Primeiro, o espaço cênico. Começamos
por um travelling em um apartamento, onde nos situamos
no cativeiro em que será escondido Aldo Moro. Nada sabemos
no início. Vemos apenas um casal ouvindo o corretor
enumerando as vantagens do imóvel. Parecem iniciar a
construção do futuro conjugal. Corta.
Na seqüência seguinte, a mesma moça da seqüência inicial
está deitada no sofá, agora com outro homem. Na TV,
celebração do revéillon de 1978. Lá fora, no pequeno
jardim, fogos de artifício. O casal se abraça. Parecem
iniciar a construção de uma nova fase na vida.
Uma luz vermelha invade o ambiente e, somada ao ruído
dos fogos, nos oferta um outro significado além daquele:
tiros + sangue. O olhar para o futuro passa pela ameaça
ao futuro, no caso dessa seqüência, e nos insinua o
abismo existente entre suposições e contextos reais,
no caso da seqüência inicial. A celebração do reveillon
carrega em si a tensão. Não haverá muito mais a comemorar
no restante da narrativa. Já o casal do início não é
um casal - mas, logo adiante, estarão na mesma sintonia.
E essa sintonia apenas ressalta que, assim como somos
enganados pela imagem no início, os personagens serão
enganados por suas visões. Não por acaso usarão vendas
em muitas cenas, a princípio para não terem o rosto
revelado, mas também porque mascaram o próprio olhar.
São míopes na passagem da motivação para a ação.
As seqüências seguintes, ainda em ritmo de conta-gotas,
começam a nos situar. Os dois rapazes e a moça têm algo
a esconder dos vizinhos. Estão a fazer algo clandestino.
Saberemos em poucos minutos. A moça, Chiara, ao ouvir
a notícia do seqüestro de Aldo Moro, não sem a perda
da vida dos que o acompanhavam no automóvel, sorri -
mas é um sorriso carregado de tensão como no revéillon.
Chiara (Maya Sansa, a Mayara Magri italiana, mulher
de olhares tão reveladores quanto enigmáticos) é uma
dos integrantes das Brigadas Vermelhas, única mulher
convocada para o cativeiro de Moro - o então presidente
da Democracia Cristã, partido sentado no poder da Itália
desde o fim da Segunda Guerra. Ela testemunhará a lúcida
exasperação do refém quando empaca a negociação de sua
liberdade em troca de militantes fundamentalistas (prisioneiros
políticos para uns, apenas terroristas para outros -
mais informações sobre os comunicados das Brigadas durante
o seqüestro podem ser encontrados neste site).
Também assistirá em silêncio à ortodoxia
revolucionária de esquerda de seus “companheiros-camaradas”,
a reação das pessoas ao redor em sua pacata vidinha
“civil” como funcionária de biblioteca em órgão do governo,
a estupefação do rapaz com quem aparece na primeira
seqüência ao ver a sociedade chocada com o seqüestro
em vez de comemorar a ação.
Filme encomendado a Marco Bellocchio pela emissora RAI,
por ocasião dos 25 anos da execução de Moro (com 11
tiros, após 55 dias de confinamento, quando apoiava,
para desgosto de parte da direita e da esquerda, a coalisão
da Democracia Cristã com o Partido Comunista Italiano),
Bom Dia Noite,
baseado no livro O
Prisioneiro - 55 Dias com Aldo Moro, de Laura Braghetti
(a única mulher no cativeiro), encara de
frente o contexto político. Por meio dos diálogos, que
explicam uma parte desse contexto e deixam outra em
suspenso, sabemos da “realidade”. Moro foi abandonado
pelos seus, segundo os brigadistas, e só conta com o
Papa Paulo VI, que entra na negociação, mas não é ouvido
- nem pelos políticos, nem pelos brigadistas.
Bellocchio não suaviza para nenhum dos lados. Já havia
abandonado a militância marxista-maoista e estudava
os meandros da psicanálise quando soube do seqüestro
e desaprovou a estratégia das Brigadas Vermelhas (um
ano após Marcia
Trionfale, sua denúncia contra as práticas militares).
Toma partido em relação ao caso, mas com dois pesos
diferentes no julgamento. Se desaprova a ação dos revolucionários
febris, por considerar a prática do terror como um esvaziamento
da luta política da esquerda radical, certamente
atenua esse terror ao representá-los como seres comuns,
dotado de afetos e de fé religiosa na causa. Há quem
rechace a visão do cineasta, taxando-a de retroativa
e revisionista, como a de Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores, mas o que está em jogo não é a História, como em Bertolucci,
e sim um princípio filosófico do diretor: a recusa da
violência como instrumento de justiça.
Bellocchio filma os brigadistas como fundamentalistas
políticos, que entoam mantras revolucionários e agem
como autistas no processo político. Na violenta luta
por seus ideais (também em resposta a atentados da extrema-direita
italiana nos anos 70, algo não mencionado pelo filme),
em nome do qual toda a violência é legítima (segundo
o líder brigadista no cativeiro), eles entram em um
impasse. São colocados em xeque-mate pelos donos do
poder oficial. Já os políticos são condenados com penas
mais pesadas pelo cineasta. Ele sussura um estridente
“Eu Acuso”, em silêncio de palavras, quando mostra o
rosto dos políticos, muito próximos durante um travelling
no velório de Moro - imagens essas de arquivo, ali com
seu significado recontextualizado.
Mas esse não é principalmente um filme de denúncia política
- e sim, sobretudo, um filme sobre uma subjetividade
em crise com seu entorno. Chiara pouco falará sobre
sua participação no seqüestro, mas estampará no rosto
o receio de ter pisado em falso. Seus olhares para a
câmera, seus sonhos e os delírios da imaginação, fundidos
a momentos musicais de cantos com forte significação
religiosa (as Brigadas Vermelhas são uma religião no
filme), não deixam margem a dúvidas. É a partir da interioridade
dela que Bellocchio corrigirá a História. A arte e a
imaginação também são isso, uma forma de alterar a realidade,
fazendo assim parte dela também. E essa correção não
tem receio de entronizar Moro (o ótimo Roberto Herlitzka),
cuja caracterização, segundo o diretor, foi calcada
na figura de seu pai.
Se emprega com notável habilidade a música para construir
atmosferas, sem necessariamente entregar de bandeja
o significado concreto dessas abstrações poéticas, Bellocchio
exagera além do recomendado para sua proposta ao “explicar”
os personagens. É dispensável o plano de detalhe em
A Sagrada Família, de Marx e Engels, quando
o livro cai ao lado da cama de Chiara. É forçada a suavização
de um dos brigadistas quando se desespera pela perda
do passarinho no jardim, assim como a carga metafórica
um tanto óbvia dessa fuga do passarinho antes preso
na gaiola. Também não há motivo forte para a inclusão
de um personagem, colega de Chiara, que escreve uma
história na qual, em um golpe de coincidência, a protagonista
é igual a Chiara. O título desse livro: Bom Dia Noite – referência a poema homônimo
de Emily Dickinson (“Bom
dia noite/Estou voltando a casa/O dia se cansou de mim/Como
poderia eu dele”).
São momentos frágeis ou excessivos em uma narrativa
cujo poder magnético é construído por detalhes de enquadramentos
e pela força do som e das músicas (entre as quais The Great Gip in The Sky, de Pink Floyd,
faixa de Dark
Side of the Moon). Esses momentos sem dúvida colocam
anteparos no prazer de se absorver essa grande e potente
obra de Bellocchio, mas não diminuem o impacto geral
e o brilho de algumas passagens. No território bellochiano,
como afirma nosso colega de redação Bruno Andrade, talvez
seja menos bellochiano, com algumas facilidades
realmente inadequadas. Mas temos diante de nós - nesse
momento hegemônico das obras com sons ilustrativos e
da representação de questões políticas apenas por exterioridades
e por planos de conjunto também ilustrativos da sociedade
- um filme com força rara entre os disponíveis no supermercado
do cinema.
Cléber Eduardo
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