O
olhar interrompido
"O verdadeiro herói, o verdadeiro assunto,
no centro da Ilíada é poder. Poder
empregado pelo homem, poder que escraviza o homem, poder
antes da qual a carne humana se estremece. Neste trabalho,
a todo momento, o espírito humano é mostrado
como marcado pelas suas relações de poder,
carregado para longe, cegado, pelo mesmo poder que ele
imaginou poderia controlar, deformado pelo peso do poder
que ele se submeteu para.... Portanto a violência
oblitera qualquer um que sinta o seu toque. Ela termina
por parecer tão externa ao seu empregador quanto
para sua vítima. E dai nasce a idéia de
um destino diante do qual executor e vítima encontram-se
igualmente inocentes..., irmãos na mesma angústia."
Simone Weil, 1939 1
Underworld
Houve dois rumos do bom cinema francês pós-nouvelle
vague: os cineastas que tiveram uma existência
marginal durante a década de 60 (Pialat, Eustache,
Garrel, Rozier) que realizaram uma radicalização
do realismo fenomenológico do Bazin; e do outro
lado um cinema que retornava mais a questões
como narrativa e personagem, encabeçado primeiramente
por nomes como André Téchiné e
Benoit Jacquot (aquilo a que os menos entusiastas se
referem como cinema psicológico francês)
e de forma mais experimental em alguns filmes que Jacques
Rivette começou a realizar no período
(Duelle, Noroît). Tudo isto se combina
de diferentes formas na excepcional geração
de cineastas franceses surgida entre o final dos anos
80 e começo dos 90 (Assayas, Desplechin, Denis,
Beauvois), um fenômeno que tende a passar em branco
no Brasil, já que os filmes destes cineastas
seguem criminosamente alijados do circuito comercial
e raramente passam mesmo em festivais (Denis e Desplechin
nunca passaram na Mostra SP, por exemplo). Este fato
torna o lançamento deste demonlover (com
o genérico título de Espionagem na
Rede), mesmo que apenas em DVD, um acontecimento
(Imovision promete o recentíssimo Assayas, Clean,
para breve).
Olivier Assayas começou a carreira escrevendo
nos Cahiers du Cinéma no final dos anos
70, onde se destacou como um crítico capaz de
abraçar Ingmar Bergman e Tsui Hark e traçar
relações entre John Carpenter e os filmes
finais de Robert Bresson. Há uma patente inquietação
no cinema de Assayas desde a estréia com Desordre,
em 86. "Como o cinema pode melhor refletir o mundo?",
é a questão que assombra todo o seu
cinema. Não surpreende que sua carreira (10 filmes
até aqui) seja tão variada, ao contrário
de tantos autores contemporâneos que estabelecem
um nicho para si próprios e se satisfazem com
variações dentro dele. Dessa forma, um
drama de época como Os Destinos Sentimentais
é seguido por um cyberthriller como
demonlover. A necessidade de buscar novas formas
para lidar com novos problemas, buscar formas para lidar
com experiências que o cinema ainda não
se resolveu sobre como retratar: é isto que está
antes de mais nada em questão num filme como
demonlover (mas o mesmo pode-se dizer de um Irma
Vep ou LEnfant dHiver). Este movimento
pode se dar quando mergulhando na tradição
para dali tirar o inesperado, como num filme como demonlover
que mergulha no que já pode ser visto como uma
tradição contemporânea para dali
também tirar algo inexistente. È isto
no final das contas que torna tão difícil
apresentar cineastas como Assayas e Desplechin para
o público brasileiro (basta observar como este
próprio artigo segue retornando a comparações),
pois afinal, com um Tsai Ming-liang grande cineasta
não deixamos de estar num terreno já
conhecido e mapeado desde os anos 60, mesmo que feito
pessoal e aprimorado. O mesmo não se pode dizer
destes franceses. Um crítico pode associar Desplechin
a Rivette ou dizer que demonlover é só
mais um thriller pós-moderno, mas a verdade
é que se estes cineastas são cinéfilos
com grande conhecimento da história do cinema,
eles usam este conhecimento para fins muito particulares.
Ver A Sentinela (Desplechin) ou Água
Fria (Assayas) é bater de frente com experiências
cinematográficas únicas.
Não surpreende, portanto, que exista em Assayas
uma certa desconfiança para com a herança
de Bazin. Um cinema da evidência baseado num principio
de realismo ontológico já não basta
(ou melhor, já é um caminho muito bem
trilhado e coberto por um sem número de outros
cineastas), e no lugar dele encontramos um cinema da
experiência baseado num esforço de marcar
na imagem toda uma experiência particular de mundo
de um ou mais personagens. A festa em Água
Fria é a seqüência-chave disso,
mas exemplos pulam em cada momento de demonlover:
basta pensar em Connie Nielsen pegando um elevador após
ter seu flerte com um colega de trabalho interrompido,
para ficar num exemplo simples. Assayas apontou em entrevistas
que um dos fatores decisivos na concepção
de demonlover foi a sua descoberta dos romances
de Don DeLillo, em especial Submundo (um calhamaço
de 800 paginas sobre os efeitos da Guerra Fria e sua
subseqüente desestruturação no mundo),
algo evidente na forma como o filme radicaliza ainda
mais certas opções estruturais dos filmes
anteriores, assim como na forma como mais do que nunca
Assayas nos apresenta um filme de idéias. Elipse
sempre foi um formato querido a Assayas, que certa vez
fez um filme (Une Nouvelle Vie, 1993) previsto
em parte na idéia de contar em duas horas algo
que fora concebido para três. Seqüências
com freqüência começam pela metade,
nos lançando de forma não-mediada na ação
(o avião na seqüência de abertura,
a reunião de negócios). demonlover
não promove uma narrativa, mas, como os melhores
livros de DeLillo, nos presenteia com ecos de uma que
gira em torno de uma série de idéias e
observações. Daí não fazer
muito sentido a freqüente comparação
do filme com Videodrome de Cronenberg. Sim, a
trama dos dois filmes tem seus pontos de contato em
especial no último ato e é verdade que
Assayas esteve na linha de frente da defesa do filme
à época do seu lançamento, mas
as questões aqui são outras, o problema
se desenvolveu em outras direções. demonlover
é um filme muito preocupado sobre como nós
vemos, como experienciamos as narrativas à nossa
frente. Assayas promove um diálogo direto com
o atual cinema americano.Ver demonlover não
é uma experiência tão distante assim
de ver um Van Helsing desprovido do seu lado
circense. Esta aproximação é um
ato de profunda curiosidade intelectual, assim como
de reconhecimento de que estas formas que tanto fascinam
o cineasta têm por vezes mais a dizer que modelos
tradicionais desenvolvidos no circuitinho de arte.
O que o sorriso de Connie Nielsen revela? Mais do que
nunca estamos no terreno das personagens opacas (Maggie
Cheung já era uma em Irma Vep, mais ainda
por estar interpretando a si mesma). A aproximação
tanto com DeLillo quanto com o cinema americano contemporâneo
se mostra bem clara na caracterização
turva dos personagens, ao mesmo tempo em que o filme
jamais deixa de funcionar a partir deles. As motivações
obscuras se refletem na narrativa em estilhaços,
não por algum truque de roteiro a complexidade
narrativa aqui é ponto de partida e não
de chegada , mas porque esse comportamento melhor reflete
o mundo de racionalismo irracional que os personagens
habitam. Assayas e o thriller corporativo marcam
um encontro perfeito: a capacidade de transformação,
de se adaptar às novas situações
é algo que o cineasta valoriza tanto nos seus
personagens quanto no seu processo de trabalho. No mundo
cão corporativo de demonlover é
justamente isso o que mais se valoriza, a capacidade
de se revelar mais maleável, adaptável
a cada novo problema e situação (e o mundo
do filme permanece mesmo em constante transformação).
Daí um dos grandes achados do filme ser a figura
do executivo Harvé, muito por sorte já
que o cineasta originalmente pretendia escalar o astro
espanhol Sergi Lopez (o que aumentaria a sensação
de filme multinacional que demonlover exala),
mas terminou com Charles Berling que havia então
recém-protagonizado Os Destinos Sentimentais
para Assayas e o filme seria impossível de
imaginar sem a figura wellesiana que Berling constrói.
O único homem dominante num universo predominantemente
feminino (há um chefe, mas ele assiste a tudo
às margens), ele é o único a projetar
uma imagem agressiva: em um momento charmoso, noutro
detestável, calculista e tímido, paciente
e agressivo. Enquanto cada uma das personagens parece
se portar de forma a projetar a imagem que os demais
exigem dela, Harvé parte do principio oposto
e impõe a imagem que a situação
sugere. Ele parece ser o único a compreender
por completo a lógica do universo que habita,
ao mesmo tempo em que permanece até o fim um
enigma. Se demonlover é entre outras coisas
um filme sobre poder, Berling sugere uma espécie
de Sr. Arkadin do novo milênio. Mas neste filme
marcado por um desejo pela imagem, mesmo esta explicação
fica no ar. Para comprar a idéia de que Harvé
é uma figura de poder corruptora à Welles,
depende de até que ponto o espectador deseja
que o quebra-cabeças de demonlover faça
sentido, e o diretor deixa amostras o suficiente para
sugerir que ele não precisa fazer nenhum, ao
menos no plano narrativo.
Daydream Nation
A imagem coreografada é um bom nome para um estudo
sobre uma certa sensibilidade cinematográfica
que começa a dar as caras a partir de meados
dos anos 80 (alguns sinais primitivos dela já
davam as caras na década de 70)2.
É o cinema como verdadeira música da luz,
a imagem pensada a partir de um princípio que
é antes de mais nada musical. Algo que pode ser
observado, por exemplo, em Wong Kar-wai em Hong Kong,
em Richard Linklater e Spike Lee nos EUA e em toda esta
geração do cinema francês (algo
que contagia até um veterano como Jacques Rivette,
basta olhar seu Haut/Bas/Fragile [Paris no
Verão], o grande musical dos anos 90). Assayas
é um dos grandes mestres disso: basta observar
Nathalie Richard deslizando pela tela em Irma Vep.
É um cinema do corpo, do gesto, onde se realiza
uma verdadeira simbiose entre a linguagem corporal do
ator e a câmera do cineasta. Exemplos pulam em
demonlover: a forma como Nielsen caminha em direção
ao banheiro para drogar uma colega; Chloe Sevigny jogando
videogame; a briga entre Nielsen e Gina Gershon; e
minha favorita o passeio noturno de Nielsen e Sevigny.
Se o cinema sempre buscou inspiração na
literatura ou no teatro, porque não na música
pop? Não se trata só de escolher a trilha
certa para cada momento, mas de reperspectivar o gesto
humano, desenvolver uma linguagem que reacople o movimento
a partir da partitura musical, mesmo que a trilha sonora
seja discreta ou inexistente (o que é visível
em demonlover, graças ao elegante trabalho
do Sonic Youth). demonlover tem até as
duas melhores perseguições de carro do
cinema contemporâneo, e tudo graças ao
casamento perfeito entre o movimento dos carros e a
música incidental da banda.
Mas o que Assayas e Sonic Youth conseguem aqui é
algo único na carreira do cineasta, comparável
apenas às parcerias que Abel Ferrara desenvolveu
com Joe Dalia e, mais recentemente, Schooly D. Pode-se
mesmo dizer que demonlover é uma espécie
de musical mutante. O gênero tão freqüentemente
dado erroneamente já que fora dos EUA ele segue
dando bons filhotes como morto ressurge aqui numa
versão atualizada e única, com a imagem
opaca e seca da mise en scène de Assayas
entrando em contato com o experimentalismo barulhento
da banda de Thurston Moore. Com freqüência
o filme parece abandonar o roteiro em favor da música,
seu verdadeiro guia (a trilha foi composta antes das
filmagens). É ao Sonic Youth que Assayas mais
se afina, e é muito disso que surge o que há
de frescor em demonlover em relação
aos filmes anteriores do cineasta. A banda merece ser
vista como co-autora do filme: seu trabalho não
é só integrar a mise en scène
do filme, ela é a mise en scène.
A experiência demonlover é por vezes
a tradução cinematográfica do trabalho
do Sonic Youth. Podemos dizer que se trata do primeiro
filme rodado em soundscope. Mas não se
trata de um enriquecimento de mão única,
já que as imagens de Assayas dão uma bela
âncora para o trabalho da banda (a trilha é
de certo um dos melhores trabalhos recentes deles e
fica melhor ainda quando acompanhada do filme). Só
por isto este musical pós-tudo seria um óvni
único no cenário do cinema americano,
mas ela é só parte da engrenagem deste
fascinante objeto estético.
Este musical corporativo é o formato perfeito
para que Assayas desenvolva seu universo sensorial.
demonlover é um filme entre, seu
espaço sendo o da transição. Não
à toa boa parte da ação filmada
ocorre em locais impessoais: hotéis, aeroportos,
aviões, escritórios de grandes corporações,
mesmo o apartamento de Nielsen é mobiliado como
se fosse um espaço provisório. Este filme
transnacional se recusa a estabelecer uma identidade
própria para cada um dos lugares visitados: Paris,
Tóquio, Estados Unidos, todos resultam no mesmo
lugar em suspenso. O filme se equilibra neste universo
sem identidade, sem história, sem qualquer senso
de concreto, o que as imagens etéreas de Assayas
(e a trilha do Sonic Youth) estabelecem. Poucas vezes
(pensemos nos filmes de Jerzy Skolimowski ou em O
Desprezo) o estatuto de co-produção
internacional foi tão bem usado em favor de um
filme. Com seu elenco internacional (atores suecos,
franceses, japoneses e americanos), filmagens pelo mundo
todo, gênero nipo-americano, o filme consegue
transformar suas condições de produção
em dado essencial do que capta. O auge desta impressão
de mundo sem barreiras deve se dar na discussão
entre Nielsen e Sevigny onde as atrizes variam por nenhuma
razão entre o francês e o inglês.
O filme também termina por funcionar como um
estranho espelho invertido para com Irma Vep,
com sua estrela internacional, seus diálogos
em inglês macarrônico e sua apropriação
de um filme (Les Vampires) que, se pertence à
história do cinema francês, é também
graças à sua tendência de apropriação
cultural o que é radicalizado em sua continuação
Tih Mihn, nunca mencionada diretamente, mas cujo
espírito também animava o filme anterior
, um exemplar avant la lettre do tipo de barreira
transnacional que Assayas trabalha aqui.
Só que Irma Vep ainda trabalha a partir
de uma experiência que é antes de mais
nada francesa, enquanto dissolve isso tudo numa espécie
de estética do borrão em que o filme lança
suas garras sobre uma experiência bem mais geral.
O filme constrói neste encontro música
+ imagem seu ritmo próprio bastante peculiar,
que por vezes lembra a forma confusa com que se passeia
pela web assim como a maneira com que a imagem
é absorvida em DVD ou VHS , e mais importante,
em como estes modelos de absorção de informação
e imagem marcam a nossa experiência diária.
Poucos filmes captam com tamanha precisão o misto
de quase familiaridade e quase interesse com que o turista
do deslocamento contemporâneo se move pelos mais
diferentes lugares. O filme não investe no tédio
sub-Antonioni de seus turistas a saída fácil
do atual cinema de arte para não lidar com o
mundo , preferindo registrar como seus personagens
reagem com um não-olhar. A estética de
Assayas sempre foi da escrita na imagem no sentido
que Serge Daney aplica 3 e diz muito
sobre a grandeza de demonlover o filme evitar
criticar diretamente o tipo de agressão cultural
que este universo sem barreiras impõe, optando
em vez disso por deixar que esta agressão se
insira na imagem e respire.
New Rose Hotel
Mas demonlover é primordialmente um filme
da angústia da imagem e do observador/gerador
delas que é Olivier Assayas, um filme marcado
pela profunda curiosidade em se compreender o atual
estado delas. Imagens mutantes, imagens vulgares: pornografia,
mangas, violência, narrativas sustentadas por
um fio condutor mínimo. Assayas mostra com freqüência
estas imagens, nunca por tempos muito estendidos, mas
o suficiente para nos deixar reconhecê-las, e
depois corta para alguém que olha. O que eles
vêem? O que eles sentem? Como eles reagem a elas?
Como nós nos sentimos? É isto que está
no centro do filme. Não se trata de alguma crítica
feita à distância estamos bem longe da
seara do intelectual que resolve, por exemplo, dar seu
parecer sobre o fenômeno dos reality shows.
Nas palavras de Serge Kaganski, Assayas busca um "estilo
que seja ao mesmo tempo produto, reflexão e crítica
da sua época"4. O filme
está impregnado por estas imagens, por estas
formas de vê-la. O fascínio de Assayas
por elas é tão grande quanto o nosso.
Estamos aqui diante de uma mise en scène
que nunca deixa de colocar seu cineasta em questão:
quando Assayas filma brigas entre suas atrizes não
restam dúvidas sobre o quanto ele as está
pondo para realizar o seu próprio fetiche. Entre
Assayas e o adolescente do final, a diferença
principal é de meios de produção.
Estas imagens mercantilizadas existem para suprir qualquer
desejo do observador (basta pensar em Matrix
e suas seqüências para não sairmos
do universo do cyberthriller). Mas estas imagens
nos olham tanto quanto nós as olhamos, influenciam
diretamente a forma como nos movemos e olhamos o mundo.
Daí este também ser um filme de horror,
do horror da imagem, do horror do observador de imagens,
do horror do não-olhar. Connie Nielsen nada vê
porque a ação principal de demonlover
reside sempre num fora de tela, ação demarcada
por um Dr. Mabuse oculto (Dr. Assayas?). São
imagens não-processadas guiadas por um desejo
do espectador, e portanto o filme todo se constrói
como uma narrativa artificial que começa a se
interromper continuamente, uma imagem que em Irma
Vep existia como desejo de uma personagem (Maggie
Cheung vestida como a ladra-título invadindo
um apartamento) e que é reencenada de forma ainda
mais fetichista aqui como parte do plano narrativo.
É este olhar interrompido que tanto incomoda
o cineasta, o que torna a recepção negativa
do filme (mesmo na França) ainda mais triste.
Já não se vê mais, quando um filme
como demonlover é chamado de bobo, de
mero pastiche pós-moderno, é acusado de
ser uma simples denúncia (ou endosso) das novas
mídias ou de ser confuso (será preciso
ao cineasta pedir autorização para realizar
um filme que opta por fazer sentido apenas no plano
conceitual?).
Nessa recepção, o filme lembra muito outro
grande relatório do estado das coisas e das imagens:
New Rose Hotel (O Enigma do Poder), de
Abel Ferrara. São filmes dedicados a captar uma
certa fragrância, um certo olhar. Não surpreende,
portanto, que sejam filmes com muito em comum, apesar
de operarem via metodologia e sensibilidades bem
diferentes. São ambos contos de vampirismo contemporâneo
o gangster que vê Nosferatu por razão
alguma, em O Rei de Nova York, é uma imagem
síntese do melhor do cinema dos últimos
15 anos, o que inclui tanto Ferrara como Assayas em
que a drenagem de sangue é substituída
por novas formas de violência corporativa. Afinal,
não seriam o Harvé de demonlover
e a Sandii de New Rose Hotel nossos Nosferatus
modernos? Eles circulam por seu mundo como os únicos
que compreendem suas estruturas de poder, estando prontos
para aceitar por completo suas regras (algo muito desejado
por todos na tela, mas não por completo bem sucedidos),
isto até o momento em que Harvé dá
o seu único passo em falso e age de acordo com
os seus desejos. Estes são grandes filmes políticos
sobre o poder, sobre as imagens que o projetam, sobre
as imagens que o retêm, sobre os movimentos necessários
para a sua permanência. E tudo termina com nós
de volta ao New Rose Hotel (ou uma espelunca texana),
tentando fazer sentido do processo todo que demonlover
põe em cena. Somos todos irmãos sobre
a mesma angústia, e Ferrara e Assayas seguem
empenhados em gerar novas formas para permitir que se
abra um intervalo no qual esta angústia possa
se expressar.
Filipe Furtado
1.
Weil, Simone. Cahiers du Sud, XIX, 230.
2. Uma visão desenvolvida para
além dos limites deste artigo sobre esta sensibilidade
pop e relação imagem/música pode
ser encontrada na carta de Kent Jones para série
Movie Mutations, originalmente publicada na Traffic
no.24 (Inverno de 97) e disponível no livro Movie
Mutations (org. Adrian Martin e Jonathan Rosenbaum;
BFI publishing);
3. Ver a entrevista de Daney a Bill
Krohn, assim como o artigo de Krohn, "The Tinkerers",
ambos disponíveis aqui: http://home.earthlink.net/~steevee/
4. Kaganski, Serge. "Olivier Assayass
desert of the real", em Film Comment Setembro/Outubro
2003.
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