Adaptar
o Personagem ao Ator
Se penso nos filmes que rodei com Giulietta, posso dizer
que a construção de minha personagem é baseada inteiramente
nas suas possibilidades de atriz. Em geral, quando penso
em uma história, já sei com bastante exatidão quais
serão os intérpretes de meus personagens principais.
Por exemplo, Os Boas Vidas foi escrito sob medida
para Sordi, para Trieste, para Interlenghi, para meu
irmão... O único personagem que, no momento em que escrevia
meu roteiro, eu não sabia por quem seria interpretado
foi confiado a Franco Fabrizzi. Fiz numerosos ensaios
e finalmente me decidi por Franco. Assim, quando escrevo
uma história, já sei qual ator chamarei para cada papel.
Mas às vezes, quando o roteiro está terminado e estou
pronto para filmar, descubro que o ator em que tinha
pensado não está livre, como ocorreu para A Trapaça.
Escrevendo o roteiro, eu tinha pensado em Humphrey Bogart,
mas na última hora – contar o porquê levaria muito tempo
– o ator não estava mais disponível; tive de me decidir
então por Broderick Crawford, que não conhecia senão
por intermédio de fotografias, pois não tinha visto
Les Fous du Roi, filme do qual arrumei uma projeção
quando Crawford chegou na Itália. Houve então, de minha
parte, uma adaptação do personagem a Crawford, a suas
possibilidades de ator e a sua silhueta volumosa, totalmente
diferente daquela de Bogart que, vocês se lembram, era
muito mais parecida com a de um lobo faminto, com um
rosto fundo, e que talvez fosse exprimir com mais eficácia
o desespero de uma vida esgotada. Em suma, a melancolia
profunda de Bogart teria sido provavelmente mais eficaz
que aquela de Crawford. Para Crawford, precisei fazer
algumas transposições, o que sempre faço com bastante
prazer, pois creio que o imprevisto, o imprevisível,
é às vezes um elemento positivo pra o sucesso de uma
obra. Quando não posso encontrar o ator que quero ou
quando não sou bem sucedido na busca de um rosto tal
como minha imaginação o havia concebido, ponho-me com
uma grande desenvoltura rumo a outra solução.
Em
suma, eu gostaria de dizer isso: que jamais cometo (e
talvez esteja aí o único sistema que se pode identificar
no meu método de trabalho) o erro – pois isso me parece
um erro – de adaptar o ator ao personagem, mas faço
sempre o contrário, o que significa que me esforço para
adaptar o personagem ao ator. Nunca peço ao ator um
esforço de interpretação particular, ou seja, nunca
me obstino a fazê-lo dizer meus diálogos num dado tom.
O caso de Giulietta interpretando Gelsomina é o único
exemplo em que obriguei uma atriz que tem um temperamento
exuberante, agressivo, até pirotécnico, a fazer o papel
estilizado de uma criatura retraída de timidez, com
um clarão de razão e de gestos sempre no limite da caricatura
e do grotesco. Isso me demandou um esforço muito grande
e nesse caso particular, Giulietta, contrariamente ao
que ela fez por Cabiria, precisou de um esforço de interpretação
muito grande, porque Gelsomina é uma “interpretação”
enquanto “Cabiria” estava muito mais na sua afinação,
com sua agressividade, seu temperamento quase um pouco
alucinado, sua prolixidade.
Quando dirijo meus
atores, em geral mimetizo completamente a ação e tento
dar eu mesmo aos diálogos a entonação que me parece
a boa. Mas às vezes, para não arriscar de influenciá-lo,
para não obrigar o ator a me imitar, gosto de ver o
que ele faria por si próprio. A esse propósito posso
dizer uma coisa: é que minha inspiração, no que concerne
á interpretação dos atores, vem principalmente entre
a filmagem de um e outro plano, durante os momentos
em que o ator vai se sentar numa cadeira, em que ele
pede seu lanche, em que ele flerta com uma figurante,
em que ele vai telefonar ou em que ele tira uma soneca.
É sempre difícil remontar
justo à fonte da inspiração, mas eu poderia contar a
esse propósito como nasceu o fim de Noites de Cabíria.
Ele não nasceu apenas como fim, mas também como a idéia
geradora de todo o filme. Quando um certo jornal de
esquerda me acusou de ter uma atitude evasiva perante
a realidade, de nunca sugerir nas minhas histórias uma
solução, um ponto de vista preciso, esforcei-me em agir
com humildade sem levar em conta a irritação que senti
ao ler coisas que realmente não esperava, e disse a
mim mesmo: efetivamente, Zavattini e de Sica sugerem
a inscrição a um partido, assim como sugerem alguma
coisa a seus personagens, dão-lhes uma direção, e isso
porque eles têm uma certa fé que eu não tenho, ao menos
não num sentido preciso. É por isso que, ao fim de seus
filmes, suas histórias e seus personagens satisfazem
mais que os meus. Então eu me disse: talvez esses senhores
tenham razão. A meus personagens, não termino por dizer
ao fim do filme: “Vocês compreenderam direitinho, é
preciso comprar tal jornal, ou também é preciso se casar,
ou também ir à igreja...”. Não termino por lhes dizer
nada.
No fundo, essa é uma
atitude muito inumana da parte de um autor perante seus
personagens. Portanto, investindo toda minha boa vontade
(como se eu tivesse enfim resolvido dizer a meu personagem:
“Você compreendeu bem, você fará isso ou aquilo”), me
perguntei: “O que vou lhe dizer?”. E depois de pensar
sobre isso durante muito tempo, percebi que não saberei
o que lhe sugerir, porque não sei o que dizer a mim
mesmo. Assim sendo, aos meus personagens, que são sempre
tão infelizes, a única coisa que poderei oferecer será
minha solidariedade: e assim poderei, por exemplo, dizer
a um deles: “Escuta, não posso te explicar o que não
sei, mas, em todo caso, te amo o suficiente e te ofereço
uma serenata”. E assim, para Noites de Cabiria,
pensei: quero fazer um filme que conte as aventuras
de uma infeliz que, a despeito de tudo, espera confusamente,
ingenuamente, por melhores relações entre os homens,
simplesmente melhores relações; e ao fim do filme quero
lhe dizer: “Escuta, fiz você passar por todo tipo de
desgraça, mas você me é tão simpática que quero compor-lhe
uma pequena serenata”. E depois, sobre essa idéia talvez
um pouco ingênua, imaginei uma cena. Tratava-se de uma
mulher, de uma personagem infeliz que, ao fim de uma
aventura ainda mais terrível que as outras, deveria
perder de maneira absoluta e definitiva sua confiança
na humanidade que a rodeava. E então me perguntei: por
que essa personagem, num dado momento, não pode se convencer
de que há alguém que lhe diz gentilmente e com simpatia:
“Você tem razão”? E assim essa personagem se tornou
Cabiria, e suas aventuras se tornaram aquelas de uma
prostituta que vive como um pequeno camundongo num meio
aterrorizante, continuamente esmagada pela realidade,
mas que atravessa a vida com inocência e aquela misteriosa
confiança. Ao fim do filme eu a faço encontrar um grupo
exuberante de pessoas bem jovens, de uma humanidade
ao limiar da vida, que gentilmente, debochando um pouco
mas com candura, exprime-lhe sua gratidão cantando uma
canção. Foi dessa idéia que, finalmente, nasceu todo
o filme.
No que concerne minha
colaboração com Giulietta, posso dizer que Giulietta
não é somente a intérprete de meus filmes, mas que ela
é também a sua inspiradora; não entendo por isso que
a ajuda que ela me traz seja semelhante àquela de Pinelli,
de Flaiani, de Rondi, quero dizer inspiradora num sentido
bem mais profundo, à maneira de uma musa. Isso equivale
a dizer que a vida com Giulietta – o que penso disso,
a idéia que faço dela, do que pode ser sua humanidade,
do que pode ser seu sentido na minha vida – me inspirou
A Estrada da Vida e Noites de Cabiria.
Federico Fellini
(Publicado em Cahiers
du Cinéma nº 84, Junho/1958;
traduzido do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)
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