Noites de cabíria
de Federico Fellini, Le Notti di Cabiria, 1957, Itália

Adaptar o Personagem ao Ator

Se penso nos filmes que rodei com Giulietta, posso dizer que a construção de minha personagem é baseada inteiramente nas suas possibilidades de atriz. Em geral, quando penso em uma história, já sei com bastante exatidão quais serão os intérpretes de meus personagens principais. Por exemplo, Os Boas Vidas foi escrito sob medida para Sordi, para Trieste, para Interlenghi, para meu irmão... O único personagem que, no momento em que escrevia meu roteiro, eu não sabia por quem seria interpretado foi confiado a Franco Fabrizzi. Fiz numerosos ensaios e finalmente me decidi por Franco. Assim, quando escrevo uma história, já sei qual ator chamarei para cada papel. Mas às vezes, quando o roteiro está terminado e estou pronto para filmar, descubro que o ator em que tinha pensado não está livre, como ocorreu para A Trapaça. Escrevendo o roteiro, eu tinha pensado em Humphrey Bogart, mas na última hora – contar o porquê levaria muito tempo – o ator não estava mais disponível; tive de me decidir então por Broderick Crawford, que não conhecia senão por intermédio de fotografias, pois não tinha visto Les Fous du Roi, filme do qual arrumei uma projeção quando Crawford chegou na Itália. Houve então, de minha parte, uma adaptação do personagem a Crawford, a suas possibilidades de ator e a sua silhueta volumosa, totalmente diferente daquela de Bogart que, vocês se lembram, era muito mais parecida com a de um lobo faminto, com um rosto fundo, e que talvez fosse exprimir com mais eficácia o desespero de uma vida esgotada. Em suma, a melancolia profunda de Bogart teria sido provavelmente mais eficaz que aquela de Crawford. Para Crawford, precisei fazer algumas transposições, o que sempre faço com bastante prazer, pois creio que o imprevisto, o imprevisível, é às vezes um elemento positivo pra o sucesso de uma obra. Quando não posso encontrar o ator que quero ou quando não sou bem sucedido na busca de um rosto tal como minha imaginação o havia concebido, ponho-me com uma grande desenvoltura rumo a outra solução.

Em suma, eu gostaria de dizer isso: que jamais cometo (e talvez esteja aí o único sistema que se pode identificar no meu método de trabalho) o erro – pois isso me parece um erro – de adaptar o ator ao personagem, mas faço sempre o contrário, o que significa que me esforço para adaptar o personagem ao ator. Nunca peço ao ator um esforço de interpretação particular, ou seja, nunca me obstino a fazê-lo dizer meus diálogos num dado tom. O caso de Giulietta interpretando Gelsomina é o único exemplo em que obriguei uma atriz que tem um temperamento exuberante, agressivo, até pirotécnico, a fazer o papel estilizado de uma criatura retraída de timidez, com um clarão de razão e de gestos sempre no limite da caricatura e do grotesco. Isso me demandou um esforço muito grande e nesse caso particular, Giulietta, contrariamente ao que ela fez por Cabiria, precisou de um esforço de interpretação muito grande, porque Gelsomina é uma “interpretação” enquanto “Cabiria” estava muito mais na sua afinação, com sua agressividade, seu temperamento quase um pouco alucinado, sua prolixidade.

Quando dirijo meus atores, em geral mimetizo completamente a ação e tento dar eu mesmo aos diálogos a entonação que me parece a boa. Mas às vezes, para não arriscar de influenciá-lo, para não obrigar o ator a me imitar, gosto de ver o que ele faria por si próprio. A esse propósito posso dizer uma coisa: é que minha inspiração, no que concerne á interpretação dos atores, vem principalmente entre a filmagem de um e outro plano, durante os momentos em que o ator vai se sentar numa cadeira, em que ele pede seu lanche, em que ele flerta com uma figurante, em que ele vai telefonar ou em que ele tira uma soneca.

É sempre difícil remontar justo à fonte da inspiração, mas eu poderia contar a esse propósito como nasceu o fim de Noites de Cabíria. Ele não nasceu apenas como fim, mas também como a idéia geradora de todo o filme. Quando um certo jornal de esquerda me acusou de ter uma atitude evasiva perante a realidade, de nunca sugerir nas minhas histórias uma solução, um ponto de vista preciso, esforcei-me em agir com humildade sem levar em conta a irritação que senti ao ler coisas que realmente não esperava, e disse a mim mesmo: efetivamente, Zavattini e de Sica sugerem a inscrição a um partido, assim como sugerem alguma coisa a seus personagens, dão-lhes uma direção, e isso porque eles têm uma certa fé que eu não tenho, ao menos não num sentido preciso. É por isso que, ao fim de seus filmes, suas histórias e seus personagens satisfazem mais que os meus. Então eu me disse: talvez esses senhores tenham razão. A meus personagens, não termino por dizer ao fim do filme: “Vocês compreenderam direitinho, é preciso comprar tal jornal, ou também é preciso se casar, ou também ir à igreja...”. Não termino por lhes dizer nada.

No fundo, essa é uma atitude muito inumana da parte de um autor perante seus personagens. Portanto, investindo toda minha boa vontade (como se eu tivesse enfim resolvido dizer a meu personagem: “Você compreendeu bem, você fará isso ou aquilo”), me perguntei: “O que vou lhe dizer?”. E depois de pensar sobre isso durante muito tempo, percebi que não saberei o que lhe sugerir, porque não sei o que dizer a mim mesmo. Assim sendo, aos meus personagens, que são sempre tão infelizes, a única coisa que poderei oferecer será minha solidariedade: e assim poderei, por exemplo, dizer a um deles: “Escuta, não posso te explicar o que não sei, mas, em todo caso, te amo o suficiente e te ofereço uma serenata”. E assim, para Noites de Cabiria, pensei: quero fazer um filme que conte as aventuras de uma infeliz que, a despeito de tudo, espera confusamente, ingenuamente, por melhores relações entre os homens, simplesmente melhores relações; e ao fim do filme quero lhe dizer: “Escuta, fiz você passar por todo tipo de desgraça, mas você me é tão simpática que quero compor-lhe uma pequena serenata”. E depois, sobre essa idéia talvez um pouco ingênua, imaginei uma cena. Tratava-se de uma mulher, de uma personagem infeliz que, ao fim de uma aventura ainda mais terrível que as outras, deveria perder de maneira absoluta e definitiva sua confiança na humanidade que a rodeava. E então me perguntei: por que essa personagem, num dado momento, não pode se convencer de que há alguém que lhe diz gentilmente e com simpatia: “Você tem razão”? E assim essa personagem se tornou Cabiria, e suas aventuras se tornaram aquelas de uma prostituta que vive como um pequeno camundongo num meio aterrorizante, continuamente esmagada pela realidade, mas que atravessa a vida com inocência e aquela misteriosa confiança. Ao fim do filme eu a faço encontrar um grupo exuberante de pessoas bem jovens, de uma humanidade ao limiar da vida, que gentilmente, debochando um pouco mas com candura, exprime-lhe sua gratidão cantando uma canção. Foi dessa idéia que, finalmente, nasceu todo o filme.

No que concerne minha colaboração com Giulietta, posso dizer que Giulietta não é somente a intérprete de meus filmes, mas que ela é também a sua inspiradora; não entendo por isso que a ajuda que ela me traz seja semelhante àquela de Pinelli, de Flaiani, de Rondi, quero dizer inspiradora num sentido bem mais profundo, à maneira de uma musa. Isso equivale a dizer que a vida com Giulietta – o que penso disso, a idéia que faço dela, do que pode ser sua humanidade, do que pode ser seu sentido na minha vida – me inspirou A Estrada da Vida e Noites de Cabiria.

Federico Fellini
(Publicado em Cahiers du Cinéma nº 84, Junho/1958; traduzido do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)