COLORS – AS CORES DA VIOLÊNCIA
Dennis Hopper, Colors, EUA, 1988

Mean Streets

Do Dennis Hopper diretor, quase nunca se lembra. À exceção de Sem Destino, seus filmes nunca causaram grande repercussão – movimento selado muito cedo, quando ele apresentou seu trabalho imediatamente posterior, The Last Movie (Chinchero), tido como incoerente e esquisito nos festivais por que passou em 1971 (a sinopse do filme em muito se assemelha a O Estado das Coisas, de Wim Wenders). Talvez o que mais tenha se aproximado de um sucesso tenha sido justamente Colors - As Cores da Violência, um dos filmes mais paradigmáticos em relação ao universo das gangues de rua de Los Angeles. Hits do subgênero, como Boyz n’ the Hood (John Singleton), e mesmo filmes menos conhecidos, têm lá sua dívida estética com Colors.

O filme se passa em East L.A., região que, assim como o centro sul da cidade, é famosa por seu altíssimo índice de marginalidade. Ao invés de lançar um olhar de cima, adotar o ponto de vista da onisciência narrativa, o filme é uma incursão horizontal no universo das gangues. Dennis Hooper, diretor do mais mítico dos road-movies (existe praticamente um gênero-Easy Rider), fez um outro filme em que o asfalto é o principal componente. Mas dessa vez não é um filme de estrada, e sim das ruas da cidade, aquelas que são percorridas diariamente. Não há jornada transformadora, mas antes a circulação permanente por becos e vielas onde se dá um estranho e complexo equilíbrio de forças. Percorremos as ruas ao lado dos policiais Danny McGavin (Sean Penn), o jovem destemperado, e Bob Hodges (Robert Duvall), o parceiro experiente, que já conhece a lógica de funcionamento interno desse universo marginal. Enquanto Danny, que logo recebe o apelido de Pacman, age com violência, vive correndo atrás de motivos para prender e repreender os jovens com quem se depara, Bob defende a ação ponderada, sabe que colocar meia-dúzia de traficantes de esquina na cadeia não significa absolutamente nada em relação ao controle da criminalidade. Sabe também que não é agredindo covardemente (uma vez que sob o amparo da lei) um pichador que risca os nomes dos membros da gangue rival escritos na parede (o que significa que aqueles estão marcados para morrer), como Pacman faz a certa altura, que ele "corrigirá" a violência urbana. "Você está agindo exatamente igual a eles", Bob alerta Pacman. A parceria profissional dos dois naturalmente não funciona bem ao longo do filme. Contrariando as expectativas de um buddy movie, a relação disfuncional não evolui para um entendimento progressivo. Eles criam um afeto, evidentemente, mas não há as declarações de amor à Mel Gibson/Danny Glover (na série Máquina Mortífera).

Se há um filme em que o crime e a lei são explicitamente mostrados como faces opostas de uma mesma moeda, trata-se de Colors. Ou talvez nem seja o caso de espelhamento, mas antes de uma ausência primordial de diferenciação a partir do binômio lei/fora-da-lei. A grande rivalidade mostrada pelo filme se dá entre as gangues da facção Crips (os que usam pano azul) e as da facção Bloods (os de pano vermelho). No meio do fogo cruzado, a polícia de Los Angeles (uma cartela no início do filme avisa que existem divisões voltadas exclusivamente para o combate às gangues). O confronto entre as autoridades locais (integradas ao espaço, conhecendo pessoalmente os bandidos) e a frieza operacional das autoridades federais ou multinacionais (impessoais, desinteressadas no espaço e seus ocupantes), um dos principais clichês do filme policial, está ausente em Colors. O filme se dá somente entre a polícia local e a população. Dois planos definem bem a relação do filme com o espaço. Um é o grande plano geral que começa enquadrando os prédios e depois faz um tilt para mostrar a gangue que caminha no asfalto, com o zoom se aproximando lentamente; a cidade, portanto, se encontra desverticalizada, e os membros das gangues estão sendo observados por alguém que a princípio está longe, mas que fabrica um modo de se aproximar. O outro é o belo plano-seqüência no meio da perseguição de Pacman, no carro da polícia, ao traficante High Top, que foge numa moto: no momento em que eles seguem para lados opostos de um mesmo quarteirão, ocupando ruas paralelas, a câmera permanece fixa no banco do carona da viatura e, ao mesmo tempo em que enquadra o rosto de Sean Penn, mostra o que se passa do lado de fora, jogando com a tensão suscitada pela sucessão de quarteirões e ruas transversais. A maioria dos diretores teria mostrado no mínimo uma tomada aérea apanhando as posições simultâneas dos dois, mas Hopper preferiu trabalhar com o registro contínuo no plano horizontal (aquele ocupado pelo personagem), dando-nos um ponto de vista parcial. Mais uma vez: é um filme de rua, da confusão das ruas. Ninguém sabe direito o que está acontecendo: inexiste um discurso – conservador ou não – em que Hopper identifique a "voz da razão" (basta citar que o convicto discurso de afrontamento do pastor, na cena do enterro, é interrompido por uma rajada de metralhadoras).



Como se entra numa gangue? Levando uma surra. Por que se entra numa gangue? "Porque este é meu bairro", responde o irmão mais novo de Leo "Frog" Lopez (chicano que em determinado momento serve de fonte de informação para Bob) quando passa pelo ritual de admissão. Mais do que a conquista de um mercado de tráfico, portanto, há a redução radical à pertença a um espaço determinado. Sociologias à parte, o filme não está interessado em completar um pensamento sobre a questão das gangues. Mas também não é uma excursão por um parque temático da violência praticada pelas gangues da ala leste de Los Angeles, o que grande parte dos filmes desse subgênero depois viria a ser. Em Colors, mesmo a morte de Bob se dá como uma espécie de desdobramento natural da ajuda que ele obteve a partir de uma informação que veio de dentro da marginalidade: não há confronto que não seja apenas um movimento a mais no sistema de forças desempenhado por esse tecido híbrido. A polícia não soluciona o crime. Os Crips não vencem a batalha. Tampouco os Bloods. Não há caso a ser solucionado – logo não há ilusão de harmonia social (outra diferença em relação aos filmes policiais convencionais).

A montagem parece de fato desordenada em alguns momentos, mas há de se fazer uma observação: ao rechaçar a intervenção de uma "inteligência editorial" (que só poderia derivar do tal ponto de vista narrativo onisciente), o filme cria uma estrutura acidental (e acidentada) que em muito contribui para sua visão do caos que é a realidade das gangues. Às vezes é como acompanhar uma sucessão de tomadas jornalísticas sobre a situação nas ruas – não custa lembra que nos anos 80 passaram a pulular aqueles programas de tv mostrando a ação policial em formato sensacionalista. A isso se mesclam cenas mais de aventura, de filme de ação mais convencional mesmo. As elipses do filme são muitas – todas confusas e indeterminadas (um mês pode caber tanto em meia-hora quanto em uma rápida sucessão de planos curtos). Há quem reclame, injustamente, da aleatoriedade que aparentemente houve na escolha das cenas, isto é, do que devia e do que não devia entrar no corte final. Por exemplo: a cena de sexo de Danny com Louisa (Maria Conchita Alonso) pode parecer fora de contexto, sobrando – mas isso somente para o olhar desatento. Essa cena, somada à seqüência seguinte – em que Danny realiza uma invasão que termina com a imagem dele observando uma mulher nua que sai da casa –, confere uma dimensão libidinal à agressiva impulsividade do comportamento de Danny "Pacman". Suas pulsões, seus medos, sua autoridade: tudo se confunde.

O final de Colors, com Danny meio que assumindo o papel de Bob, tendo de lidar com a intempestividade de seu novo parceiro (e citando a mesma "parábola dos bois" que Bob lhe contara), aponta para o caráter cíclico que desde cedo se delineara. O filme não tinha uma intriga a solucionar, e sim uma trama de micro-poderes a perscrutar. Profundamente imperfeito, e dificilmente seria de outro jeito, Colors é daqueles filmes que o tempo revela tão mais datados quanto mais ficam gravados na memória – no que pesam as ótimas atuações de Penn e Duvall e a música-tema cantada pelo rapper Ice-T (ele mesmo um dos maiores divulgadores da iconografia dessas gangues). Um autêntico filme a recuperar – em todos seus defeitos e qualidades.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

(VHS: Flashstar e Globo Vídeo)