UM PRÍNCIPE EM NOVA YORK
John Landis, Coming to America, EUA, 1988

Coincidência ou não, dois dos filmes mais desprezados de John Landis são aqueles em que ele exerceu o artesanato mais arriscado – e que rende algumas brilhantes tiradas de mise en scène. Um Príncipe em Nova York e Um Tira da Pesada III, ambos com Eddie Murphy no papel principal, mostram um diretor que parece preocupado menos em fazer algum sentido com a história que conta (não custa levar em consideração que os roteiros não são dele) do que em perder tempo filmando os detalhes de uma perseguição a bordo de um trenzinho que atravessa um túnel dentro de um parque jurássico, ou em decupar a cena da breve apresentação de uma banda brega com uma clareza de mise en scène que quase abre mão de ter efeitos estéticos perceptíveis, mas que se tivesse um só plano deslocado de lugar revelaria toda sua anterior perfeição... estética. Principalmente em Um Príncipe em Nova York, o entrosamento entre Landis e seu eterno parceiro George Folsey Jr., montador e geralmente co-produtor, parece dono de um diálogo próprio, uma língua audiovisual própria que somente eles dois falam. A edição de som de Um Príncipe em Nova York, diga-se de passagem, vai nos conquistando com estratégias que variam desde a molecagem dos sons de animais selvagens que pontuam a conversa "séria" que Akeem (Murphy) está tendo com os pais até a colocação sempre perfeita do jingle de "Soul Glou" ou as passagens de ambiente nas cenas mais "povoadas" do filme (a festa na casa dos McDowell, a partida de basquete, o evento do fim-de-semana da consciência negra, as cenas na lanchonete).

Os filmes de Landis sempre foram pontuados por momentos de abstração, sempre responderam a uma estrutura do musical, fossem ou não filmes sobre música. Um Lobisomem Americano em Londres, assim sendo, revela-se um filme tão dentro da estrutura das pausas narrativas do musical quanto Os Irmãos Cara-de-Pau. O que é aquela mais famosa cena de transformação senão a prova de que, mais do que na narrativa e nos resultados, o coração do filme está no acompanhamento (doloroso, desconfortável, divertido, bizarro) do processo que leva o personagem a transitar de um estado a outro, de uma esfera social a outra, de uma personalidade a outra, de uma forma de existência a outra? Esse processo precisa determinar a duração e a espacialidade do(s) plano(s), precisa se expressar através do que o cinema tem de mais próprio, de mais efetivo. A mudança de Akeem, o príncipe que resolve se passar por plebeu para conquistar uma noiva (ou seja, a futura rainha), da pompa multicolorida do reino em que sempre morou para a espelunca acromática que aluga em Queens (primeira grande piada do filme) é uma mudança de ambiente que permite à direção de arte do filme todo um exercício de construção dramática puramente visual. Existe um delicioso e elegante atletismo cenográfico em Um Príncipe em Nova York: todos os lugares visitados pelo filme possuem a função de dizer basicamente 50 % do desejado pelas cenas. Idem para o figurino e maquiagem: cada roupa usada, cada corte de cabelo, cada ruga no rosto precisa ser um tema do filme, e não apenas um artifício a mais – tanto que Eddie Murphy e Arsenio Hall fazem aqui aquela clássica interpretação múltipla, chegando a estar três vezes presentes em uma mesma cena, em três personagens diferentes; só sabemos que são eles mesmos que fazem os papéis porque os créditos finais nos avisam, do contrário é provável que nem nos tocássemos – tamanha a genialidade do trabalho de maquiagem.

Este filme trabalha toda a primeira parte na África como se, em parte, estivéssemos assistindo a um desenho animado, o que se dá menos pelas situações do que pela configuração do espaço em si. Toda vez que olhamos para o fundo do quadro, com aquela textura suave e de cores tão antinaturalistas, pensamos estar vendo atores reais atuando num fundo de desenho animado, como se fosse a inversão da fórmula usada em Uma Cilada para Roger Rabbit e Looney Tunes - De Volta à Ação. Para completar, volta e meia passa uma zebra ou um elefante, e aí, sabe-se lá por quê (uma vez que zebras e elefantes nada mais são do que animais comuns na África e aqui só encontráveis em zoológicos ou circos), realmente nos convencemos de que se trata de uma fábula – o que a chegada a Nova York em momento algum esfacelará. Ao colocar personagens de fábula num mundo real, demasiado real (a selva urbana, mais precisamente falando), o filme reconhece a importância que deve ter sua articulação entre os corpos e o espaço em que se movem. Daí a impecabilidade da cenografia, assim como a da expressão corporal da dupla Murphy/Hall.

 Um Príncipe em Nova York foi o momento em que John Landis decidiu filmar cenas absurdamente engraçadas e ponto. Nos intervalos entre as cenas de pura abstração cômica, sobra espaço para uma comédia romântica, para uma fábula social que rejeita os psiquismos e se expressa pelas transformações mais exteriores e superficiais, para uma aguda crônica sobre o afro-americanismo pop tal como vivenciado nos anos 80, para uma revisão crítica da roda da fortuna cujo mecanismo sujo o próprio Landis apresentara em Trocando as Bolas. Sobre esse último aspecto, é claro que se deve destacar a cena em que os irmãos Duke, vilões do filme de 1983, agora vivendo como mendigos, recebem uma esmola milionária de Murphy, cujo personagem em Trocando as Bolas fora justamente o mentor intelectual da falência dos veteranos acionistas.

Sobra espaço para muita coisa, mas é quando o Reverendo Brown entra em cena, ou quando Randy Watson solta a voz (Murphy fazendo o vocalista do Sexual Chocolate, a banda que se apresenta no fim-de-semana da consciência negra), ou quando o jovem componente da corte de Akeem anuncia, cantando à capela, a chegada de sua esposa prometida, ou quando um dos barbeiros (o interpretado por Murphy), no meio de uma discussão sobre boxe, vira para cada um dos presentes e fala: "Fuck you, fuck you, fuck you..." e aí já perguntando à clientela "... who’s next?", em suma, é quando o filme eleva o riso a uma dimensão puramente visceral, como uma necessidade fisiológica que desenvolvemos diante daquilo tudo, é nesse momento que Landis faz de Um Príncipe em Nova York um de seus melhores e mais divertidos filmes.


Luiz Carlos Oliveira Jr.