriamente?)
pré-cinema, o que mais lhe chamou a atenção
foi o que estava "além da cena" (como
colocou Ismail Xavier em uma palestra), ou seja, as
folhas das árvores, ao fundo, balançando
ao vento. Apenas um detalhe, apenas uma parte insignificante
da imagem. O foco está na ação
em primeiro plano, no casal que almoça em companhia
da criança, mas Méliès se viu fascinado
pelas folhas que se mexiam lá atrás. Almoço
= prosa (a linha narrativa escolhida pelo cinegrafista);
almoço + vento na folhagem = poesia (a contribuição
do mundo que dá àquela imagem a sua individualidade,
sua beleza original). A cultura visual do século
XX insistiria naquele primeiro aspecto da imagem, que
envolve todo um sistema de códigos, de convenções
de linguagem, jogando o lado poético para escanteio.
O cinema foi colecionando signos: filmar um duelo de
pistoleiros, a partir de um determinado ponto da história
do cinema, já parte de um conhecido repertório
de movimentação, angulação
de câmera, duração dos planos etc.
Os im-segni de que falava Pasolini sugeriam justamente
a existência de um conjunto de imagens ainda
que móvel e indefinido sujeito a codificações.
Não existe algo como um dicionário de
imagens, mas há um tipo muito particular de iconografia
que só o cinema tem os meios para utilizar e
que faz parte da sua afirmação histórica
enquanto linguagem. É o lado comunicativo do
cinema, sua capacidade de provocar cognição,
classificação, diálogo, leitura.
Para ver bem, para compreender o que se vê, é
preciso saber de antemão quais os pontos a serem
observados, ou que aspecto da imagem privilegiar. O
contrário é a imagem não domesticada
pela consolidação de enfoques analíticos,
imagem que escapa aos procedimentos estéticos
e conceituais já catalogados. E é desse
segundo tipo de imagem que se constituem muitos dos
filmes que mais nos desconcertam (de Weekend
a Mal dos Trópicos, passando por Aopção
e Loulou). Ninguém viu nada em Hiroshima
porque não havia aquela "sabedoria de antemão";
Resnais sabotou justamente a ciência da imagem,
a ânsia de previsão e leitura. Era a experiência
cinematográfica recuperando a brutalidade dos
primeiros registros, repetindo o susto provocado pelo
trem que se aproxima a todo vapor. Experiência
dos significantes, mas não obrigatoriamente dos
significados: a arte do cinema está no reconhecimento
de uma dimensão totalmente inclassificável
nas imagens que ele mostra (que o diga Tag Gallagher).
Construir imagens insignificantes envolve paciência,
e acima de tudo uma crença na câmera. Na
entrevista publicada nos Cahiers du Cinéma nş
590 (maio de 2004), Godard afirmou que a maior parcela
dos filmes contemporâneos não parte da
câmera, mas sim do projetor, pois os cineastas
já querem dizer antes de filmar.
A câmera se torna o veículo (provavelmente
incômodo) da materialização de um
conceito, uma ferramenta a serviço de um discurso
preconcebido. Abole-se a negociação instrumental
com a natureza, o canal direto com o mundo e seus seres,
suas máquinas, seus desejos, seu espaço.
Nesses filmes de que Godard reclama, ninguém
quer a câmera para encontrar uma coisa que ainda
não tenha visto; rejeita-se a incerteza, o indeterminável.
Vive-se o cinema como uma soma do roteiro com a pós-produção,
a câmera praticamente se tornando um empecilho,
uma etapa a queimar. (Felizmente, há toda uma
outra gama de cineastas que continua não apenas
partindo da câmera como também atribuindo
a ela novas funções.)
Mas o que é essa imagem que "parte da câmera"?
O que é essa crença na câmera? Peguemos
o exemplo da fotografia do cartaz de Nossa Música:
ao rodar aquele plano dos pés femininos que descem
a escada, Godard não havia reparado que a conjunção
dos elementos visuais (pernas e vestido preto formando
a clave de sol, degraus formando as linhas) evocava
uma partitura musical. Foi sua esposa Anne-Marie Miéville,
também ela cineasta, que notou essa peculiaridade.
Para que essa imagem se tornasse possível, portanto,
fez-se indispensável uma outra espera, semelhante
à de Hiroshima, Mon Amour, porém
situada em uma conjuntura totalmente modificada. Foi
preciso esperar, desta vez, pela cura da ressaca do
cinema moderno (aos olhos de um de seus cineastas mais
emblemáticos). Foi preciso esperar pela condenação
da imagem analógica, pela sua ameaça de
extinção frente às tecnologias
digitais e pela revolta que essa imagem "velha"
parece manifestar quase que por contra própria,
revelando uma forma extraída "a fresco"
do mundo. Foi preciso esperar, também, pelo casamento
de Godard e Miéville.
Os primeiros minutos de Nossa Música enchem
a tela com uma substância vulcânica que
o cinema há muito não abrigava (filmando
na beira do Vesúvio, houve sempre Rossellini
o "poeta do fogo", para Jean Douchet ,
mas seu uso do magma era outro). São imagens
de vídeo que formam uma lava, imagens difíceis
de se reter, que inundam e carbonizam tudo que encontram
pela frente. Aquela seqüência inicial passa
como uma flecha, e instaura uma disposição
de sentidos que torna a segunda parte do filme ainda
mais dilatada e lenta do que já seria, com os
ânimos precisando paulatinamente se adaptar a
outro completamente diferente ritmo. Trata-se do
Inferno, na primeira parte, mas o vídeo é
o que mais se aproxima de uma imagem-purgatório,
imagem precária e provisória, transição
entre o fotoquímico e o digital. Todos sempre
souberam que a imagem de vídeo não era
feita para durar muito em oposição extrema
à promessa de eternidade arquivológica
da imagem digital , uma imagem instável e irreverente,
indiferente ao seu conteúdo, parecendo pedir
o tempo inteiro para ser gravada por cima. Em Nossa
Música, no entanto, é o Inferno que
ela corporifica, estado doloroso e permanente. Inferno
das guerras, inferno das imagens: o dilúvio lavar
que abre Nossa Música só pode ser
apreendido sob a pena de burlar uma premissa radical
do cinema, que é sua projeção contínua
e ininterrupta. Se no vídeo ou no DVD é
mais que comum o espectador congelar a imagem arbitrariamente,
durante a projeção na sala escura essa
atitude está interditada. Resta se entregar à
cauterização sintagmática daquelas
imagens em brasa, que ainda expandem o calor do arquivo
infernal de onde foram tiradas. Nossa Música
é um filme pontuado pela dúvida em relação
ao estatuto do visível: numa das cenas em que
Godard aparece no aeroporto, essa esfera sem dono em
que tudo é provisório e está ao
"alcance potencial" dos corpos em trânsito,
um ponto de interrogação está justamente
no limite direito do quadro no final da sentença.
Uma experiência interessante e hoje possível
de se fazer é assistir a Nossa Música
em uma sala e depois entrar na sala ao lado, para ver
Hora de Voltar. Típico produto do atual
cinema independente americano, o filme de Zach Braff
traz à lembrança a velha teoria de Man
Ray de que todo e qualquer filme, mesmo o mais medíocre,
possui pelo menos cinco minutos em que a poesia cinematográfica
luta para vir à tona. Hora de Voltar sofre
de uma obsessão por ser cool, e adota
o modelo Charlie Kaufman de suprimir hiatos narrativos
e pôr "idéias originais" em toda
brecha que encontra. Assim como em Brilho Eterno
de uma Mente Sem Lembrança (embora Gondry
tenha feito um filme um tanto mais interessante e pulsante
que o de Braff), o lado romântico de Hora de
Voltar não consegue viver sem um tempero
indie/freak. É inevitável
a impressão de que aquelas opções
estão ali só porque o diretor acha que
uma comédia romântica convencional seria
muito banal. Nesse ponto, Kevin Smith, cria um pouco
mais antiga do cinema independente americano, teve melhor
noção do projeto que tinha em mãos
ao realizar Menina dos Olhos. Se o filme fracassa,
é mais por uma inadequação a priori
aturar Kevin Smith tentando fazer um filme sutil e
delicado é dose (ou aturar Kevin Smith é
dose e ponto?) do que por um esforço do diretor
na composição de quadros originais. Existem
momentos em que o cineasta deve ter a percepção
de que o melhor a ser feito é deixar o filme
solto, perder um pouco o controle, ouvir o que tem a
dizer aquele acontecimento, aquele encontro entre uma
idéia individual e um mundo que não sabe
do que se trata essa idéia. Em Hora de Voltar,
pouca ou nenhuma atenção é dada
a esse encontro, tudo confluindo, no fim das contas,
para um campo de clichês (não do cinema
de gênero, mas clichês de filme indie)
tão seguro quanto enfadonho.
É verdade que os anos 90 trouxeram filmes que
instauram um campo perceptivo em que há o comprometimento
com uma diversidade sensorial tão mais ampla
quanto menos associada a uma plasticidade discursiva/pragmática.
E é verdade que, entre o surgimento dos cinemas
novos e essa outra prodigiosa renovação,
a pergunta "o que é cinema?" não
parou de receber respostas o eclipse em O Eclipse
(Antonioni), a antológica seqüência
de batalha em Badaladas à Meia-Noite (Welles),
o primeiro plano de Crônica de Anna Magdalena
Bach (Straub/Huillét), o interminável
plano de uma estrada vazia que encerra O Anjo Nasceu
(Bressane), o final de Stalker (Tarkovski), a
perseguição no metrô em O Pagamento
Final (De Palma)... Mas se deixarmos de lado as
palavras-fetiche da crítica contemporânea,
o que sobra para ilustrar o momento atual do cinema?
Nada, rien. Ou uma única coisa: o diagnóstico
de uma afecção que, longe de atestar a
decadência do cinema, aponta um estágio
fundamental a seu porvir: trata-se da constatação
de que finalmente a "mensagem" de Resnais
acomete o cinema, ganha forma dentro dele. Graças
a uma série de cineastas além, é
claro, de Godard, podemos citar "Joe" Weerasethakul
(cujas imagens recuperaram uma tatilidade que se encontrava
anestesiada na grande maioria dos filmes), Claire Denis,
Hou Hsiao-hsien, Hong Sang-soo (cineastas que redescobriram
a câmera como um mediador entre a intimidade e
o flagrante dos corpos), Gus Van Sant (via Gerry
e Elefante), Jia Zhang-ke... , o cinema inclui
na sua ficha a agnosia. Como disse Jonathan Crary
(no interessantíssimo texto "A visão
que se desprende: Manet e o observador atento no fim
do século XIX", em O cinema e a invenção
da vida moderna), a agnosia consiste numa assimbolia.
Os primeiros acompanhamentos clínicos de agnosia
descreviam uma "consciência puramente visual
de um objeto, isto é, uma incapacidade de fazer
qualquer identificação conceitual ou simbólica
de um objeto, uma deficiência de reconhecimento,
uma condição na qual as informações
visuais eram experimentadas com um tipo de estranheza
primordial". Um tal quadro clínico, aplicado
ao cinema contemporâneo, prognostica um bom estado
de saúde. É dessa "estranheza primordial"
que o cinema mais do que nunca necessita eis a grande
arma contra a roteirocracia, contra a moda da leitura
dos filmes, contra o conteudismo crítico, contra
todas as visões que tendem a limitá-lo.
E a favor da câmera, da matéria-bruta,
da insignificância. No presente momento, é
isso que esperamos do cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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