Coincidência
ou não, dois dos filmes mais desprezados de John
Landis são aqueles em que ele exerceu o artesanato
mais arriscado – e que rende algumas brilhantes tiradas
de mise en scène. Um Príncipe
em Nova York e Um Tira da Pesada III, ambos
com Eddie Murphy no papel principal, mostram um diretor
que parece preocupado menos em fazer algum sentido com
a história que conta (não custa levar
em consideração que os roteiros não
são dele) do que em perder tempo filmando os
detalhes de uma perseguição a bordo de
um trenzinho que atravessa um túnel dentro de
um parque jurássico, ou em decupar a cena da
breve apresentação de uma banda brega
com uma clareza de mise en scène que quase
abre mão de ter efeitos estéticos perceptíveis,
mas que se tivesse um só plano deslocado de lugar
revelaria toda sua anterior perfeição...
estética. Principalmente em Um Príncipe
em Nova York, o entrosamento entre Landis e seu
eterno parceiro George Folsey Jr., montador e geralmente
co-produtor, parece dono de um diálogo próprio,
uma língua audiovisual própria que somente
eles dois falam. A edição de som de Um
Príncipe em Nova York, diga-se de passagem,
vai nos conquistando com estratégias que variam
desde a molecagem dos sons de animais selvagens que
pontuam a conversa "séria" que Akeem
(Murphy) está tendo com os pais até a
colocação sempre perfeita do jingle
de "Soul Glou" ou as passagens de ambiente
nas cenas mais "povoadas" do filme (a festa
na casa dos McDowell, a partida de basquete, o evento
do fim-de-semana da consciência negra, as cenas
na lanchonete).
Os filmes de Landis sempre foram pontuados por momentos
de abstração, sempre responderam a uma
estrutura do musical, fossem ou não filmes sobre
música. Um Lobisomem Americano em Londres,
assim sendo, revela-se um filme tão dentro da
estrutura das pausas narrativas do musical quanto Os
Irmãos Cara-de-Pau. O que é aquela
mais famosa cena de transformação senão
a prova de que, mais do que na narrativa e nos resultados,
o coração do filme está no acompanhamento
(doloroso, desconfortável, divertido, bizarro)
do processo que leva o personagem a transitar de um
estado a outro, de uma esfera social a outra, de uma
personalidade a outra, de uma forma de existência
a outra? Esse processo precisa determinar a duração
e a espacialidade do(s) plano(s), precisa se expressar
através do que o cinema tem de mais próprio,
de mais efetivo. A mudança de Akeem, o príncipe
que resolve se passar por plebeu para conquistar uma
noiva (ou seja, a futura rainha), da pompa multicolorida
do reino em que sempre morou para a espelunca acromática
que aluga em Queens (primeira grande piada do filme)
é uma mudança de ambiente que permite
à direção de arte do filme todo
um exercício de construção dramática
puramente visual. Existe um delicioso e elegante atletismo
cenográfico em Um Príncipe em Nova
York: todos os lugares visitados pelo filme possuem
a função de dizer basicamente 50 % do
desejado pelas cenas. Idem para o figurino e maquiagem:
cada roupa usada, cada corte de cabelo, cada ruga no
rosto precisa ser um tema do filme, e não apenas
um artifício a mais – tanto que Eddie Murphy
e Arsenio Hall fazem aqui aquela clássica interpretação
múltipla, chegando a estar três vezes presentes
em uma mesma cena, em três personagens diferentes;
só sabemos que são eles mesmos que fazem
os papéis porque os créditos finais nos
avisam, do contrário é provável
que nem nos tocássemos – tamanha a genialidade
do trabalho de maquiagem.
Este filme trabalha toda a primeira parte na África
como se, em parte, estivéssemos assistindo a
um desenho animado, o que se dá menos pelas situações
do que pela configuração do espaço
em si. Toda vez que olhamos para o fundo do quadro,
com aquela textura suave e de cores tão antinaturalistas,
pensamos estar vendo atores reais atuando num fundo
de desenho animado, como se fosse a inversão
da fórmula usada em Uma Cilada para Roger
Rabbit e Looney Tunes - De Volta à Ação.
Para completar, volta e meia passa uma zebra ou um elefante,
e aí, sabe-se lá por quê (uma vez
que zebras e elefantes nada mais são do que animais
comuns na África e aqui só encontráveis
em zoológicos ou circos), realmente nos convencemos
de que se trata de uma fábula – o que a chegada
a Nova York em momento algum esfacelará. Ao colocar
personagens de fábula num mundo real, demasiado
real (a selva urbana, mais precisamente falando), o
filme reconhece a importância que deve ter sua
articulação entre os corpos e o espaço
em que se movem. Daí a impecabilidade da cenografia,
assim como a da expressão corporal da dupla Murphy/Hall.
Um Príncipe em Nova York foi o momento
em que John Landis decidiu filmar cenas absurdamente
engraçadas e ponto. Nos intervalos entre as cenas
de pura abstração cômica, sobra
espaço para uma comédia romântica,
para uma fábula social que rejeita os psiquismos
e se expressa pelas transformações mais
exteriores e superficiais, para uma aguda crônica
sobre o afro-americanismo pop tal como vivenciado nos
anos 80, para uma revisão crítica da roda
da fortuna cujo mecanismo sujo o próprio Landis
apresentara em Trocando as Bolas. Sobre esse
último aspecto, é claro que se deve destacar
a cena em que os irmãos Duke, vilões do
filme de 1983, agora vivendo como mendigos, recebem
uma esmola milionária de Murphy, cujo personagem
em Trocando as Bolas fora justamente o mentor
intelectual da falência dos veteranos acionistas.
Sobra espaço para muita coisa, mas é quando
o Reverendo Brown entra em cena, ou quando Randy Watson
solta a voz (Murphy fazendo o vocalista do Sexual Chocolate,
a banda que se apresenta no fim-de-semana da consciência
negra), ou quando o jovem componente da corte de Akeem
anuncia, cantando à capela, a chegada de sua
esposa prometida, ou quando um dos barbeiros (o interpretado
por Murphy), no meio de uma discussão sobre boxe,
vira para cada um dos presentes e fala: "Fuck you,
fuck you, fuck you..." e aí já perguntando
à clientela "... who’s next?", em suma,
é quando o filme eleva o riso a uma dimensão
puramente visceral, como uma necessidade fisiológica
que desenvolvemos diante daquilo tudo, é nesse
momento que Landis faz de Um Príncipe em Nova
York um de seus melhores e mais divertidos filmes.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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