"The
First Episode"
"The Second Greatest Story Ever Told"
O começo: John Landis é chamado pela Universal
para criar uma série que pudesse aproveitar um
imenso catálogo de filmes produzidos pela companhia
nos áureos tempos do preto e branco. Landis chama
dois roteiristas talentosos, Marta Kauffman e David
Crane futuros criadores da multimilionária
série Friends , para pensarem juntos
em alguma fórmula. Nasce a idéia
de um jovem adulto, recém separado da esposa
mas ainda apaixonado, que tenta de mil maneiras voltar
para sua mulher e para seu filho. Elemento complicador:
ela se casou de novo e não está infeliz
com a troca. Dados peculiares da vida de nosso herói:
ele trabalha como editor de livros, tem no apresentador
de tv Eddie seu melhor amigo e confessor, e de tanto
ter visto televisão na infância adquiriu
uma memória que o faz remeter para cada micro-evento
significante de sua vida alguma lembrança de
um filme em preto e branco.
Martin Tupper é mais um herói landisiano
por excelência, alguém que detém
instrumentos de ficção para lidar com
um mundo real em que as regras do cinema não
funcionam como deveriam (Três Amigos, Um
Lobisomem Americano em Londres), em que dois mundos
são curto-circuitados e o filme é o resultado
desse curto-circuito (Trocando as Bolas, Um
Príncipe em Nova York). O clip de abertura
de Dream On mostra o bebê Martin, no chão
da sala de estar da família, com o televisor
ligado. O bebê cresce, vira criança, adolescente,
e a televisão ainda mostrando filmes e seriados
em preto e branco. Resta a Martin Tupper, agora um adulto,
lidar com essas imagens e tentar interpretar sua vida
a partir do que viveu diante da tela: tarefa infrutífera,
uma vez que Dream On parece se construir a partir
das agruras e insuficiências do projeto. Relação
especular do próprio Landis com Tupper: ele também,
como cineasta, precisa lidar com um universo de imagens
pregressas e fundadoras de um gosto pelo cinema (a famosa
cinefilia de Landis) e construir imagens novas a partir
de uma tradição, acrescentar mais um capítulo
a essa história, e não escrever um novo
livro.
John Landis, além de produtor executivo da série
em formato de sitcom, vinte e cinco minutos
de duração com locações
fixas em cenários mas sem as claques (nome técnico
dos risos gravados que se seguem às piadas) que
fazem o terror de muitos detratores dirigiu alguns
dos episódios mais importantes da série,
inclusive o primeiro, prolixamente chamado "The
First Episode". Uma curiosidade: quase todos os
capítulos, emulando a personalidade de seu protagonista,
são trocadilhos com nomes de filmes. Assim, "The
Courtship of Martin's Father", "A Midsummer's
Night Dream On", "Oral Sex, Lies and Videotape",
"The French Conception", "It Came From
Beneath the Sink" e assim por diante. Os únicos
episódios dirigidos por Landis nas duas primeiras
temporadas as únicas disponíveis
em DVD importado são, além do primeiro
episódio, as duas partes do primeiro episódio
da segunda temporada, "The Second Greatest Story
Ever Told", em que a vida de Richard, novo marido
de ex-esposa de Martin, Judith, vira um filme. Nova
entrada da série na metalinguagem, em que o protagonista
de Landis mais uma vez vai poder quebrar objetos cenográficos
(como Jeff Goldblum em Um Romance Muito Perigoso),
além de, na impossibilidade de beijar novamente
a ex-mulher, desenvolver um romance com a atriz que
no filme interpreta o papel de Judith.
Dream On, mesmo que menor na obra de Landis (ao
menos até a segunda temporada), permite, como
quase sempre acontece nos filmes mais descontraídos
e menos interessantes de diretores importantes com estilo
assinalável, perceber traços que passam
desapercebidos em filmes mais fortes. Assim, em "The
First Episode" é instigante notar o cuidado
com os aspectos mais corriqueiros da vida cotidiana
são cheios de detalhe, quando aprontar um jantar
a dois adquire dimensões de intriga mais importantes
até que o próprio jantar (interessante
como Landis inverte a lógica da expectativa no
primeiro encontro de Martin, abortado pelo próprio,
numa cena que poderia ser melhor aproveitada caso houvesse
interesse).
"The Second Greatest Story Ever Told" inscreve
Landis em outro terreno bastante familiar, o das relações
entre dentro de filme/fora de filme ou vida repetitiva/vida
glamurizada. Pois, de uma forma ou de outra, grande
parte do cinema de John Landis funciona na passagem
de um para outro. E assim, o almoço da equipe
na mansão, capitaneado por David Bowie (interpretando
o rabugento diretor do filme), faz a ponte perfeite
entre o regular e o notável, o desimportante
e o espetaculoso, o que "dá filme"
e o que "não dá", como na espécie
de teste que opera David Bowie quando Martin fica contente
por ser "comum": ele chama uma papa-coquetéis,
apresenta-a a Martin, ela se mostra super-interessada,
até que o diretor lhe revela que nosso herói
não é ninguém importante. Em que
lugar estar? Dentro dos filmes que povoam a cabeça
de Martin Kupper ou impregnado de vida real, felicidades
e problemas em terceira dimensão ao contrário
da superficialidade do mundo da telinha? Esperto, Landis
não resolve: o drama de seus filmes é
justamente a fissura entre eles, e no limite a indecidibilidade
entre os dois registros. Que, no final das contas, não
é outra senão a do próprio cinéfilo,
aquele que tem encontros regulares com uma série
de imagens e as deixa habitar seu mundo. Martin sob
o holofote, Martin sem holofote, Martin sonhando/vivendo
o holofote: o formato "série de tv"
permite a Landis pensar seus personagens que
não precisam mais de uma intriga principal
para existir, como nos filmes no puro registro
do cotidiano, nas repetições diárias.
Que tipo de série dariam o lobisomem americano,
a vampira francesa, o príncipe africano?
Ruy Gardnier
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