BOM DIA, NOITE
Marco Bellocchio, Buongiorno, notte, Itália, 2003

Primeiro, o espaço cênico. Começamos por um travelling em um apartamento, onde nos situamos no cativeiro em que será escondido Aldo Moro. Nada sabemos no início. Vemos apenas um casal ouvindo o corretor enumerando as vantagens do imóvel. Parecem iniciar a construção do futuro conjugal. Corta.

Na seqüência seguinte, a mesma moça da seqüência inicial está deitada no sofá, agora com outro homem. Na TV, celebração do revéillon de 1978. Lá fora, no pequeno jardim, fogos de artifício. O casal se abraça. Parecem iniciar a construção de uma nova fase na vida.

Uma luz vermelha invade o ambiente e, somada ao ruído dos fogos, nos oferta um outro significado além daquele: tiros + sangue. O olhar para o futuro passa pela ameaça ao futuro, no caso dessa seqüência, e nos insinua o abismo existente entre suposições e contextos reais, no caso da seqüência inicial. A celebração do reveillon carrega em si a tensão. Não haverá muito mais a comemorar no restante da narrativa. Já o casal do início não é um casal - mas, logo adiante, estarão na mesma sintonia. E essa sintonia apenas ressalta que, assim como somos enganados pela imagem no início, os personagens serão enganados por suas visões. Não por acaso usarão vendas em muitas cenas, a princípio para não terem o rosto revelado, mas também porque mascaram o próprio olhar. São míopes na passagem da motivação para a ação.

As seqüências seguintes, ainda em ritmo de conta-gotas, começam a nos situar. Os dois rapazes e a moça têm algo a esconder dos vizinhos. Estão a fazer algo clandestino. Saberemos em poucos minutos. A moça, Chiara, ao ouvir a notícia do seqüestro de Aldo Moro, não sem a perda da vida dos que o acompanhavam no automóvel, sorri - mas é um sorriso carregado de tensão como no revéillon.

Chiara (Maya Sansa, a Mayara Magri italiana, mulher de olhares tão reveladores quanto enigmáticos) é uma dos integrantes das Brigadas Vermelhas, única mulher convocada para o cativeiro de Moro - o então presidente da Democracia Cristã, partido sentado no poder da Itália desde o fim da Segunda Guerra. Ela testemunhará a lúcida exasperação do refém quando empaca a negociação de sua liberdade em troca de militantes fundamentalistas (prisioneiros políticos para uns, apenas terroristas para outros - mais informações sobre os comunicados das Brigadas durante o seqüestro podem ser encontrados neste site). Também assistirá em silêncio à ortodoxia revolucionária de esquerda de seus “companheiros-camaradas”, a reação das pessoas ao redor em sua pacata vidinha “civil” como funcionária de biblioteca em órgão do governo, a estupefação do rapaz com quem aparece na primeira seqüência ao ver a sociedade chocada com o seqüestro em vez de comemorar a ação.

Filme encomendado a Marco Bellocchio pela emissora RAI, por ocasião dos 25 anos da execução de Moro (com 11 tiros, após 55 dias de confinamento, quando apoiava, para desgosto de parte da direita e da esquerda, a coalisão da Democracia Cristã com o Partido Comunista Italiano), Bom Dia Noite, baseado no livro O Prisioneiro - 55 Dias com Aldo Moro, de Laura Braghetti (a única mulher no cativeiro), encara  de frente o contexto político. Por meio dos diálogos, que explicam uma parte desse contexto e deixam outra em suspenso, sabemos da “realidade”. Moro foi abandonado pelos seus, segundo os brigadistas, e só conta com o Papa Paulo VI, que entra na negociação, mas não é ouvido - nem pelos políticos, nem pelos brigadistas.

Bellocchio não suaviza para nenhum dos lados. Já havia abandonado a militância marxista-maoista e estudava os meandros da psicanálise quando soube do seqüestro e desaprovou a estratégia das Brigadas Vermelhas (um ano após Marcia Trionfale, sua denúncia contra as práticas militares). Toma partido em relação ao caso, mas com dois pesos diferentes no julgamento. Se desaprova a ação dos revolucionários febris, por considerar a prática do terror como um esvaziamento da luta política da esquerda radical, certamente atenua esse terror ao representá-los como seres comuns, dotado de afetos e de fé religiosa na causa. Há quem rechace a visão do cineasta, taxando-a de retroativa e revisionista, como a de Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores, mas o que está em jogo não é a História, como em Bertolucci, e sim um princípio filosófico do diretor: a recusa da violência como instrumento de justiça.

Bellocchio filma os brigadistas como fundamentalistas políticos, que entoam mantras revolucionários e agem como autistas no processo político. Na violenta luta por seus ideais (também em resposta a atentados da extrema-direita italiana nos anos 70, algo não mencionado pelo filme), em nome do qual toda a violência é legítima (segundo o líder brigadista no cativeiro), eles entram em um impasse. São colocados em xeque-mate pelos donos do poder oficial. Já os políticos são condenados com penas mais pesadas pelo cineasta. Ele sussura um estridente “Eu Acuso”, em silêncio de palavras, quando mostra o rosto dos políticos, muito próximos durante um travelling no velório de Moro - imagens essas de arquivo, ali com seu significado recontextualizado.

Mas esse não é principalmente um filme de denúncia política - e sim, sobretudo, um filme sobre uma subjetividade em crise com seu entorno. Chiara pouco falará sobre sua participação no seqüestro, mas estampará no rosto o receio de ter pisado em falso. Seus olhares para a câmera, seus sonhos e os delírios da imaginação, fundidos a momentos musicais de cantos com forte significação religiosa (as Brigadas Vermelhas são uma religião no filme), não deixam margem a dúvidas. É a partir da interioridade dela que Bellocchio corrigirá a História. A arte e a imaginação também são isso, uma forma de alterar a realidade, fazendo assim parte dela também. E essa correção não tem receio de entronizar Moro (o ótimo Roberto Herlitzka), cuja caracterização, segundo o diretor, foi calcada na figura de seu pai.

Se emprega com notável habilidade a música para construir atmosferas, sem necessariamente entregar de bandeja o significado concreto dessas abstrações poéticas, Bellocchio exagera além do recomendado para sua proposta ao “explicar” os personagens. É dispensável o plano de detalhe em A Sagrada Família, de Marx e Engels, quando o livro cai ao lado da cama de Chiara. É forçada a suavização de um dos brigadistas quando se desespera pela perda do passarinho no jardim, assim como a carga metafórica um tanto óbvia dessa fuga do passarinho antes preso na gaiola. Também não há motivo forte para a inclusão de um personagem, colega de Chiara, que escreve uma história na qual, em um golpe de coincidência, a protagonista é igual a Chiara. O título desse livro: Bom Dia Noite – referência a poema homônimo de Emily Dickinson (“Bom dia noite/Estou voltando a casa/O dia se cansou de mim/Como poderia eu dele”).

São momentos frágeis ou excessivos em uma narrativa cujo poder magnético é construído por detalhes de enquadramentos e pela força do som e das músicas (entre as quais The Great Gip in The Sky, de Pink Floyd, faixa de Dark Side of the Moon). Esses momentos sem dúvida colocam anteparos no prazer de se absorver essa grande e potente obra de Bellocchio, mas não diminuem o impacto geral e o brilho de algumas passagens. No território bellochiano, como afirma nosso colega de redação Bruno Andrade, talvez seja menos bellochiano, com algumas facilidades realmente inadequadas. Mas temos diante de nós - nesse momento hegemônico das obras com sons ilustrativos e da representação de questões políticas apenas por exterioridades e por planos de conjunto também ilustrativos da sociedade - um filme com força rara entre os disponíveis no supermercado do cinema.

Cléber Eduardo

 





Maya Sansa em Bom Dia, Noite (2003)