Mean
Streets
Do Dennis Hopper diretor, quase nunca se lembra.
À exceção de Sem Destino,
seus filmes nunca causaram grande repercussão
– movimento selado muito cedo, quando ele apresentou
seu trabalho imediatamente posterior, The Last Movie
(Chinchero), tido como incoerente e esquisito nos
festivais por que passou em 1971 (a sinopse do filme
em muito se assemelha a O Estado das Coisas,
de Wim Wenders). Talvez o que mais tenha se aproximado
de um sucesso tenha sido justamente Colors - As Cores
da Violência, um dos filmes mais paradigmáticos
em relação ao universo das gangues de
rua de Los Angeles. Hits do subgênero, como Boyz
n’ the Hood (John Singleton), e mesmo filmes menos
conhecidos, têm lá sua dívida estética
com Colors.
O filme se passa em East L.A., região que, assim
como o centro sul da cidade, é famosa por seu
altíssimo índice de marginalidade. Ao
invés de lançar um olhar de cima, adotar
o ponto de vista da onisciência narrativa, o filme
é uma incursão horizontal no universo
das gangues. Dennis Hooper, diretor do mais mítico
dos road-movies (existe praticamente um gênero-Easy
Rider), fez um outro filme em que o asfalto é
o principal componente. Mas dessa vez não é
um filme de estrada, e sim das ruas da cidade, aquelas
que são percorridas diariamente. Não há
jornada transformadora, mas antes a circulação
permanente por becos e vielas onde se dá um estranho
e complexo equilíbrio de forças. Percorremos
as ruas ao lado dos policiais Danny McGavin (Sean Penn),
o jovem destemperado, e Bob Hodges (Robert Duvall),
o parceiro experiente, que já conhece a lógica
de funcionamento interno desse universo marginal. Enquanto
Danny, que logo recebe o apelido de Pacman, age com
violência, vive correndo atrás de motivos
para prender e repreender os jovens com quem se depara,
Bob defende a ação ponderada, sabe que
colocar meia-dúzia de traficantes de esquina
na cadeia não significa absolutamente nada em
relação ao controle da criminalidade.
Sabe também que não é agredindo
covardemente (uma vez que sob o amparo da lei) um pichador
que risca os nomes dos membros da gangue rival escritos
na parede (o que significa que aqueles estão
marcados para morrer), como Pacman faz a certa altura,
que ele "corrigirá" a violência
urbana. "Você está agindo exatamente
igual a eles", Bob alerta Pacman. A parceria profissional
dos dois naturalmente não funciona bem ao longo
do filme. Contrariando as expectativas de um buddy
movie, a relação disfuncional não
evolui para um entendimento progressivo. Eles criam
um afeto, evidentemente, mas não há as
declarações de amor à Mel Gibson/Danny
Glover (na série Máquina Mortífera).
Se há um filme em que o crime e a lei são
explicitamente mostrados como faces opostas de uma mesma
moeda, trata-se de Colors. Ou talvez nem seja
o caso de espelhamento, mas antes de uma ausência
primordial de diferenciação a partir do
binômio lei/fora-da-lei. A grande rivalidade mostrada
pelo filme se dá entre as gangues da facção
Crips (os que usam pano azul) e as da facção
Bloods (os de pano vermelho). No meio do fogo cruzado,
a polícia de Los Angeles (uma cartela no início
do filme avisa que existem divisões voltadas
exclusivamente para o combate às gangues). O
confronto entre as autoridades locais (integradas ao
espaço, conhecendo pessoalmente os bandidos)
e a frieza operacional das autoridades federais ou multinacionais
(impessoais, desinteressadas no espaço e seus
ocupantes), um dos principais clichês do filme
policial, está ausente em Colors. O filme
se dá somente entre a polícia local e
a população. Dois planos definem bem a
relação do filme com o espaço.
Um é o grande plano geral que começa enquadrando
os prédios e depois faz um tilt para mostrar
a gangue que caminha no asfalto, com o zoom se aproximando
lentamente; a cidade, portanto, se encontra desverticalizada,
e os membros das gangues estão sendo observados
por alguém que a princípio está
longe, mas que fabrica um modo de se aproximar. O outro
é o belo plano-seqüência no meio da
perseguição de Pacman, no carro da polícia,
ao traficante High Top, que foge numa moto: no momento
em que eles seguem para lados opostos de um mesmo quarteirão,
ocupando ruas paralelas, a câmera permanece fixa
no banco do carona da viatura e, ao mesmo tempo em que
enquadra o rosto de Sean Penn, mostra o que se passa
do lado de fora, jogando com a tensão suscitada
pela sucessão de quarteirões e ruas transversais.
A maioria dos diretores teria mostrado no mínimo
uma tomada aérea apanhando as posições
simultâneas dos dois, mas Hopper preferiu trabalhar
com o registro contínuo no plano horizontal (aquele
ocupado pelo personagem), dando-nos um ponto de vista
parcial. Mais uma vez: é um filme de rua, da
confusão das ruas. Ninguém sabe direito
o que está acontecendo: inexiste um discurso
– conservador ou não – em que Hopper identifique
a "voz da razão" (basta citar que o
convicto discurso de afrontamento do pastor, na cena
do enterro, é interrompido por uma rajada de
metralhadoras).
Como se entra numa gangue? Levando uma surra. Por que
se entra numa gangue? "Porque este é meu
bairro", responde o irmão mais novo de Leo
"Frog" Lopez (chicano que em determinado momento
serve de fonte de informação para Bob)
quando passa pelo ritual de admissão. Mais do
que a conquista de um mercado de tráfico, portanto,
há a redução radical à pertença
a um espaço determinado. Sociologias à
parte, o filme não está interessado em
completar um pensamento sobre a questão das gangues.
Mas também não é uma excursão
por um parque temático da violência praticada
pelas gangues da ala leste de Los Angeles, o que grande
parte dos filmes desse subgênero depois viria
a ser. Em Colors, mesmo a morte de Bob se dá
como uma espécie de desdobramento natural da
ajuda que ele obteve a partir de uma informação
que veio de dentro da marginalidade: não há
confronto que não seja apenas um movimento a
mais no sistema de forças desempenhado por esse
tecido híbrido. A polícia não soluciona
o crime. Os Crips não vencem a batalha. Tampouco
os Bloods. Não há caso a ser solucionado
– logo não há ilusão de harmonia
social (outra diferença em relação
aos filmes policiais convencionais).
A montagem parece de fato desordenada em alguns momentos,
mas há de se fazer uma observação:
ao rechaçar a intervenção de uma
"inteligência editorial" (que só
poderia derivar do tal ponto de vista narrativo onisciente),
o filme cria uma estrutura acidental (e acidentada)
que em muito contribui para sua visão do caos
que é a realidade das gangues. Às vezes
é como acompanhar uma sucessão de tomadas
jornalísticas sobre a situação
nas ruas – não custa lembra que nos anos 80 passaram
a pulular aqueles programas de tv mostrando a ação
policial em formato sensacionalista. A isso se mesclam
cenas mais de aventura, de filme de ação
mais convencional mesmo. As elipses do filme são
muitas – todas confusas e indeterminadas (um mês
pode caber tanto em meia-hora quanto em uma rápida
sucessão de planos curtos). Há quem reclame,
injustamente, da aleatoriedade que aparentemente houve
na escolha das cenas, isto é, do que devia e
do que não devia entrar no corte final. Por exemplo:
a cena de sexo de Danny com Louisa (Maria Conchita Alonso)
pode parecer fora de contexto, sobrando – mas isso somente
para o olhar desatento. Essa cena, somada à seqüência
seguinte – em que Danny realiza uma invasão que
termina com a imagem dele observando uma mulher nua
que sai da casa –, confere uma dimensão libidinal
à agressiva impulsividade do comportamento de
Danny "Pacman". Suas pulsões, seus
medos, sua autoridade: tudo se confunde.
O final de Colors, com Danny meio que assumindo
o papel de Bob, tendo de lidar com a intempestividade
de seu novo parceiro (e citando a mesma "parábola
dos bois" que Bob lhe contara), aponta para o caráter
cíclico que desde cedo se delineara. O filme
não tinha uma intriga a solucionar, e sim uma
trama de micro-poderes a perscrutar. Profundamente imperfeito,
e dificilmente seria de outro jeito, Colors é
daqueles filmes que o tempo revela tão mais datados
quanto mais ficam gravados na memória – no que
pesam as ótimas atuações de Penn
e Duvall e a música-tema cantada pelo rapper
Ice-T (ele mesmo um dos maiores divulgadores da iconografia
dessas gangues). Um autêntico filme a recuperar
– em todos seus defeitos e qualidades.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(VHS:
Flashstar e Globo Vídeo)
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