Para que serve um clássico?
A tela do Odeon-Br nos permitirá
conferir: Crepúsculo dos Deuses é
um filme daquele tipo que se impõe quando aparece
na tela - há um certo peso jogado sobre nós
que assistimos, o peso da tradição do
cinema. Não apenas o peso da tradição
que o próprio enredo em torno de Norma Desmond
representa, mas a tradição que Crepúsculo
dos Deuses, ao mesmo tempo, encarna e agride, a
de um grande clássico do cinema. E por conta
disso é preciso notar como o filme foge do padrão
naturalista tradicional de forma admirável: a
estrutura se baseia numa narração irônica
de um protagonista falecido e, ao longo do filme e especialmente
em seu final, a encenação, as atuações
e ambientações são hiper-expressivas
- com um olhar cruel sobre os excessos típicos
de um cinema perdido no passado, um cinema que não
se pretendia naturalista. A própria construção
de luzes sobre a figura de Swanson/Desmond tem em todos
os momentos (e sobretudo nos closes) uma força
além do naturalismo e da natureza, uma força
que retorna com vigor a uma outra relação
visual do cinema com os personagens/estrelas. Vale aqui
lembrar um dado da produção para comprovar
que a opção fotográfica do filme
aponta para isso, e não apenas através
dos jogos e luz: os negativos originais de Crepúsculo
dos Deuses eram compostos de nitrato, substância
que, naquele momento, já havia sido trocada pelo
acetato nas películas de cinema décadas
antes - e cujos tons de cinza, naturalmente, remetem
os espectadores a um cinema antigo, ainda da era muda.
Narrando uma tragédia
em tons assumidamente grotescos e hiper-expressivos
e carregando o peso do clássico de cinema, Crepúsculo
dos Deuses, portanto, não é um filme
suave.
Encará-lo na bela tela
do Odeon, no entanto, é prazer dos maiores justamente
por isso: é por esta maneira de apresentar seus
traços de amargura e incômodo que o filme
se mantém único na carreira do realizador
e na história do cinema norte-americano. Não
há no longo e fabuloso percurso de Wilder nenhum
outro filme que agrida de forma tão clara as
bases de uma cultura cinematográfica calcada
no ultra-realismo (ao contrário, Wilder foi um
mestre do estilo clássico) - em nenhum outro
filme seu encontraremos cena semelhante à descida
final de Norma Desmond. E mesmo numa cultura tão
auto-crítica quando a norte-americana é
difícil encontrar outro exemplo de tragédia
semelhante a este, apresentando aos nossos olhos os
próprios mitos abandonados - não foi feita
outra peça em qualquer arte que tenha revisitado
os ídolos de uma fase dourada já na sua
velhice evidentemente precoce e gagá. É
preciso notar o que todos sabemos: Crepúsculo
dos Deuses é especialmente pesado porque
vemos Gloria Swanson e Erich Von Stroheim nos papéis
de Norma Desmond e Max von Mayerling, porque o filme
nos apresenta imagens de Queen Kelly, o filme
de Stroheim que nunca foi terminado, porque surgem na
tela figuras como Buster Keaton e mesmo Cecil B. deMille
e Hedda Hopper. O filme age para que a visão
grotesca ligue-se definitivamente ao mundo real - e
precisa ser visto e revisto numa sala de cinema porque
desde início assume-se como filme de cinema.
Dos muitos aspectos que já
ganharam elogios sem conta neste filme, há um
que parece ser decisivo para o filme acima de todos.
Crepúsculo dos Deuses não é
apenas o divertido tom auto-paródico dos diálogos
e da narração em off, não é
apenas uma opção coerente e forte na realização
visual e sonora, não é o apuro técnico
fascinante com que é feito, não é
somente o retrato da decadência dos sobreviventes
de uma era. Mas o filme talvez possa se definir todo
na relação que estabelece com sua protagonista.
A interpretação de Swanson/Desmond é
responsável por trazer à tona todo o impacto
que o filme tem, por ser o cerne de todo o problema
que o filme pretende criar com ares trágicos
- essa oposição entre um mundo vivido
e um mundo mítico e sonhado.
Cada gesto, cada olhar
e cada momento de silêncio de Desmond se opõe
a tudo que se espera como normal, menor, cotidiano,
o mesmo ocorrendo com a própria luz que incide
sobre ela - os próprios personagens percebem
este aspecto, esta aura que se transfere da arte para
a estrela e que parece fazê-la brilhar mesmo no
ocaso. É lidando e pondo em relevo este tom acima
do tom que o filme encontra sua chave única,
sua dissonância entre seus pares. E é descrevendo
com crueldade e empatia esta dor que Crepúsculo
dos Deuses sabe se fazer grande e consegue se sustentar
com todo seu peso, este peso que, se lhe dá a
sabida aura de clássico, também mantém
este seu sabor amargo e ainda incômodo.
Daniel Caetano
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