"Não há espaço para
evolução nas artes."
Philipe Garrel
"A narrativa é mais importante do que o
personagem em literatura, já que o personagem
só pode ser sugerido através do evento,
enquanto que em cinema personagem é mais importante
do que narrativa, porque o cinema nos dá a experiência
direta e imediata de outro ser humano, e o evento se
torna mais a personalidade do responsável do
que o feito que se realiza."
Tag Gallagher
Há algum cineasta de peso com obra acessível
menos visto que D.W. Griffith? Claro que cedo ou tarde
sentamos para assistir O Nascimento de uma Nação
e talvez Intolerância, mas e quanto a realmente
experienciar estes filmes? Poucos filmes estão
tão empoeirados e ossificados quando os de Griffith.
Há um filtro entre nossas retinas e a imagem;
os filmes de D.W. Griffith não são só
filmes, não existem por si só, passam
por nossa apreciação deles todos uma idéia
de história do cinema. É uma tragédia
observar como imagens que conseguem ir tão direto
ao que estão representando não possam
ser vistas da mesma forma. Cinema é uma arte
jovem, o que ajuda a explicar o porquê do desespero
de boa parte dos seus historiadores em tentar sugerir
para ele uma longa história; Intolerância
tem menos de 90 anos, mas a julgar por boa parte do
que se encontra sobre ele, o filme é tão
velho quanto a Babilônia que descreve. Dentro
desta estrutura, o lugar de Griffith é do pai/pioneiro
(pouco importa que esta visão comece por ignorar
no mínimo 20 anos de História do cinema
que ocorrem antes de O Nascimento de uma Nação),
algo ingênuo que organizou a linguagem para alguns
cineastas europeus (Murnau, Eisenstein) melhor desenvolverem.
Nós só podemos aceitar isto se acreditamos
numa história de cinema que seja menos estética
e mais de linguagem industrial (vale lembrar que o Cabiria
de Pastrone é mais velho que o épico
de Griffith, mas não teve o mesmo sucesso comercial);
e se esquecermos que se o cinema está em constante
mudança, ele também nunca evolui ou involui.
Mais importante: você precisa nunca ter prestado
atenção naquilo que está na tela.
O que mais impressiona quando estamos diante dos filmes
de D.W. Griffith é como eles são tão
somente sobre aquilo que aparece na tela. Há
uma incrível ausência de retórica
em Griffith. Nos acostumamos a pensar nele como o mestre
da montagem, mas devíamos considerar no que efetivamente
ela significa em seus filmes. Mesmo num suposto filme
de tese como Intolerância, a articulação
de planos tem muito menos a função de
nós indicar o que pensar (deixemos isto para
Eisenstein) do que a de abrir uma porta de intensificação
de sensações. As imagens de Griffith pouco
têm do "tudo saber" enciclopédico
que marca a maior parte do cinema pré-II Guerra.
Suas imagens são esvaziadas desta obrigação,
substituindo-a por sentimentos e formas. O que mais
impressiona em O Nascimento de uma Nação
é como Griffith constrói uma cena como
aquela em que o personagem central tem a idéia
de formar a Ku Klux Klan sem considerar exatamente o
tipo de conclusão que o espectador possa retirar
dali. É impossível ver o filme sem concordar
com quem o ataca pelo seu conteúdo racista, mas
será exatamente isto que nos incomoda? Afinal,
tirando alguns acadêmicos preocupados com formas
de representação de raça e gênero,
ninguém reclama da forma como negros são
usados para representar perigo e decadência em
Taxi Driver (para ficar num exemplo de filme
querido da maior parte dos cinéfilos). O problema
deve ser mais complicado. Corte as legendas e se concentre
nas imagens e acabamos nos vendo em contato com uma
sucessão de imagens de mentalidade racista desacompanhada
do habitual editorial (conservador ou progressista)
que o cinema desde sempre impõe a elas. Isto
torna o filme menos racista? Não, mas o torna
sim um objeto mais interessante. Esta valorização
da imagem pelo que é e não pelo que diz
tem seu lado negativo especialmente em algumas passagens
dos filmes históricos que lidam com o poder (algumas
das cenas com Robespierre em Órfãs
da Tempestade por exemplo). De fato, História
interessa a Griffith apenas como porta de entrada para
o teatro e o melodrama. Salvo pelos momentos em que
grandes eventos públicos da história se
tornam encenações teatrais (as cenas com
o Rei ou George Washington em América,
para ficarmos num exemplo forte), não há
muito o que se retirar da porção histórica
dos filmes.
O senso de espetáculo de Griffith é notável.
Não e só uma questão de montagens
paralelas – que ele, sem dúvidas, usa com maestria
– mas de um talento nato para filmar grandes multidões
e movimento. Griffith sabe como espalhar seus extras
no plano e como transformar aquela massa de gente em
algo esteticamente interessante que funcione em favor
do filme e não apenas numa imagem que fica legal
numa reprodução estática em livros
ou revistas (muitos diretores das epopéias contemporâneas
podiam apreender algumas coisas com as cenas de multidão
em filmes de Griffith). Ele também nunca foi
suficientemente elogiado pela forma como ele tira o
máximo de suas locações ou cenários
de estúdio, as tais grandes montagens paralelas
ganham muito devido à compreensão do diretor
do efeito que os contrastes radicais de espaço
podem causar sobre o espectador (Intolerância
é o exemplo óbvio, mas o mesmo ocorre
em todos os filmes do cineasta). Os filme de Griffith
são entrecortados por momentos de sensação
e sentimento puro, onde o filme praticamente pára
(ou, se preferirem, recomeça) num fluxo muito
particular. A intensidade que um filme como Órfãs
da Tempestade atinge nos seus picos foi poucas vezes
igualada. Quanto mais melodramática, absurda
e louca for a situação, mais Griffith
consegue sustentar uma sensação de sentimento
puro. Mesmo uma suposta comédia como Guerra
dos Sexos termina com as tendências de Griffith
se transformando em pura tragédia. Não
porque lhe falte senso de humor, mas porque o tom diretor
que Griffith impõe puxa a situação
sempre para um particular peso trágico.
O melhor filme de Griffith, O Lírio Partido,
é o que melhor exemplifica o que o torna um diretor
único e ainda nosso contemporâneo. Entre
os filme mais conhecidos de Griffith, trata-se do mais
simples: nenhuma grande figura histórica, nenhuma
grande batalha, apenas duas pessoas se encontrando.
Mais do que em qualquer outro filme do cineasta, o que
está dentro da imagem é valorizado ao
máximo. Quando Lillian Gish e Richard Barthelmess
finalmente se vêem cara a cara, percebemos como
a arte de D.W. Griffith, mais do que da montagem, é
a do close, da câmera que se emerge sobre o ator.
Ele é muito bom como diretor de atores para que
se sustente a idéia de ingenuidade – basta observar
como as expressões do rosto de Gish se transformam
a cada instante –, mas há uma pureza muito específica
aqui. Naquele momento, Griffith paralisa toda a intriga
melodramática que desenvolveu até ali,
suspende o mundo, em favor da pura experiência
sensorial de se imergir em dois rostos humanos. É
um momento de uma beleza crua, dura e imediata. O cinema
simplesmente contempla Gish e Barthelmess, a arte de
Griffith parece se dissolver para que tal momento possa
ser achado. A câmera do cineasta mergulha nas
personalidades de Lillian Gish e Richard Barthelmess,
nas suas expressões, nas suas contradições,
nos seus tiques. Às vezes, tenho impressão
de que boa parte do que chamamos de cinema moderno é
obcecado por recapturar este momento – partindo de Rossellini
(que aprendeu observando o primeiro King Vidor, o aluno
mais esforçado de Griffith) e Mizoguchi, passando
por alguns dos melhores instantes de Philipe Garrell
e Jean Eustache e chegando num filme como O Pântano
(cuja crueza direta deve bastante a Griffith e seus
contemporâneos). Isto devia ser evidência
suficiente de que D.W. Griffith é tão
atual e excitante quanto os lançamentos da semana
passada, que ele ainda tem muito a nos ensinar para
além de como operar a moviola. É só
questão de olhar.
Filipe Furtado
O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (The Birth
of a Nation), EUA, 1915
INTOLERÂNCIA (Intolerance), EUA, 1916
O LÍRIO PARTIDO (Broken Blossoms), EUA,
1919
ÓRFÃS DA TEMPESTADE (Orphans of the
Storm), EUA, 1921
AMÉRICA (America), EUA, 1924
GUERRA DOS SEXOS (The Battle of the Sexes), EUA,
1928
(DVD Continental)
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